‘A gente quer deixar a faculdade com a nossa cara também’, diz oradora de ato pela democracia

Manuela Morais é a 3ª pessoa negra a presidir o centro acadêmico da Faculdade de Direito da USP

Manuela Morais, 19, mal tinha esquentado a cadeira de presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto quando subiu no palco da Faculdade de Direito da USP e falou em nome dos estudantes no ato em defesa da democracia realizado no dia 11 de agosto.

Seu discurso, escrito em colaboração com quatro colegas do movimento estudantil, marcou a diferença que existe entre o ambiente acadêmico de 1977, quando foi lida a “Carta aos Brasileiros”, e o de hoje, na leitura da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito“.

“Somos jovens, negros, periféricos, uma nova intelectualidade que é fruto da escola pública, das quebradas e das favelas”, disse Manuela no pátio da São Francisco, como é conhecida a faculdade.

A nova realidade demográfica da universidade não apareceu de forma gratuita; ela é uma das principais bandeiras da atual gestão do centro acadêmico mais antigo do Brasil, que, em 119 anos de história, só teve três pessoas negras na presidência.

Cursando o segundo ano, egressa de escolas públicas de Araraquara (interior de São Paulo) e vivendo na Casa do Estudante (moradia estudantil para alunos de baixa renda), Manuela recorre a um lema para explicar os planos no C.A.: “Isso é só o começo, a Travessia vai virar a Sanfran do avesso”.

Travessia é o movimento estudantil a que ela pertence, formado por alunos independentes e outros ligados ao PSOL. Sanfran é o apelido da Faculdade de Direito da USP, que fica no largo São Francisco (região central da capital).

E virar do avesso? “É no sentido de inverter muitas tradições que foram feitas para a elite branca paulistana”, diz Manuela. “A gente quer deixar a Sanfran com a nossa cara também.”

Qual sua avaliação do ato de 11 de agosto? Foi uma resposta às ameaças golpistas que o atual governo estava propagando. O ato demonstrou uma unidade dos diversos setores da sociedade, dizendo que não vamos retroceder na atual ordem política, que é democrática.

As duas cartas pela democracia que foram lidas no dia 11 eram suprapartidárias. O seu discurso fugiu a esse script, com a menção do presidente Jair Bolsonaro (PL). Por quê? Eu citei porque eu achava importante —todos nós, na verdade— dar nome à pessoa que tem ameaçado a democracia. Mas o caráter suprapartidário do evento foi importante para unir muita gente.

Você é a terceira pessoa negra a presidir o XI de Agosto. A questão racial pesou na eleição? Pergunta difícil, porque a Travessia já estava bem consolidada. Talvez a Letícia Chagas, que foi a primeira mulher negra [a presidir o XI de Agosto], tenha sentido mais essa pressão do que eu.

É uma questão normalizada? Não, com certeza não. Tanto que a chapa que estava concorrendo com a gente não tinha uma pessoa como eu na presidência ou em cargos altos.

Você já viveu episódios de discriminação ou racismo na faculdade? Nunca experienciei. Não que não aconteça; acontece muito, mas não aconteceu comigo. Eu acho que a minha turma, que é a 194 [alunos que ingressaram em 2021], com 51% das pessoas vindas de escola pública, já é muito mais confortável para esse tipo de pessoa igual a mim do que a [turma] 191, que foi a primeira turma de cotistas étnico-raciais [ingresso em 2018].

Quanto a presença de alunos cotistas muda o ambiente acadêmico? Muda muito. As pessoas novas que estão entrando têm novas demandas e novas vivências. Existem temas no direito que são sucateados, mas essa nova leva de estudantes vai olhar com mais atenção para eles.

Por exemplo, o anticárcere, o antiproibicionismo e a questão do aborto. Todas as pessoas que têm uma vivência, que são mais afetadas por esse tipo de questão, vão voltar aos olhos para esses temas que às vezes nem são conversados, não ficam em pauta.

[Hoje em dia] tem muita gente engajada nesses temas. Tanto que a gente tem um observatório antiproibicionista, que pauta a descriminalização das drogas e do aborto.

E é um tema muito ligado à pauta racial, porque a maioria das pessoas que são presas com drogas é preta e jovem, enquanto uma pessoa branca, às vezes portando uma droga até mais pesada, não é presa. Se a pessoa vive aquilo na pele, fica mais fácil ela entender a importância.

A composição demográfica da USP é muito diferente hoje do que era alguns anos atrás. A universidade está preparada para a nova realidade? Com certeza não. A bolsa Papfe [Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil], que é o auxílio para as pessoas de baixa renda, é só de R$ 500. Isso mostra total despreparo, porque não tem como viver com R$ 500 no centro de São Paulo.

Tem que ter uma bolsa maior, para os alunos conseguirem focar na faculdade. O que acontece agora é que os alunos entram, mas precisam começar a trabalhar logo de cara, às vezes até em dois empregos, justamente para conseguir estudar.

Chega um momento em que fica insustentável, porque a faculdade cobra muito. Então, para conseguir permanecer, [o aluno] precisa negligenciar a faculdade. Isso é um ponto problemático muito grande. Não basta só entrar; o aluno tem que ficar.

Além disso, faltam melhorias no Crusp [Conjunto Residencial da USP], que é a moradia estudantil da USP, na Cidade Universitária. Sempre tem problema lá. Na Casa do Estudante, precisa continuar a reforma em alguns andares para que as pessoas consigam morar.

E além desses tópicos materiais? Tem várias questões. Falta representatividade entre os professores. Um incentivo muito grande para o aluno preto e pobre é perceber que existem professores, diretores ou reitores que estão ali e são iguais. Outro ponto muito importante é a bibliografia. A gente lê muitos homens brancos, poucas mulheres —e mulheres negras menos ainda.

Quais são as principais bandeiras da sua gestão no centro acadêmico? Principalmente a permanência das pessoas pobres na faculdade. A Casa do Estudante é algo que a gente prioriza muito, além do aumento das bolsas.

E também a transformação da Sanfran. A gente tem um lema: “Isso é só o começo, a Travessia vai virar a Sanfran do avesso”. É no sentido de inverter muitas tradições que foram feitas para a elite branca paulistana. Então a gente quer deixar a Sanfran com a nossa cara também.

Um exemplo é o que a gente fez na gestão passada: dar ao auditório novo o nome do professor Rubino de Oliveira, que foi o primeiro professor negro da Sanfran [fez concurso para direito administrativo em 1879], e eu acho que é a única pessoa negra [retratada] nos quadros enormes nas salas da faculdade.

O quadro do próprio Luiz Gama [advogado negro que é considerado o maior abolicionista do Brasil] é pequetitico, fica escondido e ninguém vê. É esse tipo de coisa que a gente pauta.

A nossa carta-programa apresenta coisas como cotas para pessoas trans, por exemplo, que é algo pouquíssimo debatido. Esse tipo de luta é muito importante para a gente.

E, claro, sempre estar nas ruas, trazer a juventude de volta para as ruas.

Tem espaço para isso? A partir de 2013 as manifestações nas ruas adquiriram outras características, não? Talvez a partir deste ano isso comece a mudar. O evento do dia 11, inclusive, foi um ótimo pontapé para mostrar que a sociedade está unida. A carta teve mais de 1 milhão de assinaturas em pouquíssimo tempo.

E é por isso que, no meu discurso, eu fiz um chamado para a juventude estar sempre alerta, forte e preparada. Porque, mesmo que a gente derrote o fascismo no governo, o fascismo pode continuar existindo como ideia. A gente tem que estar sempre preparado para, se acontecer algo, estar nas ruas lutando pelos nossos direitos.

Por que você escolheu entrar em uma faculdade de direito? No início, eu enxergava o direito como uma ferramenta de mudança da sociedade. Mas, quando eu comecei a estudar, eu vi que, na verdade, o direito faz a manutenção do estado problemático da sociedade. Agora eu escolhi continuar no direito para, mesmo que de uma forma não tão impactante, transformar, por exemplo, o sistema de Justiça criminal do Brasil.

Você já sabe qual carreira vai seguir quando se formar? Eu quero muito trabalhar na Defensoria Pública, que é um órgão incrível. Mas, ultimamente, tenho muito interesse em também seguir a área acadêmica, fazer pesquisa, mestrado, doutorado, principalmente na área de criminologia.

Quero estudar as determinações do crime, como e por que ele ocorre, por que os criminosos são rotulados como criminosos, [estudar] política pública para evitar o crime, esse tipo de coisa.

Eu acho que a criminologia é o essencial do direito. Tem que ser o foco dos acadêmicos agora, porque o Brasil é um dos países que mais encarceram. E o Brasil encarcera uma determinada população, assim na cara dura mesmo: jovens, pretos e pobres —são sempre eles.

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