A luta por novas cores nas empresas

A ONG Educafro, com um largo histórico de defesa da causa negra, enviou cartas em agosto para três nomes influentes no mercado financeiro brasileiro: Gilson Finkelsztain, presidente da Bolsa de Valores de São Paulo, a B3; Marcelo Barbosa, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão estatal que regula e fiscaliza o mercado de capitais; e Pedro Melo, diretor-geral do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), dedicado ao fomento de boas práticas de governança nas empresas.

Com um preâmbulo respeitosamente protocolar, o texto não economiza no tom de denúncia bem característico da retórica ativista adotada há décadas pela ONG, uma das pioneiras na defesa de cotas raciais em universidades no Brasil. Em resumo, acusa as entidades dirigidas pelos três executivos de se omitir diante da ausência de pretos e pardos nas salas refrigeradas onde são tomadas as decisões nas empresas de um país em que eles são 56% da população.

A carta assinada por Frei David Santos, fundador da Educafro, e Handemba Mutana dos Santos, um advogado que ajudou a ONG a estruturar a ofensiva, argumenta que as entidades responsáveis pelas regras e pelos padrões que regem o mercado de capitais precisam exigir um compromisso de empresas de capital aberto com ações efetivas de equidade racial e de gênero em postos de liderança. Anúncios recentes de programas dirigidos a pretos e pardos, como os feitos por uma varejista brasileira e uma multinacional alemã, tendem a ter foco em trainees, não na alta direção.

“O INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, UM DOS ALVOS DO PROTESTO, PROMETE FAZER UMA PESQUISA PARA MEDIR A PRESENÇA DE PRETOS E PARDOS NA DIREÇÃO DE EMPRESAS”

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No Brasil, cotas sociais com reserva de vagas para pardos, negros e indígenas vigoram em universidades federais desde 2012. No ano passado, o IBGE detectou pela primeira vez que o número de pretos e pardos superou o de brancos nas universidades públicas, chegando ao patamar de 50,3%. Nas faculdades privadas, o acesso também ficou mais fácil com crédito universitário. No entanto, isso ainda não se refletiu no mercado de trabalho, onde a falta de profissionais qualificados sempre foi uma das explicações preferidas para a ausência de diversidade racial. Ainda hoje, negros se concentram nas funções operacionais e de menor remuneração e enfrentam taxa de desemprego de 17,8%, bem acima dos 10,4% entre os brancos.

Não há sequer um negro entre os presidentes das 100 maiores companhias listadas na Bolsa. O problema não é exclusivo do Brasil. Nos Estados Unidos, onde 10% dos formandos em universidades são negros, eles são apenas 4% dos altos executivos. No Reino Unido, negros e outras minorias étnicas já são 22% dos universitários, mas só 8% dos líderes nas empresas não são brancos.

Frei David Santos, da ONG Educafro, pergunta por que há tão poucos negros na Avenida Faria Lima, o centro financeiro paulistano, e na Bolsa de Valores. Foto: André Dusek / Estadão Conteúdo / AE

A distorção brasileira é maior porque aqui, diferentemente desses dois países, a população negra é a maioria. Aproxima-se mais do cenário da África do Sul, onde 79% são negros marcados pelo passado recente de segregação, mas ocupavam apenas 16% das funções executivas nas companhias em 2017, segundo dados da consultoria McKinsey.  “No Brasil, as empresas e esses órgãos que organizam o mercado atuam como se estivessem na Noruega. Há escritórios formados só por brancos e ninguém se sente questionado por isso”, disse Frei David. O Brasil não se diferencia somente pelo tamanho do problema, mas também pela defesa de cotas como solução. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, critérios raciais são levados em conta nas admissões de muitas universidades e de uma parte das empresas, mas reservas específicas de vagas são mais raras.

Nas cartas às entidades, Frei David pediu encontros para apresentar sugestões concretas. Acostumado a ver suas correspondências serem ignoradas, ele recebeu em poucos dias convites para reuniões on-line com representantes das três entidades, um sinal de que alguma coisa está mudando no radar do ambiente empresarial brasileiro.

­ Foto: Eduardo Knapp / Folhapress

Uma série de fatores contribui para isso. Um dos principais é a onda de movimentos antirracistas desencadeados em todo o mundo pelo assassinato do cidadão negro George Floyd por um policial branco nos Estados Unidos, que chegou ao Brasil. As empresas estão sendo chamadas por ativistas, consumidores, investidores e seus próprios funcionários a se posicionar contra o racismo e ter uma atitude coerente para dentro e para fora, expostas à velocidade dos debates que ameaçam a imagem delas nas redes. E estão atônitas. “Ouvimos as sugestões da Educafro e, com muita humildade, respondemos: para muita coisa a gente não tem resposta. Compreendemos que precisamos avançar nesse ponto, mas ainda estamos avaliando como”, disse Pedro Melo, dirigente do IBGC, único dos três destinatários das cartas da Educafro que aceitou ouvir Frei David na companhia de seus diretores.

Valéria Café, diretora de Vocalização e Influência do IBGC, disse que os movimentos antirracistas evidenciaram o diagnóstico de que há um problema racial no país que até agora não foi abordado pelas empresas no Brasil. Segundo ela, o primeiro passo da entidade deverá ser viabilizar uma nova pesquisa para medir a presença de negros em cargos de decisão nas empresas. O último levantamento consistente, para ela, é o do Instituto Ethos, de 2016, que diagnosticou apenas 4,7% de pretos e pardos entre altos executivos e 4,9% nos conselhos de administração. “Temos um papel, sim, de construir uma agenda positiva no sentido de inclusão.”

­ Foto: Cris Faga / Folhapress

Dados do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da B3, que reúne desde 2005 empresas listadas na Bolsa comprometidas com o desenvolvimento sustentável, indicam que a mudança é mínima. Da atual carteira formada por 30 empresas (como Natura, Bradesco, Banco do Brasil e Renner, entre outras), que somavam R$ 1,6 bilhão em valor de mercado no fim do ano passado, somente 3% delas têm negros em seus conselhos. E 30% dizem discutir ou avaliar estratégias de inclusão em cargos da alta administração.

No ano anterior, com uma composição diferente, eram 7% e 21%, respectivamente. Na carteira de 2018, quando o questionário usado para admitir as empresas era menos específico sobre esse tema, 69% das candidatas ao selo de sustentabilidade informaram que não tinham negros no conselho e nem programa de inclusão.

Por isso a B3 se tornou o principal alvo da Educafro. A ONG sugeriu cinco ações que a Bolsa poderia tomar para fomentar a inclusão de pretos e pardos nas empresas. Uma delas é justamente aperfeiçoar o questionário nesse tema. Em vez de apenas perguntar às empresas, a sugestão é estabelecer desde metas de inclusão até mesmo veto a quem não tiver políticas para atingi-las.

Nos Estados Unidos (foto) e na Europa, as cotas raciais são a exceção. Foto: Spencer Platt / Getty Images

O presidente da B3 delegou a conversa com Frei David à superintendente de Sustentabilidade da Bolsa, Gleice Donini. Procurado por ÉPOCA, Finkelsztain também a indicou para falar do assunto. Assim como o IBGC, a executiva disse que a B3 ainda analisa as propostas da Educafro, mas afirmou que a instituição está estudando uma nova mudança na avaliação de diversidade racial na revisão que está fazendo do questionário do ISE para o próximo ano, que leva em consideração sugestões de empresas e da sociedade civil por meio de uma consulta pública.

Donini disse que as perguntas sobre raça já foram ampliadas na última revisão, em 2018, mas admitiu que é preciso mais “assertividade” nesse tema: “Estamos distantes do ideal nessa área, mas o ISE estimula a empresa a mensurar o problema para definir como tratá-lo”, afirmou a superintendente. Ela frisou que o papel do ISE é de “indução” e avaliou que a transparência dos dados e a comparação entre as empresas já é suficiente para estimular as empresas a adotar melhores práticas, apesar do avanço lento.

Ela também não tem uma resposta ainda para outra sugestão da Educafro: criar um índice de equidade racial e de gênero que pudesse mostrar o desempenho só das empresas que investem nisso. Em março, ao participar do evento anual Ring the bell for gender (Toque o sino pela equidade de gênero), o presidente da B3 disse ao lado de executivas convidadas para a abertura simbólica do pregão que um índice capaz de “tangibilizar” a inclusão da mulher como “vetor de mudança” seria uma evolução. Para Donini a pauta racial deve ganhar força também. “Essa é uma agenda que mudou na sociedade agora, assim como a feminina anteriormente”, disse a executiva. “As empresas estão claramente mudando sua postura, ouvindo essas demandas na questão racial. É um tema que veio para ficar.”

“NO BRASIL, O DEBATE SOBRE A DIVERSIDADE DE GÊNEROS NOS CONSELHOS DAS EMPRESAS VEIO PRIMEIRO. AGORA A QUESTÃO DA COR DA PELE ESTÁ GANHANDO MAIS ATENÇÃO”

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Sofia Esteves, fundadora da Cia de Talentos, uma das maiores consultorias de RH do país, admitiu que o tema de gênero teve mais espaço nas empresas, mas disse que isso está mudando. “Políticas de gênero ainda são difíceis de avançar, mas, como a questão racial envolve uma dor, empurra-se para debaixo do tapete. Só que agora isso não é mais possível”, afirmou. Na Cia de Talentos, 80% dos clientes pedem algum corte racial nos processos seletivos. E para aumentar a atração, ela já segue há anos uma receita: deixar para trás exigências como faculdade de primeira linha ou inglês fluente. “Isso não faz mais sentido. Para as empresas, o que conta mesmo é o perfil do indivíduo, de onde ele veio e de que lugar vê o mundo. Não há dúvidas de que as empresas têm melhores resultados com isso”, disse Esteves.

Pesquisas tendem a mostrar que diversidade muitas vezes traz benefícios financeiros e de inovação paras as empresas. Um dos estudos mais citados é o da McKinsey, que apontou um aumento de 1% na geração de caixa a cada 10% de avanço na diversidade em companhias. Uma pesquisa da consultoria americana BCG com 1.700 empresas em oito países identificou que, entre as empresas com diversidade acima da média, 45% inovavam. Entre as menos diversas da amostra, só 26%. As do primeiro grupo tinham faturamento 9% maior que as do segundo grupo.

­ Foto: Richard Baker / In Pictures / Getty Images

Outro fator econômico que favorece a agenda racial é o fato de que os conceitos de sustentabilidade são vistos cada vez mais pelos investidores como uma coisa ampla, que se resume hoje em três dimensões na sigla em inglês ESG: ambiental, social e de governança. A primeira assombra as multinacionais e exportadoras brasileiras diante da condenação mundial da política do governo brasileiro para a Amazônia, desencadeando uma série de iniciativas delas para se afastar desse risco de imagem. A de governança é a mais desenvolvida já pelas empresas. “A dimensão social é a que está ganhando mais força agora e ficou mais latente na pandemia”, avaliou Marcella Ungaretti, analista de ESG da XP Investimentos.

“Já são US$ 30 trilhões gerenciados no mundo por fundos que consideram os parâmetros ESG para decidir em que empresa vão investir. É uma demanda crescente dos investidores e analistas, que só ganhou destaque no Brasil mais recentemente, mas avança rápido”, disse Ungaretti.

Em vez de indicar um porta-voz, a CVM respondeu a ÉPOCA sobre as sugestões de Frei David — que foi ouvido por um conjunto de executivos da autarquia sem a presença do presidente — por meio de um comunicado. Diz que incentiva a transparência das empresas em relação à diversidade e tem a previsão de revisar o Formulário de Referência (conjunto de informações que empresas de capital aberto são obrigadas a oferecer ao mercado) para reforçar a divulgação dos aspectos ESG. A nota também afirma que desenvolve ações de inclusão no sistema financeiro e recomenda aos gestores de empresas considerarem as recomendações de diversidade em órgãos de administração e gerenciais do Código Brasileiro de Governança Corporativa (CBGC). “A questão racial insere-se na temática da diversidade e é um dos aspectos a serem considerados pelos emissores (de ações)”, diz o texto, sem mencionar iniciativa regulatória.

­ Foto: Richard Baker / In Pictures / Getty Images

Para o historiador Douglas Belchior, dirigente da rede de cursos preparatórios de universitários negros Uneafro e integrante da Coalizão Negros de Direitos, as empresas estão chegando muito tarde a esse assunto, mas terão de acelerar o passo. Ele não tem dúvida de que o mercado de trabalho é a nova fronteira dos movimentos negros por inclusão, que já conseguiram as cotas em universidades e no serviço público federal. “O racismo no Brasil é perverso a ponto de conseguir manter as pessoas fora das empresas sem ter segregação institucionalizada”, afirmou Belchior. “Os jovens, inclusive os brancos, não aceitam mais isso. Meus filhos não vão mais aceitar que não há lugar para eles. Não será nunca mais como é agora”, completou o historiador.

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