A morte de Nelson Mandela traria o caos à África do Sul?

Enviado por / FonteDo CartaCapital

Já se tornou um ritual terrivelmente comum. As autoridades anunciam que Nelson Mandela, de 94 anos, foi internado no hospital e as declarações são avidamente dissecadas em busca de subtextos e pistas nas entrelinhas. O porta-voz do presidente é bombardeado por telefonemas e não dá respostas satisfatórias, equipes de TV se reúnem diante de um hospital, tentando adivinhar onde o ex-presidente da África do Sul está sendo tratado. Editores burilam os obituários e suplementos, o Twitter se enche de orações e rumores infundados e milhões de sul-africanos ficam de prontidão, perguntando-se: o que acontecerá depois de Mandela?

O primeiro presidente negro da África do Sul, que é praticamente um rei nessa República, testou os nervos do país novamente na semana passada, quando foi internado com uma pneumonia recorrente. Não foi a primeira vez que houve uma corrida geral esperando o pior, frustrada pela famosa resistência do velho combatente. Na última semana, Mandela estaria respirando sem dificuldade. Como o jornalista Phillip de Wet tuitou: “Vale a pena repetir: as estatísticas não favorecem pessoas de idade hospitalizadas com problemas respiratórios. Mas até agora Nelson Mandela sempre as superou.”

A morte tem de levar a melhor um dia, porém. Quando o fizer, deve-se esperar um luto em escala sem precedentes, incluindo um funeral que deverá ter a presença do príncipe Charles da Inglaterra, de Oprah Winfrey e todos os presidentes vivos dos Estados Unidos. A ocasião e o luto vão unir muitos sul-africanos, independentemente de raça, classe ou afiliação política. Mas o que será do país e de sua principal força política, o Congresso Nacional Africano?

Um pequeno mas insistente corpo de opinião se recusa a ceder: que a morte de Mandela anunciará o desmembramento da África do Sul. Alguns acreditam que o herói anti-apartheid e símbolo da reconciliação racial é o cimento que mantém unida essa nação diversificada e às vezes discordante. David Blair, do jornal Daily Telegraph, escreveu recentemente em um blog: “Enquanto ele viver, os sul-africanos vão respirar um pouco melhor e acreditar um pouco mais em seu país. Quando chegar o dia depois de Mandela, essa crença será abalada, não de forma drástica ou imediata, mas lenta e talvez imperceptível. A África do Sul simplesmente será outro país”.

Com menos sutileza, um mito persistente afirma que a população negra vem esperando sua morte para deslanchar uma “noite dos longos punhais”, um “genocídio dos brancos” para “limpar” a África do Sul. Isto teria levado um pequeno número de brancos a estocar comida em abrigos subterrâneos ou preparar-se para fugir do país. Eles apontam para assassinatos de agricultores brancos e uma sensação de ameaça no estilo caótico do Zimbábue.

O grupo AfriForum, que defende os direitos das minorias raciais, afirmou estar ciente de folhetos que advertem sobre um “surto de assassinatos” e mensagens em redes sociais como: “Vocês só precisam esperar o dia em que Mandela morrer, então viremos pegá-los.”

Ernst Roets, seu vice-presidente, disse: “Nós temos muito medo. Recebemos ligações de pessoas dizendo que temem esse dia e do que deverão fazer então. Há organizações marginais que dizem para deixar o país. Estamos incentivando as pessoas a estar alertas e cuidar de sua segurança. Este é um país perigoso e o crime é um problema, mas se quisermos fazer uma previsão não haverá uma guerra racial generalizada. Poderá haver incidentes isolados, mas eu acho que a maioria das pessoas, sejam brancas ou negras, quer viver em coexistência pacífica.”

O discurso de potencial instabilidade na África do Sul sem Mandela não é exclusivo dos brancos. Mbali Ntuli, uma jovem política negra, afirma: “Mandela sempre será simbolicamente poderoso, porque anunciou nossa transição para a democracia. É poderoso porque sempre sentimos que poderemos retornar ao caos. Seu legado ainda age como um freio para os jovens, que sem isso poderiam recorrer a meios violentos.”

Que a morte do Prêmio Nobel da Paz provocará uma chacina é uma “visão simplista”, disse Ntuli, de 25 anos , “mas eu acho que há certa verdade aí, e os jovens de seu partido parecem acreditar que isso poderá acontecer. Não acho que serão os negros atacando os brancos. A ‘noite dos longos punhais’ seria dos pobres voltando-se contra os ricos em uma guerra de classes. Mas sou otimista e gosto de acreditar que não somos tão primitivos a ponto de uma pessoa morrer e de repente irromper uma guerra civil”.

A própria disposição de Ntuli a falar sobre a morte do pai da nação — um assunto tabu entre muitos sul-africanos mais velhos e tradicionais, alguns dos quais insistem em um sigilo e uma idolatria quase no estilo norte-coreano — é indício de uma troca de guarda. De fato, ela representa um desafio para o CNA, partido a que Mandela dedicou sua vida e uma lealdade inabalável.

Ntuli dirige a ala jovem do principal partido de oposição, a Aliança Democrática (AD). Quando a África do Sul for às urnas no próximo ano, ela estará cortejando as quase 2 milhões de pessoas nascidas depois do fim do apartheid em 1994 e que poderão votar pela primeira vez. Diferentemente dos mais velhos, esta geração “nascida livre” chega à idade de votar, 18 anos, sem fidelidades partidárias. A capacidade do CNA de usar suas antigas glórias está diminuindo em meio a frustrações sobre desemprego e desigualdade.

“Nelson Mandela é o último símbolo real da era de luta, heróis que tinham verdadeira credibilidade”, disse Ntuli. “Outros tinham credibilidade, que agora terminou por causa de suas lealdades variadas. Hoje você vê muito questionamento político entre os jovens; restou muito pouca nostalgia. Os jovens pensam em por que eles votam, enquanto antes queriam votar em certo partido por causa de seu legado”.

A própria história de Ntuli é um toque de despertar para o CNA. Filha de um motorista de táxi e uma professora, Ntuli cresceu nos bairros pobre e subúrbios da província de KwaZulu-Natal, mas seu sotaque de classe média a fez ser rotulada de “coco” (branca por dentro). Ela lembrou: “Quando entrei na política eu estava muito interessada no CNA, mas descobri que meu modo de falar e meus amigos me faziam sentir uma estranha lá”.

A AD enviou rapidamente votos de saúde a Mandela na semana passada, e nunca hesitou em citá-lo, enquanto afirmava que o CNA está perdendo de vista seus objetivos iniciais. Allister Sparks, um jornalista veterano e comentarista político, gosta de compará-lo a Abraão Lincoln — um republicano que hoje transcende as linhas partidárias e é igualmente respeitado por republicanos e democratas.

Mandela está aposentado da política há tempo, mas o CNA o colocou no palco em seu último comício antes das eleições de 2009, um golpe teatral que provocou aplausos e canções da era de luta em um estádio lotado em Joanesburgo. “Eles o exploraram um pouco, o que eu achei vergonhoso”, lembra Sparks. Na eleição do ano que vem ele estará tão frágil que o partido no governo não poderá usar o trunfo do 20º aniversário de sua eleição como presidente.

“O CNA está em dificuldades, quer ele esteja vivo ou morto”, prevê Sparks. “Acho que ele vai perder mais terreno. Espero que sim, porque se tornou arrogante. Sua força diminuiu em cada eleição desde 1994 e desta vez poderá ter menos de 60%. Está cheio de facções e um dia vai se desintegrar. Isso não será ruim, mas bom para o país. O declínio do CNA é do interesse da democracia. Precisamos chegar ao ponto em que possamos ter uma mudança de regime periódica nas urnas.”

“A ideia de que a África do Sul depende de um homem e um partido é uma falha de compreensão do processo que devemos passar”, ele disse. “As previsões de que a África do Sul vai desmoronar existem desde que me lembro, e sou jornalista há 62 anos.”

Juntamente com a Aliança Democrática, o CNA também enfrenta a ameaça de um novo partido, o Agang, fundado por Mamphela Ramphele, uma empresária, acadêmica e ativista que esteve política e romanticamente envolvida com o fundador da Consciência Negra, Steve Biko. Alguns analistas acreditam que Ramphele poderá atrair não apenas a classe média negra ressentida, mas também as massas desempregadas que olham para a AD com desconfiança, vendo-a ainda como um reflexo dos interesses brancos.

Obbey Mabena, um membro do CNA e ex-exilado, disse: “Acho que agora chegamos a um ponto em que algo tem de ceder. Esta é a primeira eleição em que uma fatia significativa do eleitorado não sabe o que foi o apartheid. Eles vão julgar o que está aí por seu próprio mérito, e certamente vai contar contra o CNA”.

Entretanto, embora a margem esteja aberta a especulação, a máquina do CNA está certa de mais uma vitória no próximo ano. A grande pergunta é o que acontecerá na eleição seguinte, em 2019, quando a luta recuar ainda mais no passado. Cerca de 40% da população sul-africana nasceram depois de 1994. Estima-se que a geração nascida livre formará cerca de um terço do eleitorado em 2019. Então Mandela teria 101 anos.

 

 

 

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