Este artigo foi escrito em memória de todas as mulheres gaúchas vítimas de feminicídio e as crianças gaúchas assassinadas ou órfãs em razão dele.
1 – Introdução
O ponto de partida dessa escrita são os feminicídios ocorridos durante o feriado da Páscoa de 2025, quando dez mulheres foram assassinadas em apenas quatro dias no Rio Grande do Sul. Esses crimes expuseram, de forma brutal, a insuficiência das políticas públicas de enfrentamento às violências contra as mulheres no Estado do Rio Grande do Sul.
O feriado da Páscoa de 2025 foi amargo e aterrorizante para as mulheres gaúchas. Em apenas quatro dias, dez mulheres foram assassinadas por seus companheiros porque contrariaram as expectativas masculinas de controle sobre seus corpos e vontades. Nenhuma delas tinha a Medida Protetiva de Urgência, criada há 19 anos pela Lei n.º 11.340/2006 – Lei Maria da Penha para proteger a mulher em situação de violência através do afastamento de seu agressor, justamente para ajudar a interromper o ciclo da violência doméstica e prevenir o feminicídio. Aqueles feminicídios deixaram muitas de nós em estado de alerta, para quem trabalha e/ou milita na defesa dos direitos das mulheres, apreensão, angústia, tristeza, indignação, impotência foram a tônica daqueles dias.
Para nós, que trabalhamos na Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, não foi diferente. E estivemos, junto com as organizações sociais e outros órgãos públicos, no centro dos debates da crise das políticas públicas gaúchas de enfrentamento à violência contra as mulheres, as necessidades e suas possíveis respostas. É por isso que buscamos aqui registrar o processo pelo qual a Moção de Recomendação ao Governador, para a recriação da Secretaria de Políticas para Mulheres, proposta e articulada pela Deputada Bruna Rodrigues e assinada por 50 de 55 parlamentares da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, resultou no anúncio positivo do Governador de 25/6/2025.
A partir desse contexto, analisamos o processo de incidência da Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa (PEM/ALRS) que culminou na Moção de Recomendação ao Governador para a recriação da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), aprovada por unanimidade em 2025. O artigo demonstra como a articulação entre técnica e política produziu efeitos concretos no ciclo de políticas públicas.
2 – A tradição da violência contra as mulheres gaúchas
Há mais de uma década o Rio Grande do Sul mantém altos os índices de violência contra as mulheres, especialmente violência doméstica e feminicídios. É preciso afirmar que os crimes da Páscoa não ilustram um aumento nesses tipos de crimes nos últimos anos, essa noção é equivocada. O que de fato ocorre é que os feminicídios da Páscoa colocam sobre a mesa da agenda pública gaúcha um problema público que, até ali, parecia importar só aos movimentos feministas e de mulheres do Estado.
Os dados estatísticos produzidos pelos órgãos de segurança pública demonstram esse contexto, que ainda devem ser lidos considerando uma subnotificação de 58%, segundo pesquisa divulgada pelo Observatório da Mulher contra a Violência do Senado Federal, em 2024. Segundo os Indicadores da Violência Contra a Mulher – Lei Maria da Penha, divulgados pela Secretaria Estadual de Segurança Pública, os dados de ocorrências desse tipo de violência junto a seus órgãos são os seguintes:
Registros de Violência Contra as Mulheres – SSP/RS – 2012 a 2025
| Femicídio Tentado | Femicídio Consumado | Estupro | Ameaça | Lesão Corporal | |
| 2012 | 101 | 1.454 | 44.969 | 27.123 | |
| 2013 | 229 | 92 | 1.448 | 43.879 | 26.137 |
| 2014 | 286 | 75 | 1.407 | 44.771 | 25.542 |
| 2015 | 311 | 99 | 1.472 | 42.841 | 24.533 |
| 2016 | 263 | 96 | 1.574 | 39.606 | 22.667 |
| 2017 | 322 | 83 | 1.661 | 37.946 | 22.960 |
| 2018 | 355 | 116 | 1.712 | 37.623 | 21.815 |
| 2019 | 359 | 97 | 1.714 | 37.381 | 20.989 |
| 2020 | 318 | 80 | 2.246 | 33.756 | 18.901 |
| 2021 | 255 | 96 | 2.455 | 32.762 | 18.007 |
| 2022 | 263 | 111 | 2.783 | 31.389 | 18.197 |
| 2023 | 237 | 85 | 2.775 | 33.439 | 19.908 |
| 2024 | 235 | 72 | 2.457 | 31.458 | 18.743 |
| 2025* | 134 | 36 | 1.054 | 15.818 | 9.285 |
| TOTAIS | 3.567 | 1.138 | 24.758 | 462.669 | 267.684 |
Fonte: elaboração própria com base nos Indicadores da Violência Contra a Mulher – Lei Maria da Penha (SSP/RS, 2025); *de janeiro a junho.
Já o DATAJUD – Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, informa os dados referentes a novos processos e procedimentos judiciais a cada ano, por feminicídio e por violência doméstica, além das expedições de Medidas Protetivas de Urgência. No período de 2020 a 2025, os dados para o Estado são os seguintes:
Processos e Procedimentos Judiciais sobre
Violência Contra as Mulheres – RS – 2020 a 2025
| ANO | NOVOS PROCESSOS | EXPEDIÇÃO DE NOVAS MPUS | |
| FEMINICÍDIO | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA | ||
| 2020 | 171 | 60.093 | 14.979 |
| 2021 | 655 | 62.596 | 51.923 |
| 2022 | 745 | 66.989 | 53.752 |
| 2023 | 777 | 76.962 | 65.458 |
| 2024 | 911 | 80.931 | 68.021 |
| 2025* | 446 | 38.897 | 32.014 |
| TOTAIS DO PERÍODO | 3.704 | 386.468 | 286.147 |
Fonte: elaboração própria com base nos dados do DATAJUD – Base Nacional de \Dados do Poder Judiciário (CNJ, 2025); *de janeiro a maio.
Nota-se uma enorme discrepância entre os dados do Poder Executivo e os dados do Poder Judiciário o que, num primeiro momento, revelam a desarticulação entre esses órgãos. E, logo, ficam demonstrados os altos índices de feminicídios e violência doméstica no Rio Grande do Sul. Segundo o DATAJUD, ainda, o RS é o terceiro Estado brasileiro que mais expediu Medidas Protetivas de Urgência em todo o ano de 2024, o que se repete em 2025 (até maio), ficando atrás apenas de SP e PR.
É neste contexto que ocorrem os dez feminicídios durante os quatro dias do feriado da Páscoa deste ano. E, no mês seguinte, o feminicídio de Juliana Tais Mateus, 40 anos, assassinada a facadas pelo ex-companheiro, em Três Coroas, três dias após ter concedida a Medida Protetiva de Urgência e o agressor ter sido solto e dispensado do uso de tornozeleira eletrônica. Além de chocar pela quantidade em tão poucos dias e pela brutalidade, os crimes do feriado da Páscoa ajudam a perceber que a violência contra meninas e mulheres no Estado pode ser ainda maiores do que o registrado, dado que nenhuma delas possuía a Medida Protetiva de Urgência, nenhuma havia buscado os órgãos públicos, ilustrando uma muito provável subnotificação.
No caso de Juliana, a lógica é ainda mais perversa: Juliana seguiu as orientações divulgadas pelos órgãos e autoridades públicas, buscou a Delegacia de Polícia de sua cidade, denunciou a violência doméstica e a tentativa de feminicídio, teve a Medida Protetiva de Urgência concedida e foi assassinada três dias depois. Esse caso é a fotografia da falência do Estado, que conta com a legislação, mas negligencia a política pública que deveria efetivá-la. Para além da Medida Protetiva de Urgência, de forma suficiente e adequada, não há abrigo para que a mulher em situação de violência possa se afastar do agressor, não há Patrulha Maria da Penha que lhe garanta segurança, não há Centro de Referência que faça o acompanhamento multidisciplinar do caso; e, ao que parece, existem tornozeleiras eletrônicas para o monitoramento do agressor, mas elas não foram usadas nesse caso.
Legislações, quando não acompanhadas de estruturas institucionais e recursos, tornam-se meros enunciados simbólicos, incapazes de romper o ciclo de violência que atravessa raça, classe e gênero.
3. A importância de uma Procuradoria Especial da Mulher no Legislativo
Na Assembleia Legislativa, a Procuradoria Especial da Mulher, criada há 10 anos como órgão de promoção e defesa dos direitos das mulheres gaúchas, havia trocado sua gestão em 18 de março deste ano, com a posse da Deputada Bruna Rodrigues, primeira mulher negra a conquistar uma cadeira no Parlamento gaúcho e a comandar o órgão especializado. A partir daí, foi composta a equipe, escolhidos os temas prioritários –entre eles o enfrentamento à violência contra as meninas e mulheres– e elaborado o planejamento dos trabalhos.
No dia 16 de abril a Procuradora enviou solicitação de reunião ao Governador do Estado, que tinha por objetivo tratar das políticas para mulheres no Estado, uma vez que se tinha um diagnóstico inicial e se buscava abrir o canal de comunicação com o Poder Executivo a respeito da implementação dessas políticas. A reunião, porém, não foi agendada de pronto.
No dia 1º de maio, o jornal Zero Hora publica o artigo Feminicídio: RS em estado de emergência, de autoria da Deputada Bruna Rodrigues. A reunião extraordinária do Comitê Rede Lilás, realizada no dia 13 de maio na Assembleia Legislativa, por solicitação da Deputada Bruna Rodrigues, a recriação da SPM foi a principal demanda, sendo a Moção de Recomendação abordada e apoiada em várias manifestações. O debate daquela manhã escancarou a realidade: todas as manifestações continham relatos da quase total ausência das políticas para mulheres no Estado, da desarticulação e falta de coordenação da Rede Lilás.
O Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo, que chegou a ter 15 servidoras, serviço de vigilância e viatura, em 2013, hoje conta com 2 servidoras e tem horário de atendimento em horário comercial, de segunda a sexta-feira; as 114 Patrulhas Maria da Penha em funcionamento significam uma cobertura de menos de 23% do território estadual; há somente 23 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs, das quais apenas uma possui plantão 24h nos 7 dias da semana, as demais funcionam em horário comercial, de segunda a sexta-feira; e o Estado conta com 13 Casas Abrigos, o que cobre apenas 3% do território estadual.
4. A escolha do instrumento: a Moção de Recomendação
No domingo de Páscoa em que alguns feminicídios são divulgados, a Deputada Bruna solicitou à equipe a elaboração de uma Nota Pública da Procuradoria a respeito, que foi divulgada nas redes sociais na segunda-feira. No decorrer da semana ela afirma na tribuna do Plenário da ALRS e nas redes sociais a gravidade da situação de violência contra as mulheres gaúchas e pauta a necessidade de declaração de Estado de Emergência pela Vida das Mulheres; o que é reforçado em sua participação no programa Conversas Cruzadas da RBS TV, no dia 23 de abril.
No dia 25 de abril, a Deputada Bruna reuniu a equipe da Procuradoria para discussão da situação e alinhamento das ações do órgão nos próximos dias. Uma de suas principais preocupações era a falência das políticas públicas que não foram capazes de alcançar e proteger aquelas mulheres que perderam suas vidas no feriado da Páscoa. A Deputada estava convencida, naquele momento, de que uma Secretaria de Políticas para Mulheres, caso existisse, teria a capacidade de coordenar e articular políticas de enfrentamento à violência de gênero, desde que nos mesmos moldes do órgão criado em 2011 e extinto em 2015; ou seja, de forma estruturada pelos recursos humanos, orçamentários e materiais especializados e necessários. E instou a equipe a encontrar a forma com que se poderia chegar à recriação da Secretaria. Algumas de nós chegamos a opinar pela impossibilidade da Procuradoria agir nesse sentido, uma vez que se tratava de órgão do Legislativo e a recriação de uma Secretaria de Estado ser de iniciativa legislativa exclusiva do Governador.
A Deputada, no entanto, não se contentou com nossa primeira opinião e insistiu para que encontrássemos uma alternativa viável que respeitasse as competências privativas do Governador. Os dias seguintes foram de trabalho de pesquisa técnica da equipe e de articulação política da Deputada Bruna que, conversando com parlamentares, obteve o entendimento inicial, de boa parte da situação e da oposição, pela necessidade de uma Secretaria de Políticas para Mulheres como resposta à crise vivida no Estado. Em nova reunião da Deputada com a equipe avaliou-se que o instrumento correto para externar aquela concepção de política pública, a partir do Poder Legislativo, era a Moção de Recomendação.
A moção é um instrumento político que, segundo o Glossário de Termos Legislativos da Câmara Federal, “visa expressar a manifestação da Casa Legislativa em razão de um fato que enseje repúdio, louvor, apoio, desconfiança, solidariedade, regozijo, entre outros”. Na concepção da Procuradoria Especial da Mulher da ALRS, a situação de crise conduzia ao pré-acordo pela necessidade de recriação da SPM, como articulado pela Deputada com parlamentares; e a via para fazer chegar ao Governador essa compreensão, sem invadir sua competência, era a Moção de Recomendação. O instrumento mantinha a ação parlamentar dentro das competências constitucionais do Poder Legislativo, que não incluem o desenho e implementação de políticas públicas diretas e permitia incidir politicamente sobre a ação necessária do Poder Executivo.
Restava, então, redigir a Moção, que deveria conter o diagnóstico do problema público –os altos índices de violência contra as mulheres e o vazio de políticas públicas na área, no Estado– e a recomendação de adoção, pelo Governador, da resposta de política entendia como adequada –a recriação da Secretaria de Políticas para Mulheres. Com esse conteúdo e objetivo, a Moção de Recomendação pela recriação da Secretaria de Políticas para Mulheres no RS foi redigida em 29 de abril. No dia seguinte, durante a sessão plenária, a Deputada Bruna Rodrigues iniciou as tratativas com demais Deputadas e Deputados, obtendo as 20 primeiras assinaturas na Moção; o que é retomado na sessão plenária do dia 6 de maio, chegando a 46 assinaturas. No dia 13 de maio o documento obtém mais duas assinaturas e chega às 50 no dia 27 de maio. Nos meses seguintes, a Moção recebeu inúmeros apoios, em especial, de Câmaras Municipais do interior gaúcho, que formalizavam sua manifestação através de moções; e, em 5 de junho o Conselho Nacional de Direitos Humanos, reunido em sessão plenária ordinária, aprova apoio à Moção de Recomendação, por unanimidade.
Em paralelo, a Procuradoria Especial da Mulher focou seus esforços em ações sobre as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres e em agendar reunião com o Governador para entregar-lhe a Moção de Recomendação. No dia 30 de abril, por ocasião da visita do Governador ao Parlamento, a Deputada Bruna conversa com ele e renova o pedido de agenda feito em 16 de abril. Em 11 de junho, durante roteiro da Procuradoria Especial da Mulher em Brasília, a Deputada Bruna se encontra com o Governador na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal e, ainda sem o agendamento da reunião solicitada, renova o pedido mais uma vez, através de um ofício entregue em mãos. A reunião finalmente é agendada para a semana seguinte, ocorre no dia 18 de junho, no Palácio Piratini, e a Deputada convida para a acompanhar as demais integrantes da Bancada Feminina da ALRS. Nessa ocasião, entregue a Moção de Recomendação, o Governador agendou um novo encontro para a semana seguinte.
No dia 25 de junho, a Deputada Bruna e as demais integrantes da Bancada Feminina da ALRS retornaram ao Palácio Piratini acreditando que se tratava de uma segunda reunião com o Governador. Lá chegando, são encaminhadas a um dos salões que encontram lotado de outras autoridades e pessoas dos quadros das Secretarias de Estado, na sua grande maioria mulheres. Para esse dia, o Governador realizou um evento para seu anúncio de recriação da Secretaria de Políticas para Mulheres, no qual apresentou o organograma e atribuições da pasta. O Projeto de Lei que propõe a recriação da SPM foi protocolado na Assembleia Legislativa no dia 11 de julho, sob o nº 276/2025, sendo aprovado por unanimidade no dia 28 de agosto. Em 24 de setembro, o PL é sancionado e a Lei nº 16.394/2025 é publicada. Passados 10 anos de sua extinção, período em que os movimentos feministas e de mulheres do RS persistiram na demanda por sua recriação, e após quase cinco meses da proposição da Moção de Recomendação pela Deputada Bruna Rodrigues, a Secretaria de Políticas para Mulheres volta a ser uma realidade no Rio Grande do Sul.

Fonte: Elaboração das autoras.
5. Sem Orçamento não há Política Pública para Mulheres
É evidente o desmonte das políticas para mulheres através da desidratação do orçamento, que se materializa na insuficiência de equipamentos, na precarização dos serviços especializados, na ausência do Estado quando o assunto é o enfrentamento à violência contra meninas e mulheres. Paralelamente à articulação da Moção de Recomendação, a Deputada Bruna Rodrigues e a equipe técnica da Procuradoria Especial da Mulher tinham a preocupação com o orçamento público estadual para as políticas para mulheres. Pouco adiantaria alcançar o objetivo da Moção, a recriação da SPM, se não houvesse orçamento suficiente para a implementação das políticas públicas. No dia 2 de maio, na sessão plenária da Assembleia Legislativa, a Deputada denuncia a queda drástica nas previsões orçamentárias para políticas para mulheres, a partir da extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres, em 2015, conforme análise da equipe técnica da Procuradoria Especial da Mulher da ALRS:

A análise orçamentária realizada pela Procuradoria Especial da Mulher buscou nos Projetos de Lei Orçamentária Anual para 2010 a 2025 a previsão de valores para as políticas para mulheres, destinados ao órgão do Poder Executivo estadual responsável pela promoção dos direitos humanos de meninas e mulheres –Coordenadoria da Mulher (2010), Secretaria de Políticas para Mulheres (2011 a 2014), Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos (2015 e 2016), Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos (2017 e 2018), Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (2019 e 2020), Secretaria da Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social (2021 e 2022) e Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (2023 a 2025).
Para estabelecer a comparação, os valores foram atualizados pelo IPCA, de janeiro do ano de cada previsão até janeiro de 2025. O resultado da análise fala por si e demonstra que a vontade política da gestão pública é fator decisivo para as políticas públicas para mulheres, uma vez que seu desenho e implementação dependem obrigatoriamente de previsão orçamentária, que tem a vontade política entre seus elementos determinantes. E, de fato, quando a Secretaria de Políticas para Mulheres foi uma realidade no Estado (2011 a 2014), se verificam as maiores previsões orçamentárias para os anos seguintes (2012 a 2015). A partir da criação da SPM, a previsão orçamentária passa de R$ 400 mil para R$ 10 milhões e logo para R$ 19 milhões, onde se mantem por três anos; com sua extinção em 2015, essa previsão cai drasticamente, chegando a vergonhosos R$ 27 mil em 2020. Neste ano de 2025, a previsão orçamentária de R$ 3 milhões não chega a um terço do menor valor anual do quadriênio de existência da SPM.
Por essa razão e diante do desmonte das políticas para mulheres, em 10 de junho, a equipe técnica da Procuradoria Especial da Mulher elabora e a Deputada Bruna Rodrigues propõe Emenda à LDO com o objetivo de tornar prioritárias as políticas para mulheres na próxima LOA; emenda que infelizmente não foi aprovada pela Assembleia Legislativa. No dia 18 de setembro, o Governador enviou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei Orçamentária Anual para o exercício de 2026, anunciando o valor de R$ 18 milhões para a nova Secretaria e R$ 15 milhões para o monitoramento de agressores por meio de tornozeleiras eletrônicas. No dia seguinte, a Deputada Bruna Rodrigues, em entrevista a veículo de comunicação local, afirma que o valor está muito abaixo das expectativa. Na sua avaliação, o valor deveria se de, pelo menos, R$ 40 milhões ou R$ 50 milhões. Essa avaliação não arrisca um valor ao azar; a Deputada Bruna Rodrigues fundamenta sua afirmação na simulação do crescimento do orçamento para políticas para mulheres no Estado até 2026, caso tivesse sido mantido o ritmo impresso no período de existência da SPM, de 2011 a 2014, conforme elaborado pela equipe técnica da Procuradoria Especial da Mulher:

Com base nos mesmos dados orçamentários de 2011 a 2015, período em que o crescimento do orçamento para as políticas para mulheres é verificado, a equipe técnica da Procuradoria Especial da Mulher simulou a manutenção do ritmo desse crescimento. A simulação resulta numa previsão mínima de R$ 49 milhões, uma previsão média de R$ 66 milhões e uma previsão máxima de R$ 84 milhões. De fato, considerando o estado de emergência para a vida e segurança das mulheres gaúchas, bem como a situação de desmonte de equipamentos e políticas para mulheres, o valor anunciado pelo Governador do Estado para 2026 não é adequado.
No que se refere ao monitoramento de agressores por meio de tornozeleiras eletrônicas, política que, segundo a peça orçamentária para 2026, tem por objetivo “implantar sistema destinado ao monitoramento de agressores, para proteção de vítimas de violência doméstica (Lei Maria da Penha)”, apesar do valor previsto de R$ 15 milhões para o próximo ano, a execução orçamentária dos anos de 2024 e 2025 demonstra que a iniciativa, na prática, é limitada. Os mesmos R$ 15 milhões foram previstos para esses dois exercícios financeiros, sendo executados apenas R$ 650 mil em 2024 e pouco mais de R$ 2 milhões em 2025, o que equivale, respectivamente, a 4% e 14% do previsto. No caso de Juliana, que abordamos no início deste artigo, seu agressor chegou a ser preso em flagrante por tentativa de feminicídio, sendo solto três dias depois sem monitoramento, sem tornozeleira eletrônica, mesmo dia em que consumou o crime.
Mais uma vez, com o apoio técnico da Procuradoria Especial da Mulher da ALRS, a Deputada Bruna propõe emendas à LOA para 2026, na tentativa de aumentar a previsão orçamentária da nova Secretaria em R$ 10 milhões; e especializar, nos órgão de segurança pública de atendimento a meninas e mulheres em situação de violência – Patrulha Maria da Penha, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e Salas Lilás, parte dos recursos previstos para, respectivamente, a Brigada Militar, a Polícia Civil e o Instituto Geral de Perícias. Estas emendas buscavam minimamente fortalecer as políticas de enfrentamento à violência contra mulheres, uma vez que a previsão orçamentária não condiz com as necessidades da área. Com parecer pela rejeição, as emendas foram rejeitadas na Comissão de Finanças da Assembleia Legislativa no dia 13/11/2025 e em sua sessão plenária do dia 2/12/2025.
6. Considerações Finais
A Moção de Recomendação que articulou e encaminhou este processo é um ato-fato público multifacetado que traduz o trabalho articulado entre técnica e política que acontece na PEM/ALRS: é documento técnico pelo seu conteúdo de diagnóstico de um problema público grave e de indicação da política pública que pode dar-lhe resposta; é também instrumento político pela articulação da Deputada Bruna Rodrigues, na busca e obtenção da adesão de 50 de um total de 55 parlamentares, através de suas assinaturas. A Moção de Recomendação tornou-se, assim, um ato do Poder Legislativo que expressa o entendimento da expressiva maioria do Parlamento gaúcho a respeito do tema. E é exemplo de política pública porque, apesar de não ter origem no Poder Executivo, mas provocando-o, fez dar início ao ciclo da política pública que pode resultar na efetiva recriação da Secretaria de Políticas para Mulheres no Rio Grande do Sul.
Esse processo evidencia como o Legislativo, quando há vontade política, pode incidir no ciclo das políticas públicas. A articulação liderada pela Procuradoria Especial da Mulher da ALRS transformou a indignação social em ação institucional, resultando na recriação da Secretaria de Políticas para as Mulheres. O Projeto de Lei que recriou o órgão foi sancionado pelo Governador do Estado na tarde do dia 24 de setembro, quando também foi anunciada a titular da pasta. Mas este processo não termina com essa sanção. Ainda há muito o que reconstruir em termos de políticas para meninas e mulheres no Rio Grande do Sul.
O ciclo das políticas públicas para mulheres deve ser dinâmico, consistente e perdurar enquanto houver desigualdade, discriminação e violência. Como costuma dizer a Deputada Bruna Rodrigues à equipe da Procuradoria Especial da Mulher, é preciso seguir a luta – técnica e política – pela destinação de recursos orçamentários adequados e suficientes para as políticas para mulheres e pelo desenho e implementação dessas políticas; para que, de fato, deem respostas à violência e façam a diferença na realidade das meninas e mulheres gaúchas, para assegurar que a nova Secretaria não seja apenas simbólica ou ficção.
Afinal, é de recursos humanos, materiais e orçamentários que a nova pasta depende para ser efetiva na coordenação da Rede Lilás, na ampliação de equipamentos especializados e na implementação de políticas de prevenção, proteção e acolhimento. Enquanto persistirem desigualdades, discriminações e violências, a luta seguirá sendo técnica e política, como defendido pela deputada Bruna Rodrigues e a equipe da Procuradoria Especial da Mulher da ALRS: por uma política pública capaz de salvar vidas e garantir plenos direitos às mulheres gaúchas.

Eriane Pacheco – Assistente Social, Mestra em Políticas Sociais e Serviço Social pela UFRGS e Doutoranda em Ciência Política UFRGS. Sua trajetória profissional inclui atuação com pessoas em cumprimento de pena de prestação de serviços comunitários e com crianças e adolescentes em acolhimento institucional. Tem experiência como assessora parlamentar e dedica-se à pesquisa e à militância feminista e antirracista, com ênfase na análise de políticas públicas e na participação social. Atualmente, é chefe de gabinete da deputada estadual Bruna Rodrigues, da Bancada Negra.

Izabel Belloc – Mulher branca cis-heteronormativa; cidadã brasileira e uruguaya; advogada e ocupante do cargo efetivo de Analista Legislativa – Consultora da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, lotada na Procuradoria Especial da Mulher; bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS; mestra em Género y Políticas de Igualdad pela FLACSO Uruguay; doutoranda do Doctorado en Ciencias Sociales da FLACSO Argentina; integrante da Red de Politólogas #NoSinMujeres; pesquisa participação nos espações públicos de poder na América Latina, em perspectiva interseccional de etnia, raça e gênero.
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