No Brasil colonial universidade remetia a pensamento crítico e liberdade, pilares para a autonomia de um povo. Em 1808, foram criados cursos e academias financiadas pelo Estado brasileiro, como as faculdades de medicina que originaram a UFBA (Universidade Federal da Bahia) e UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em seguida os cursos jurídicos no Convento de São Francisco, em São Paulo, e engenharia na UFRJ. A universidade brasileira, vale lembrar, só conquistará a autonomia plena a partir da Constituição de 1988.
Uma das funções fundamentais da universidade — vanguarda de direitos sociais e soberania para a sociedade — é defender e desenvolver a pesquisa científica, além de formar profissionais. E é a respeito da formação de profissionais que eu gostaria de refletir um pouco. Até pouco tempo atrás, de onde vinham esses futuros profissionais?
A estrutura econômica da sociedade brasileira é capitalista e suas contradições atravessam o processo educacional, retardando ou impossibilitando a classe trabalhadora de ingressar ou concluir o ensino superior. A rotina de trabalho e a demanda dos estudos entram em conflito, e muitos desistem de seus sonhos e objetivos.
O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) é uma das ações que o extinto PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação), lançado em abril de 2007, pôs em prática. O programa surgiu para diminuir as desigualdades e proporcionar às pessoas a possibilidade de cursar universidades federais, sobretudo a quem mora no interior. O ingresso nas instituições de ensino superior privadas pode ser realizado por meio do Prouni (Programa Universidade Para Todos) e do Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior), que, qualificando mais gente, contribuem para diminuir a desigualdade social e econômica.
Eu, Gabryele Moreira, mulher preta, nordestina de Salvador, periférica do bairro de Cajazeiras e cientista, sou um exemplo de que as políticas públicas funcionam. Graças às cotas raciais, ingressei na Universidade Federal de Sergipe em 2013, em física médica, que pude cursar por meio de políticas de permanência ao estudante.
Foram também as políticas públicas que me permitiram ser bolsista da Agência Internacional de Energia Atômica, vinculada à ONU. Para essa bolsa de estudos, que incentiva a carreira de mulheres no setor nuclear, foram selecionadas cerca de 110 mulheres no mundo. Eu estava entre elas. O projeto tem o nome de Marie Curie, a única cientista no mundo a ganhar dois prêmios Nobel, um em química e outro em física.
O objetivo dessa agenda da ONU é que até 2030 alcancemos um mundo melhor para todos os povos e nações, e para tanto a igualdade de gênero é fundamental — a bolsa estimula a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.
A lei nº 12.711, de agosto de 2012, conhecida como “Lei das Cotas”, completará dez anos. Ela garante a estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas 50% das vagas em universidades e instituições públicas federais de ensino médio, técnico e superior. As vagas devem ser preenchidas, “por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos, indígenas”, e por pessoas com deficiência e com renda familiar de até 1,5 salário mínimo. A lei, que integra as políticas públicas de acesso à educação, visa diminuir a desigualdade — não podemos nos esquecer como foi construído o Brasil, com mão de obra escravizada. Até hoje sofremos com o racismo.
Outro programa de que pude usufruir, já dentro da universidade, foi a Bolsa Permanência, uma política que oferece ajuda financeira sobretudo a estudantes quilombolas, indígenas ou em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Em maio, concluí o mestrado em ciências, no programa de Tecnologia Nuclear do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares da USP. Na minha família me tornei uma referência por ser a primeira pessoa a concluir um curso superior – e mestrado – em uma universidade pública. O meu exemplo incentivou minha irmã, que acabou ingressando na Universidade Federal da Bahia.
Quando a universidade vira suas cadeiras para a periferia, temos uma ciência mais rica, tanto nas áreas humanas e sociais quanto nas exatas e biológicas, com a participação de indivíduos que não partem das mesmas visões e vivências daqueles que até então ocupavam, praticamente com exclusividade, os bancos universitários. As políticas públicas favorecem a inclusão das mulheres na ciência, além de nos levarem a refletir sobre as questões étnico-raciais em um Brasil tão demarcado territorial e economicamente. Elas melhoraram a vida das pessoas, principalmente de quem é oriundo de periferias e favelas, que concentram a maior parte de pessoas negras e pobres. A educação é um direito de todes!
Gabryele Moreira
Física médica, mestre em ciências, colaboradora do PerifaConnection e bolsista do Programa Marie Curie da AIEA/ONU.