A era Obama e a questão do racismo

Apesar de os americanos terem eleito um presidente negro, ainda é muito cedo para poder se falar sobre raça livremente e sem temor nos EUA

THE NEW YORK TIMES

 

Se Tom Wolfe tivesse decidido escrever A Fogueira das Vaidades tendo como cenário a Washington moderna, uma farsa sobre vidas e raças em colisão, ele não poderia ter feito algo melhor senão inventar a insólita história de Shirley Sherrod.

Shirley, uma funcionária pública negra que trabalhava numa agência do Departamento de Agricultura na Geórgia, ficou instantaneamente célebre na semana passada por causa de um discurso que proferiu numa convenção da National Association for the Advanced of Colored People (NAACP), em que abordou a evolução da sua posição na questão da raça. Um blogueiro conservador fez circular um vídeo editado em que Shirley supostamente sugeria que se recusara a ajudar um agricultor branco (algo que o agricultor desmentiu). A partir daí, Shirley foi repudiada pela NAAC e seu nome foi explorado pelos comentaristas de direita. Ela foi demitida e depois readmitida, até, finalmente, receber um telefonema presidente Barack Obama.

Sob muitos aspectos, a traumática experiência de Sherrod seguiu um padrão familiar na vida americana, em que qualquer pessoa que se manifeste sobre o tema raça corre o risco de atrair a indignação pública e humilhação.

Talvez esperássemos que a eleição de um presidente negro de algum modo tornaria essa questão menos sensível e volátil, da mesma maneira que a eleição de John F. Kennedy parece ter apaziguado tensões entre os católicos americanos e o establishment protestante do país.

Diálogo. Mas como os eventos da semana passada deixaram claro, apenas a presença de Obama não nos livrará de um diálogo racial. Se a campanha de Obama tinha como lema “a esperança”, então de algum modo, era a esperança de um diálogo mais nuançado. Um momento revelador ocorreu em 2007, quando o então senador Joe Biden, resumindo a atração de Obama como negro, condescendentemente descreveu-o como “íntegro” e “articulado”. Um tipo de comentário que, em outra ocasião e se fosse um outro líder negro, teria levado Biden à ruína.

Obama, em vez disso, tratou o caso com indiferença, afirmando que nenhuma desculpa era necessária. No ano seguinte, escolheu Biden como seu vice. Ao seguir esse caminho, Obama parecia indicar um novo paradigma para a discussão envolvendo o negro e o branco – uma discussão em que a figura pública pode usar da linguagem fora dos limites e paradigmas definidos e esperar ser julgada num contexto mais amplo. Em outras palavras, a promessa de campanha de Obama não foi de uma sociedade pós-racial onde ninguém mais repararia na cor da sua pele; mas uma sociedade onde você pode falar sobre raça, independente da sua cor – sem ser chamado automaticamente de racista.

Mas a esperança de que a eleição de Obama poderia, num passe de mágica, fazer desaparecer a tensão das últimas décadas, esvaneceu, enquanto o NAACP e o Tea Party trocavam acusações sobre raça. Líderes negros descobriram que não podemos ainda abordar questões legítimas sobre racismo sem ser acusados de “racista”. E uma grande parte do movimento do Tea Party que está simplesmente irritado com os gastos do governo acha que na opinião pública, o racismo ainda está ligado a seus mais radicais elementos anteriores à Guerra da Secessão.

E então temos o caso de Shirley Sherrod, que parece ter reunido todos os elementos familiares à disfunção racial na nossa sociedade: intolerância e hipersensibilidade, flagrantes distorções e moralismo.

Sob alguns aspectos, a eleição de Obama parece ter confundido ainda mais o debate. Alguns conservadores brancos podem não sentir mais nenhum arrependimento pelo legado racial do país agora que um homem negro está sentado no Salão Oval. Mas grupos defensores dos direitos civis ainda discutem sobre como combater o racismo numa nação governada por um presidente que tem sobrenome africano.

Al Sharpton, que se considera um líder negro da geração de Obama, argumenta que muitos de seus colegas mais velhos estão preocupados com os manifestantes do Tea Party e não se concentram nas oportunidades que surgiram com o governo. “Algumas pessoas estão habituadas a combater o poder, em vez de usar o poder para vencer”, disse ele. “Você não conquista o controle da Casa Branca, dois governadores e o Departamento de Justiça e depois começa a discutir com pessoas carregando cartazes.”

Por que, na era Obama, não avançamos para além desse velho e enfadonho debate? Uma razão talvez seja o fato de que o próprio Obama procura evitar o assunto. O presidente está atolado numa crise econômica miserável que coloca em perigo o controle do poder pelo seu partido; os assessores da Casa Branca não querem que ele se distraia com um debate que pode parecer supérfluo para muitos americanos. E para esses conselheiros, talvez, o apelo de Obama entre os eleitores brancos como um político birracial tem sido ajudado pelo fato de ele não falar muito a respeito disso.

Antes de ingressar na vida política, Obama escreveu extensamente sobre sua identidade racial numa autobiografia. Quando candidato à presidência, assediado pela controvérsia sobre comentários racistas de seu pastor, o reverendo Jeremiah Wright, pronunciou um discurso muito ponderado, mas menos pessoal, sobre os rancores e suposições raciais que permeiam as duas culturas, branca e negra, em que ele nasceu.

Mas, como presidente, o instinto de Obama, muito por causa da irritação de líderes negros mais velhos, tem impedido qualquer discussão mais longa sobre animus ou identidade racial (foi Biden, não o presidente, que falou pelos dois quando, recentemente, afirmou que não acredita que o movimento Tea Party tem bases no racismo).

Obama fez comentários ásperos quando da prisão do seu amigo, o professor Henry Louis Gates Jr, e depois realizou a famosa “cúpula da cerveja”. Mas, dentro da Casa Branca, suas incursões no debate, num momento em que procurava concentrar a atenção pública na reforma da saúde, foram consideradas um erro desastroso.

Temor. Talvez a relutância do presidente reflita os perigos enfrentados por qualquer presidente que represente uma minoria americana – o medo de ser considerado, mesmo que injustamente, chauvinista ou provinciano.

Para o historiador Robert Dallek, biógrafo de John F. Kennedy, qualquer que tenha sido o efeito que Kennedy provocou nas atitudes dos americanos com relação ao catolicismo, ele se consolidou não pela sua eleição em 1960, mas pela crise dos mísseis com Cuba em 1962. Foi a partir desse momento, diz o historiador, que Kennedy provou que podia ter a confiança dos americanos para proteger o interesse nacional como um todo – um julgamento que se estendeu, talvez, para os católicos americanos em geral.

Visto dessa maneira, talvez Obama não seja apenas um presidente escravo da crise financeira, mas um líder negro também em busca de seu momento definidor como presidente. As conflagrações continuam, enquanto nós aguardamos. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

É JORNALISTAS

Fonte: Estadão

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