A cidade de Lima Barreto: obra do escritor é reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio

Enviado por / FonteO Globo, por Carmélio Dias

Celebrado como um dos autores mais importantes do país, o carioca que viveu em quase todas as regiões da cidade e criou raízes no bairro de Todos os Santos, na Zona Norte, foi responsável por introduzir o subúrbio carioca na literatura brasileira

Lima Barreto é autor do Rio. A frase soa óbvia, mas não se refere apenas ao fato de o escritor ser um legítimo carioca da gema. Ela pode ser lida também como a constatação de que, em certa medida, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) ajudou, como poucos, a identificar, definir e expor — por meio de romances, contos e sobretudo crônicas publicadas em jornais — a essência da cidade e suas contradições. Roupas e hábitos do povo e da elite, mazelas da política na Primeira República, transformações da paisagem urbana no início do século XX, usos e costumes dos passageiros dos trens da Estrada de Ferro Central do Brasil, tudo era captado com afiada sagacidade e estilo por seu olhar carregado de ébria lucidez.

Essa obra essencialmente carioca foi reconhecida pela Alerj, no mês passado, como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio. Nascido na Rua Ipiranga, em Laranjeiras, na Zona Sul, o escritor experimentou a vida em quase todos os cantos da cidade. Com a morte da mãe — vítima de tuberculose, quando ele tinha 7 anos —, segue com o pai e os irmãos numa jornada de casa em casa por Flamengo, Centro e Ilha do Governador até chegar ao bairro de Todos os Santos, na Zona Norte, em 1903, onde dividiu teto com os parentes até morrer aos 41 anos.

Lima Barreto: obra do escritor agora é Patrimônio Cultural Imaterial do Rio — Foto: Reprodução

Foram duas casas no bairro. A segunda, na Rua Major Mascarenhas, 26, passou a ser provocativamente chamada por Lima Barreto — cuja vida fora toda atravessada pelo racismo indisfarçável das primeiras décadas pós-Abolição — de Vila Quilombo. Dali, saía todos os dias, de trem, em direção à estação da Central do Brasil. De lá para o trabalho no então Ministério da Guerra, depois para o sempre nobre exercício da arte de flanar pelas ruas do Centro e, por fim, para a inseparável boemia.

— Lima Barreto alarga a régua do Rio de Janeiro. O Rio de Machado, outro autor que também tem uma relação muito intrínseca com a cidade, é um Rio mais da capital e o Lima Barreto incorpora os subúrbios. É uma literatura em trânsito, dos subúrbios para Central do Brasil e vice-versa — analisa Lilia Moritz Schwarcz, professora sênior do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), autora da biografia “Lima Barreto – Triste visionário”.

Afeto pelo subúrbio

Nesse caminho diário pelos trilhos, seu espírito observador reuniu os elementos que depois usaria para dar aos subúrbios cariocas lugar no mapa da literatura brasileira de primeiríssima linha.

A antiga estação da Central do Brasil: local era o ponto de partida de Lima Barreto em suas andanças pelo Centro e sua ligação com o subúrbio — Foto: Reprodução / EFCB

— Ele tinha um afeto muito grande pelo aspecto desordenado dos subúrbios, pelas ruas que davam em nada… e, sobretudo, ele conseguia muito material para a sua literatura no vagão do trem, porque era dali que ele anotava aspectos da arquitetura, das roupas das pessoas, as reações das moças, das mães com as suas crianças. Enfim é uma relação muito empática, muito afetuosa e afetada por esse Rio mais amplo — diz Lilia Schwarcz, que desde junho ocupa a cadeira 9 da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Lima Barreto até tentou entrar para a ABL, instituição que, vez ou outra, arrumava um jeito de criticar. Fez três tentativas. Foi rejeitado em duas e desistiu em meio à terceira.

— Era um homem extremamente inteligente, culto, e que se encanta pela cidade ao mesmo tempo em que se mantém sempre muito crítico. Ele implica com as reformas que eram feitas para criar a imagem de uma cidade de cartão-postal — observa Beatriz Resende, professora da Faculdade de Letras da UFRJ, crítica literária e pesquisadora, autora de “Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos”. — A abertura da Avenida Central (atual Rio Branco) não o irrita muito, ele até frequenta, fala das roupas, dos vestidos das mulheres e dos ternos dos homens, observava muito os figurinos, mas quando acontece a demolição do Morro do Castelo e a abertura da Avenida Beira-Mar, com o despejo dos pobres e as demolições para o Centenário da Independência, ele escreve toda semana nos jornais criticando as obras.

Lima Barreto, pintado na rua Major Mascarenhas, em Todos os Santosi, em ação do Projeto Negro Muro — Foto: Márcia Foletto

Passados quase 102 anos de sua morte, as marcas da presença de Lima Barreto na cidade são quase inexistentes fora dos livros. A casa da infância não existe mais: há no lugar um prédio alto com um supermercado embaixo. Na Ilha, a construção que foi lar dos Barreto, bastante alterada ao longo do tempo, fica escondida dentro de uma unidade da Aeronáutica. Em Todos os Santos, na Rua Major Mascarenhas, no lugar da Vila Quilombo foi construído um prédio de 11 andares com piscina e área de lazer. No muro, uma placa azul instalada pela prefeitura lembra o morador ilustre. Mais à frente, quase no início da via, um grafite do Projeto Negro Muro marca a paisagem suburbana com a imagem de Lima, sério, vestindo o fardão da ABL que nunca chegou a envergar. Há ainda dois bustos do autor: um na Ilha do Governador e outro, na Rua do Lavradio, perto de uma das casas por onde a família passou.

Desfile da Escola de Samba Unidos da Tijuca, em 1982, com o enredo “Lima Barreto, mulato pobre, mas livre” — Foto: Anibal Philot

Normalmente avesso a carnaval e futebol, o autor virou tema da Unidos da Tijuca, em 1982, pelas mãos do carnavalesco Renato Lage. A escola levou para a Marques de Sapucaí, ainda sem o Sambódromo, o enredo “Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre”.

Memória do mundo

Na Biblioteca Nacional, no Centro, está guardada a parte palpável do legado de Lima Barreto para o Rio. São 1.134 documentos, entre originais, cartas, anotações e recortes de jornais e revistas que ele guardava com zelo na casa de Todos os Santos. O conjunto é reconhecido pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) na categoria Memória do Mundo.

O precioso manuscrito do “Diário do hospício”, por exemplo, está no acervo. Nele, a letra esguia do autor conta seus dias em uma de suas suas passagens pelo Hospício Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, fruto de sua relação prolongada com a bebida. Da experiência, além do diário, saiu o romance inacabado “Cemitério dos vivos”

— Lima Barreto sofre essa grande experiência radical do hospital psiquiátrico e das injustiças sobre a pele, sobre a carne, sobre a condição humana. O diário dele é de uma dramaticidade imensa, é comovente. Há muitos anos que eu passei por essas páginas, e é algo que comove, de uma atualidade tremenda — diz o também imortal Marco Lucchesi, presidente da Fundação Biblioteca Nacional.

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