A cretinice de quem vaza – e compartilha – vídeo íntimo

Fran, de Goiânia, teve um vídeo íntimo divulgado pelo ex-parceiro. As redes sociais compartilharam. Isso serve ao controle da sexualidade da mulher. Por Nádia Lapa
por Nádia Lapa

 

A história é conhecida: casal grava momentos íntimos, eles brigam, e o cara posta as imagens online. Acontece toda hora, e a vítima da vez é a Fran, uma jovem de 19 anos moradora de Goiânia. O ex-parceiro era um cretino de 22 anos com quem ela mantinha um relacionamento. O vídeo viralizou por meio do whatsapp, serviço de mensagens instantâneas.

Muita gente, muita mesmo, fez piada, repetindo um gesto de Fran nas redes sociais. Descobriram a identidade da moça, espalharam o endereço dela, o local de trabalho. Fran, aterrorizada, mudou o visual, se afastou do trabalho, deixou de sair. Mas a coragem de Fran é espetacular: mesmo com a vida sendo devastada por alguém em quem ela confiava, ela se empoderou e procurou a delegacia para registrar ocorrência.

Agora, o inquérito policial está correndo; o pai do autor do “vazamento” diz que o filho está cabisbaixo, triste, sem sair de casa. Mas em que momento a vida dele foi exposta? Porque o roteiro é sempre o mesmo: quem é julgada, xingada, maltratada, é a mulher que aparece nos vídeos ou fotos. O homem? É o comedor, o espertão que, além de conquistar uma gatinha, ainda está mostrando seu troféu para o resto do mundo.

Fran fez sexo. Coisa que a maioria de nós já fez, já quis fazer, ou continua querendo e fazendo. Qual o grande pecado dela? Sim, fazer sexo, ter desejo e expressá-lo. Simone de Beauvoir fala sobre como a sociedade encara a sexualidade feminina: “a civilização patriarcal condena a mulher à castidade; reconhece-se mais ou menos abertamente ao homem o direito a satisfazer seus desejos sexuais, ao passo que a mulher é confinada ao casamento: para ela, o ato carnal, em não sendo santificado pelo código, pelo sacramento, é falta, queda, derrota, fraqueza. Ela tem o dever de defender sua virtude, sua honra; se “cede”, se “cai”, suscita o desprezo; ao passo que até na censura que se inflige ao seu vencedor há admiração”.

Eu não consigo decidir o que é pior nessa história toda. Se a traição do ex-parceiro em compartilhar as imagens, ou se as pessoas inflamadíssimas nas redes sociais fazendo julgamento público da vítima. Repassando o vídeo, fazendo piadas, tirando fotos semelhantes às imagens, apenas com o fim de humilhar ainda mais a jovem. Por que as pessoas fazem isso? Por que elas se regozijam com o sofrimento alheio? Por que existe essa vigilância constante da sexualidade da mulher?

Isso só faz com que as mulheres não se sintam confortáveis em se expressarem, em terem prazer, em viverem do jeito que lhes agrada. Ninguém ganha com isso. O já falecido psicanalista José Antonio Gaiarsa consegue resumir em um parágrafo:

“A infinita estupidez humana e sua arte suprema de manter a si mesmo e aos próximos eternamente infelizes. Todos vigiando a todos para que ninguém faça o que todos gostariam de fazer – principalmente amar, rir, dançar, cantar. Só na hora certa, só no lugar certo!”

Fran foi vítima da estupidez humana, a do sujeito com quem ela teve relações. Depois, mais ainda, com a cretinice de cada um que compartilhou o vídeo. Em breve, teremos uma nova história parecida. Mais uma mulher será exposta e terá a vida devastada. Como consequência, todas as outras mulheres ficam receosas em confiar nos parceiros. E não temos como culpá-las por isso.

É minha culpa!

 

Fonte: Carta Capital

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