por: Ivair Augusto Alves dos Santos
Com a aprovação do Projeto de Lei 36 /99, do deputado Paulo Rocha (PT-PA), foi sancionada, em 29 de setembro, a Lei nº 12.033, que torna pública, em vez de privada, a ação para processamento de crime de injúria, quando a ofensa atingir a raça, cor, etnia, religião ou origem. A mudança está no fato de que a ação está condicionada à representação do ofendido. Isso significa que, para processar criminalmente o ofensor, a vítima deverá fazer uma representação ao Ministério Público, que vai se incumbir de promover a ação, se entender que é cabível.
Um dos principais argumentos para a criação desse projeto de lei foi que as pessoas vítimas de injúria em razão da raça, cor, etnia, religião ou origem são geralmente pobres e não têm como arcar com os custos de um processo. O argumento utilizado pelo deputado Antonio Carlos Biscaia foi o seguinte. “Aquele que desconhece a assistência judiciária prestada pela Defensoria Pública , provavelmente, desconhece também o Ministério Público“. Segundo o deputado Biscaia, a alteração é conveniente porque “a ação pública condicionada evita que a vítima venha a sofrer intimidação para não ajuizar queixa-crime ou retirá-la, caso tenha feito“.
A ação penal pública condicionada à representação deve conter o pedido/autorização do ofendido ou de seu representante legal, que declarará o desejo de que a persecução penal prossiga. O pedido pode ser verbal ou oral. A denúncia que não contenha a exposição do fato criminoso deverá ser rejeitada pelo juiz. A falta de assinatura do Ministério Público na denúncia acarreta sua nulidade. Nessas ações o juiz pode decretar de ofício a prescrição.
A primeira questão que se coloca é conhecer quantas seriam as ações penais de injúria qualificadas por cor ou raça. Esta resposta daria uma dimensão do impacto da Lei 12.033/09 no seio da população negra.
Ao pesquisar o número de processos em diversos Tribunais de Justiça dos Estados, destacaram-se os dados do TJ do Rio de Janeiro. No período de 2005-2007, tem-se o total de 6.208 ações penais que, por si só, é um número expressivo de casos quando se lembra tratar-se unicamente do Estado do Rio de Janeiro.
Quando se avaliou a quantidade de casos de racismo que conseguiram transformar-se em ações judiciais, apresentou-se um cenário novo. Segundo Seth Racusen (2002), para cada 17,7 Boletins de Ocorrência, somente 1 se viabiliza em ação no Judiciário. Isso pode significar um cenário de milhares de ocorrência que chegam às Delegacias de Polícia, com motivação em práticas de racismo, que acabam sendo filtradas e transformadas em centenas de ações, ocorrendo mensalmente no judiciário carioca.
Ao tomar como hipótese a pesquisa apresentada por Seth Racusen (2002), de que em média 17,7 ocorrências só uma acaba em ação penal, temos um número de 109.981 ocorrências no período de 2005 a junho de 2007. Um quadro que apresenta uma realidade de um racismo estrutural da sociedade brasileira, que acaba sendo invisibilizado, como se as práticas de racismo ocorressem de forma eventual e não tão freqüentemente como indicam os dados.
Os dados fornecidos pelo TJ-RJ revelam uma sociedade brasileira que convive com milhares de situações de racismo no seu cotidiano e ignora, minimiza e acaba deixando uma lacuna ética, com efeitos perversos para o conjunto da população negra. As ações penais são resultado do trabalho dos movimentos negros que, durante todo o século XX, denunciou a existência da discriminação racial e contribuiu para a conscientização da população negra de como ocorriam as manifestações de racismo.
Em diversas pesquisas já mencionadas e em depoimentos de militantes do movimento negro envolvidos em serviços de assistência jurídica, é recorrente a afirmação de que, por parte do poder judiciário, Ministério Público e delegados, a tendência é desqualificar determinadas atitudes como não sendo crime de racismo tipificado na lei antidiscriminatória, transformando-as em injúria. Estabeleceu-se um padrão normativo em relação à maioria de casos de situações de práticas de racismo que tenderá a ser desclassificado de racismo para a injúria. O comportamento dos magistrados e dos promotores parece estar longe de ser de aplicadores ou executores dogmáticos da legislação; pelo contrário, tem prevalecido a sua interpretação em transformar a maioria das situações de discriminação racial em injúria.
As ações que aparecem em maior quantidade são as que estão enquadradas no art. 140, § 3º, do Código Penal, como injúria. Ao examinar o número total de ações penais no ano de 2005, 2006 e 2007 (até junho), tem-se os seguintes dados: 1.886, 2.773 e 1.549 respectivamente. Ao se comparar com os números enquadrados como injúria no mesmo período correspondente, encontra-se: 1.650 (2005), 2.543 (2006) e 1.436 (até junho de 2007). Traduzindo em percentuais, verifica-se que os casos de injúria representaram 87,5% (2005), 92%(2006) e 92,7% (2007). Isso significa que uma média em torno de 92% dos casos de práticas de racismo acabou sendo desclassificada como injúria.
A principal consequência, ao transformar os crimes de prática de racismo em injúria está no caminho que estas ações passam a receber do sistema penal, porque as ações acabam não tendo representação no período dos 6 meses e são arquivadas, extinguindo a punibilidade dos acusados. As consequências da desclassificação acabam criando um padrão referencial, que é alimentado pelo uso da jurisprudência.
A partir de 30 de setembro de 2009, o cidadão que for moralmente ofendido por injúria referente à raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência pode dispensar o advogado e recorrer ao Ministério Público para formular uma representação contra o seu ofensor. A Lei 12.033 alterou o Artigo 145 do Código Penal de 1940, ao permitir que esse tipo de ação se torne pública condicionada, ou seja, que o Ministério Público possa ajuizar a ação, desde que solicitado pelo ofendido, sem a necessidade de intermediários. Pela legislação anterior, esse tipo de ação era de caráter estritamente privado, ou seja, a pessoa agredida constituía advogado para representá-la na ação. Agora o agredido tem a opção de pedir ao promotor que a represente. Na ação penal pública condicionada, a ação criminal só é ajuizada com o consentimento expresso da vítima.
Como o prazo para a representação ao Ministério Público sobre a vontade de mover a ação é de seis meses a partir da revelação da identidade do autor da agressão, o procurador disse que, com a nova regra, a vítima deverá se manifestar no prazo de seis meses a partir do momento em que a lei entrou em vigor.
Com a Lei nº 12.033/09, o trabalho de informar e subsidiar o Ministério Publico e o Magistrado sobre o cotidiano das relações raciais, pelo movimento negro no Brasil ganha uma nova dimensão. A experiência de mais de 20 anos da criminalização do racismo impôs uma dura realidade às vitimas de racismo. A legislação por si só não garantiu as mudanças que o Constituinte de 1988 acreditava ao definir o racismo como imprescritível e inafiançável.
Os dados fornecidos pelos Tribunais de Justiça e a experiência do movimento negro na assistência judiciária às vitimas do racismo mostraram um sistema de justiça é incapaz de reconhecer a existência do racismo institucional e estrutural na sociedade brasileira.