Nas últimas quatro décadas não há como falar sobre o Negro no Brasil deixando de fora o poder exercido pela igreja evangélica1, principalmente nas periferias do país. Se antes, esta era enfaticamente tratada como uma religião derivada do cristianismo católico apostólico romano, nos últimos anos, tem sido estruturada como o principal dispositivo de poder e saber, criador de cultura, subjetividade e imaginários no Brasil – adicionando uma camada à noção de Neurose Cultural (GONZALEZ, 1984)2.
Sua principal característica tem sido a neutralização de identidades e mentalidades descoladas da cena colonial de subjugação racial e eliminação da humanidade do inferiorizado, o negro, fornecendo a este a possibilidade de ser apenas um – o que deseja ser branco. Esse atributo, apesar de reconhecido pelo campo progressista, preocupado com a luta por direitos, tem sido naturalizado e pouco observado em relação aos aspectos que impedem à instauração de um estado de “Bem-viver”, de um “projeto político coletivo, antirracista, anticapitalista, de nova ordem social” (SANTOS, 2022)3.
Nesse texto, pretendo elaborar um panorama geral (e ainda incompleto por sua complexidade) narrando de que forma o dispositivo de poder e saber “cristianismo evangélico” tem sido estruturado visando a perpetuação das desigualdades, por meio do domínio da subjetividade negra atrelada à imaginários vinculados a um projeto de poder coordenado por países imperialistas, assentados construção contínua da imagem do branco (cristão) evangélico enquanto ideal, conformando o lugar positivo do negro como uma figura impossível.
Minhas elaborações decorrem do fato de, na última década, ter me dedicado a pesquisar processos de mudança de identidade religiosa e étnica entre evangélicos, bem como suas afiliações com o poder colonial. Sob o olhar de quem intenciona produzir uma antropologia negra, tomando o ódio racial como determinante nas dinâmicas de poder e relações sociais, meu papel é desobedecer epistemicamente (MIGNOLO, 2008)4 ao que me foi ensinado na universidade, combatendo o epistemicídio.
Então, me ponho a revirar os arquivos e encontrar, nas colunas vertebrais as fissuras que existem, afim de desestabilizar esse “corpo” do poder hegemônico, as aberturas e possibilidades não exploradas. Concordo com o que declara Carla Akotirene (2019, p.19)5 “É fetiche epistemicida omitirmos clivagens racistas, sexistas e cisheteronormativas estruturadas pelo Ocidente cristão”. Assim, tais investigações resultaram em elaborações mais aprofundadas sobre a igreja evangélica como constituidora de mentalidades, formas de vida e verdades.
Apropriação contínua e Epistemicídio
Minha discussão durante o mestrado em antropologia tratou especificamente do imaginário de pertença, apropriação e ressignificação étnica, religiosa e cultural que alguns desses grupos de evangélicos tem com o que entendem como “judaísmo” (FERNANDES, 2019)6. Naquele momento, não me detive no componente racial, e sim nas redes transnacionais criadas por evangélicos (e que circulam triangularmente) entre Brasil, EUA e Israel.
Grosso modo, concluí que tais países imperialistas conseguem utilizar da moral cristã conservadora, do isolamento cultural7 do Brasil e da imagem de superioridade que essas nações criam, para expandir seus domínios. Isso se dá, sobretudo, por meio da circulação de interpretações teológicas, da inserção de figuras centrais na política partidária e dos personagens públicos (dentro e fora de espaços virtuais), como pastores, por exemplo. O resultado mais latente dessa investida foi a eleição de um governo de extrema direita no Brasil.
O cerne da problematização foi o que considerei “borramento de fronteiras” entre o que é o cristianismo evangélico e judaísmo. Tais tradições religiosas foram\são interpretadas pelo grande grupo de evangélicos como complementares – apesar de serem teologicamente incompatíveis – já que o judaísmo nega o profeta, a figura central da salvação, Jesus Cristo. Essa noção de que os Judeus, considerados brancos no Brasil, são “irmãos”, contribuiu ainda mais para o afastamento da imagem do negro como ser humano, enfraquecendo tudo o que diz respeito à construção de uma identidade nacional que floresce junto à uma imagem positiva do negro e do indígena. E assim, seguem se apropriando de características culturais relacionadas à herança africana no Brasil, para rejeitar, demonizar e rebaixar seu estatuto.
O pentecostalismo, vertente que mais cresce, é marcado por ter como características centrais a “flexibilidade” e “maleabilidade”, para se adaptar aos diferentes contextos culturais e sociais; foi considerado por Cecília Mariz (2010) como “modernizador de subjetividades, apesar de todo seu discurso encantado aparentemente antimoderno”.8
Se, por volta dos anos 90\2000\2010, muitos cristãos evangélicos viviam paralisados sob o medo e a incerteza da vinda de Cristo ou do fim do mundo, como era esperado na virada do milênio; a última década trouxe outras preocupações para o centro, provocando uma ação cristã voltada a afetar o mundo em que se vive, na intenção de modificá-lo para que os propósitos divinos sejam alcançados.
Assim, assistimos, no campo macro ou microssocial, os evangélicos entrando no jogo social, cultural e político, para disputar também as “políticas de identidade” e reinscrever narrativas: seja elaborando que o Brasil, enquanto “nação evangélica” tem um papel primordial na volta de Cristo (FERNANDES, 2019); ou mais recentemente por meio da aproximação da discussão sobre etnicidade, racialidade e reparação.
As políticas de ações afirmativas, bem como as disputas e tensões em torno da categoria “negro”, que inclui pretos e pardos, tem sido alvo de ataques e movimentações. Em entrevista recente9, a profa Flávia Rios (UFF) destacou que não há nada de incomum em análises diversas sobre a categoria “negro”, considerando que ela foi criada em resposta a um cenário de luta por direitos para a população negra. Entretanto, ela enfatiza que discursos de ressentimento tendem a não ser uma boa base para a criação de políticas públicas saudáveis para a população em geral.
Em relação este tópico vemos sinais recentes de ações que objetivam atacar a categoria “negro” – criada pelos movimentos sociais e adotada pelo IBGE – numa tentativa de apropriação com a finalidade desestabilizá-la. Em setembro de 2025, um deputado conservador do PL (Partido Liberal) propôs a Emenda à Constituição (PEC) nº 27/2024, apelidada de “PEC do Fim dos Pardos”, cuja pretensão foi a de unificar as categorias “pretos” e “pardos” sob a definição de “população negra brasileira”. Também ainda no início deste mês (novembro\2025), o deputado estadual Jurailton Santos (Republicanos) apresentou, na Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA), indicações aos governos estadual e municipal para que as atividades relacionadas ao Novembro Negro também contemplem o público negro cristão.10
Essas ações servem como um aceno para um “movimento” antigo que tenta resgatar as antigas teorias de mestiçagem no Brasil, apresentadas recentemente sob o rótulo de um movimento intitulado “parditude”, protagonizado por influenciadores de redes sociais e financiado por organizações conservadoras e elites.
Diante do exposto, percebo um movimento de conformação quando ouço algumas pessoas me dizendo: “Thayane, mas o Brasil é católico, veja que os adeptos ainda são muitos”. Sim, esse é um fator inegável. Mas, é preciso ponderar que o número de adeptos tem diminuído a cada década e vem colidindo com a maior capilaridade e o ativismo das igrejas evangélicas (principalmente as chamadas “neopentecostais”), que possuem uma proposta de dinâmica centrada na comunidade e se adaptam a diferentes ambientes11.
Repare, de 2017 até os dias de hoje, o número de evangélicos (e pessoas sem religião) só cresce: o CENSO de 2022 apontou que entre os evangélicos o aumento foi de 5,2 pontos percentuais, indo de 21,7% em 2010, para 26,9% em 2022; houve um crescimento dos sem religião de 7,9%, em 2010, para 9,3%, em 2022, ultrapassando o número de seguidores do espiritismo (1,8%) e religiões afro-brasileiras (1%). É fundamental destacar também, que entre os evangélicos o percentual é de pardos (49,1%), seguidos de brancos (38,0%) e pretos (12,0%), com negros somando 61,1%, o que aponta para “sinais de base social mais popular e heterogênea”.12 A reação a esse crescimento tem sido sentida também pela igreja católica, que “perdeu” fiéis.13
Apesar desses dados terem sido considerados “interessantes” do ponto de vista sociológico14, a ênfase dos textos e análises publicadas por acadêmicos e pela mídia está centrada na 1) desaceleração do crescimento dos evangélicos, contrariando o esperado por especialistas que previam um aumento desse grande grupo, gerando uma naturalização, o reforço da ideia de um cenário inevitável; junto a isso, há 2) a produção de um pânico geral paralisante15 em relação ao preocupante avanço da extrema direita em todo o mundo – sobretudo na América Latina, por meio da enxurrada de notícias de violações e imagens perturbadoras em diversos meios de comunicação.
A centralidade nessas temáticas (e reconheço sua importância) tornou a discussão estagnada, girando em torno em si mesma, e acabando por quase eliminar, nos agentes sociais, a visualização de recursos que podem ser utilizados para a produção de mudanças, erradicação das desigualdades e emancipação da estrutura colonial, que se reproduz como erva daninha.
Nesse tempo, a minha sensação é que observamos o poder do cristianismo evangélico quase sempre a partir do seu esgotamento, esquecendo da noção foucaultiana de que o poder é um campo de disputa que se inscreve num conjunto de diferentes naturezas. E que, sendo um dispositivo de poder e saber, o cristianismo evangélico tem potencial de produzir resistências enquanto respostas (CARNEIRO, 2023)16.
Se por um lado os negros estão sob um “efeito paralisante” devido à pobreza como condição crônica da existência negra, onde mobilidade de classe torna-se controlada pela racialidade; de outro, esse efeito também pode ser sentido no que diz respeito à construção de uma subjetividade que não esteja sustentada pelo cristianismo evangélico. Tal paralisia não implica aqui numa não-movimentação – ou estagnação do cenário das lutas – pela criação de políticas públicas, que visam a diminuição das desigualdades para afrodescendentes no Brasil. Outrossim, o que considero na análise é o papel coercitivo do “Eu hegemônico” sobre as mentalidades de pessoas racializadas e não racializadas.
Conformando subjetividades | Sufocando o estatuto de humano
O fato que sabemos é que ser uma pessoa negra e pobre no Brasil cotidiano, aquele vivido a ferro e fogo dentro das favelas, implica lidar com a inflexível situação de que em quesito de religião e espiritualidade, a opção considerada “digna” é uma só: aquela cuja alma pertence ao Jesus da narrativa bíblica cristã tradicional.
É somente por meio da filiação religiosa – que implica na confissão dos seus “pecados”, hiper-vigilância dos seus pensamentos e separação do mundo – que tal pessoa negra pode ser respeitada. Já que ela se dispõe a negar seu próprio corpo desumanizado, a vida na cultura geral que o formou e sua própria ancestralidade: a das cosmologias e cosmovisões que a herança africana e indígena nos fornece. Nesse horizonte de ofertas, há pouco espaço para o florescimento da diversidade e alteridade como riqueza civilizatória, a interculturalidade, dimensão basilar do bem-viver (GONÇALVES, 2022).
Afinal, como pode um ser humano se autodeterminar se a si próprio é negado o acesso ao seu corpo, sem a mediação de doutrinas, de escrituras e estruturas de poder e saber que o representem como um objeto de trabalho, um instrumento de capital, e não como a morada de um ser humano que deseja superar a branquitude (BENTO, 2022)17 enquanto ideal. Ao ser incapaz de reconhecer a si mesmo, sua identidade e racialidade diante do mundo, o ser negro evangélico ou aquele que vive sob a ética evangélica se vê como alguém que possui uma ferida (MIGNOLO, 2007; ANZALDUA, )18 colonial aberta.
Neste cenário, minhas elaborações atuais consideram que a ferida sangra em todo o tempo, já que vivemos sob a estrutura da colonialidade. Ela é machucada sempre que estamos em “espaços de recontaminação colonial”, como a igreja, a escola e a universidade, por exemplo.
Em contrapartida, cada vez mais vejo uma geração de intelectuais negres e indígenas que se levanta no intuito de recuperar a memória, fuçar o agora e fabricar documentos, elaborações que cruzam as fronteiras discursivas de poder, vasculhando tudo aquilo que é tomado como dado pelo poder hegemônico.
Ao mesmo tempo em que são produzidas respostas, nas periferias urbanas e rurais a bíblia ainda é o livro mais presentes nos lares, seja em sua versão de bolso, virtual, ou física. Ele é o alimento diário, o pão de cada dia, o que fornece significados; a escritura ancestral, que tem sido a base criação e sustentação de discursos que justificam o genocídio da população negra.
Trago como exemplo o mais recente massacre do Complexo da Penha, que deixou mais de 130 mortes e foi o mais brutal episódio de “operações policiais” das duas últimas décadas (superando o massacre de carandiru (1992), que deixou 111 mortos), retratando a persistência de políticas de genocídio da população negra no Brasil.
As reações por parte de organizações sociais e parlamentares provocaram o envio de informes endereçados a organismos internacionais, como o CIDH e órgãos especiais das Nações Unidas, ainda sem resposta do estado. Enquanto isso, relatos de pessoas e vídeos nas redes sociais mostram a presença da ampla comunidade evangélica e de pastores, fornecendo diferentes tipos de apoio aos familiares das vítimas, principalmente pessoas negras e mães-solo.
Muitas das narrativas produzidas e disseminadas em muitos meios de comunicação sobre o massacre, principalmente nos espaços virtuais, reforçam o lugar do jovem negro que escolhe a própria morte, quando decide não “seguir o caminho do senhor” e então entrar para a “vida do crime”. A crueldade em ver na TV aberta famílias abatidas pela perda, reproduzindo discursos de culpabilização dos garotos – que tornaram-se criminosos porque a estrutura é formada para eliminá-los entre os 15 e 29 anos – é um sintoma latente de como o poder da cultura e o discurso da Igreja evangélica tradicional é naturalizado no que diz respeito à vida e morte.
Versículos e expressões amplamente conhecidas e repetidas como: “A vida é um sopro”, baseada em Salmos 144:4 que diz: “O homem é semelhante a um sopro; e os seus dias são como a sombra que passa”; ou “O Senhor é o que tira a vida e a dá, faz descer à sepultura e faz tornar a subir dela”(1 Samuel 2:6), que explica a soberania e o poder divino sobre a vida e a morte; e também a expressão “Quem não vem pelo amor vem pela dor”, baseada na parábola do filho pródigo, onde o erro gera sofrimento e arrependimento – fornecem o pano de fundo que sustenta e justifica repetições naturalizadas sobre a humanidade, dignidade, vida e morte do negro.
A incorporação de tais expressões no cotidiano naturalizam a intrínseca relação do ser humano com o evangelho e produz quadros de referência tais como: a criação da figura da mulher negra “de oração”, do jovem negro “salvo da violência”, da família negra “acolhida pela igreja”; também a solidificação do “candomblecista negro”, depreciativamente chamado de “macumbeiro”, que é da “magia negra”. Essas são exemplos imagens subjugadas de referência sobre o negro, que se reproduzem e são atualizadas desde o Mau Encontro (JESUS, 201919).
O esforço contínuo daqueles que desejam perpetuar o domínio sobre a população negra tem como objetivo uma estabilização moral, social, cultural, política e subjetiva através da naturalização desses escassos imaginários ligados à Igreja evangélica. Dessa forma, com que recursos o Negro irá confrontar o único universo disponível no qual está rodeado? Sabe-se que o indivíduo só é ele dentro da cultura, mas e quando essa cultura não visa o desaparecimento do Eu-hegemônico, mas ao invés disso busca “recontaminar colonialmente” o sujeito?
Enquanto nós, que desejamos a erradicação do ódio racial, não aceitarmos o fato de que a noção de dignidade humana no Brasil das últimas quatro décadas vem sendo construída por meio de influência do dispositivo que é o cristianismo evangélico hegemônico, estaremos continuando a negar um dispositivos de poder e saber (FOUCAULT, 1979)20 que mais tem informado políticas de violações contra o Ser-Negro. Tal dispositivo age por meio do assujeitamento do indivíduo e negação da sua própria humanidade; do impedimento da elaboração de um discurso de si fora da estrutura colonial, reencenando o “mau encontro”.
Essa postura inflexível, onde ainda se considera os evangélicos um “fenômeno” ou um grupo que é somente “massa de manobra” , resume a complexidade e as possíveis brechas existentes, em uma narrativa única e pouco fecunda. Também esconde a multiplicidade de possibilidades de espiritualidades, éticas e formas de vida dispostas pelo mundo, produzindo uma confusão entre a natureza relacional do espírito\alma.
Ao concebê-la como fruto de uma estrutura de poder, cujos sujeitos reagem ao medo do inferno, da sua negritude e da bala, é notável que tal enquadramento ontológico — ainda que não declarado, mas explícito em diversas esferas e áreas do conhecimento — funciona também como uma forma de reprodução e solidificação dos mecanismos de controle: delimitando o lugar da fé, o lugar da resistência e o lugar da dissidência possíveis para pessoas negras no país.
Tornar o domínio sobre a subjetividade (por parte da religião) em um processo natural é profundamente político e fortemente danoso para a imaginação das pessoas negras e populações marginalizadas, afetando consequentemente sua emancipação.
Na igreja evangélica, os ideais que remetem à binariedade, escassez, e a impossibilidade de coexistência de subculturas de forma não-hierárquica e livre tem sido acionado como um rolo compressor, homogeneizando a todos, para que desejem em todo o tempo ser um – o branco – mesmo que isso seja contra a própria natureza humana, espiritual e cultural.
A Sueli Carneiro (2006) enfatiza um ponto fundamental para a compreensão do argumento:
É a idéia de universalidade que emancipa o indivíduo e permite-lhe expressar a sua diversidade humana. Em contrapartida, é a idéia de particularidade que aprisiona o indivíduo, ou seja (…) é a redução do ser à sua particularidade que aprisiona o indivíduo não-ocidental ao seu grupo específico. É nossa compreensão que, ao fazer do ôntico o ontológico do Outro, o Eu hegemônico rebaixa o estatuto do ser desse Outro (p.26).
Dito isso, questiono: por parte da maioria daqueles que produzem conhecimento científico, intelectual, a quem interessa não dar cor e tom a outras cosmovisões? Aquelas produzidas tanto em solo brasileiro ou latino americano, por meio das tradições africanas e indígenas; quanto nos desdobramentos modernos pouco explorados da diáspora africana – incorporando as trocas transnacionais, virtuais e de sentidos. A quem interessa perpetuar o epistemicídio frente a um horizonte que se mostra cada vez mais rígido?
O Bem viver enquanto horizonte de emancipação
É necessário, depois de aceitar o fato do apagamento e do ressentimento sobre esse grande grupo, dar visibilidade às experiências de ambiguidade e artesanalidade espiritual que cada indivíduo negro é dotado. Os seres humanos não foram criados para viverem por oposição à natureza, mas por continuidade ontológica com tudo que existe: rios, ventos, plantas, minerais, animais, ancestrais. Somos seres relacionais, cuja existência só se realiza plenamente dentro de uma trama viva que integra corpo, território e comunidade.
Nesse sentido, precisamos urgentemente criar novas formas de conceber o indivíduo que visem a desestabilização das categorias que sustentam a modernidade racial (FERREIRA DA SILVA, 202421). E como fazer isso levando em conta que o centro da doutrina evangélica tradicional é baseado no domínio da cultura e da vida do outro, da não-aceitação da humanidade do que é diferente, daquele que não acredita ou deseja se redimir do “pecado original”?
Reitero meu argumento na crença de que, enquanto as ervas daninhas estão espalhadas nos solos que cultivamos a esperança, já estamos produzindo contra-narrativas de futuros que nos emancipam. A Marcha das mulheres negras pelo Bem viver, realizada em 2015 e que ocorrerá novamente após 10 anos, é um bonito desenho da força, criatividade e capacidade de promover mudanças, das mulheres negras.
É com base no resgate produzido pela militante e intelectual paulista Juliana Gonçalves, que o Bem-viver aparece para mim como uma alternativa de vida. Em sua dissertação de mestrado, ela nos ensina que o Bem Viver, tal como vem sendo sistematizado por intelectuais indígenas, latino-americanos e pelas mulheres negras brasileiras, oferece um horizonte teórico e político capaz de confrontar diretamente a lógica colonial que conforma as subjetividades negras no Brasil contemporâneo.
O Bem Viver, tal como formulado pelos autores e autoras mobilizados por Juliana em sua dissertação, oferece uma alternativa radicalmente distinta da lógica que tem estruturado o cristianismo evangélico hegemônico no Brasil. Se o dispositivo evangélico opera pela neutralização das identidades e pela produção de subjetividades que orbitam o ideal de branquitude, o Bem Viver emerge precisamente da recusa a esse processo. Sendo concebido como uma forma de vida que nasce nas culturas tradicionais que resistem à fragmentação e à perda de sentidos produzidas pela modernidade colonial; também como revolta contra os mecanismos que desfiguram a vida coletiva.
Nesse contraste, o Bem Viver reabre possibilidades que o dispositivo evangélico procura estabilizar, deslocando o sujeito da posição de objeto moral para a de agente relacional.
Enquanto a estrutura evangélica tradicional conforma a subjetividade negra por meio da vigilância, da confissão e da separação entre corpo e mundo — por meio da negação das cosmologias africanas e indígenas — o Bem Viver é apresentado na dissertação como filosofia, cosmologia e atitude de vida que devolvem ao sujeito sua multiplicidade. Em vez de restringir o campo da experiência, ele amplia o horizonte daquilo que pode ser vivido e sentido. Essa cosmologia se opõe às categorias rígidas que orientam o cristianismo evangélico hegemônico, pois recoloca o corpo negro em continuidade com o território, com a memória e com a ancestralidade. rompendo com as mediações que transformam esse corpo em objeto de controle espiritual.
Outro ponto de contraste entre o Bem-viver e o cristianismo evangélico aparece na clássica e muito explorada relação com a natureza. Enquanto a tradição evangélica reorganiza a experiência do mundo a partir de uma separação estrita entre o humano e o sagrado — e utiliza essa cisão para reforçar a dependência do fiel a um sistema de normas — o Bem Viver afirma a natureza como parte da comunidade e detentora de direitos. Essa formulação, restitui ao sujeito uma relação ontológica com o mundo em que vive, relação que o cristianismo evangélico hegemônico sufoca ao deslegitimar as espiritualidades que sustentam essa continuidade. O que no dispositivo evangélico aparece como interdição do corpo e silenciamento da ancestralidade, no Bem Viver se apresenta como fundamento da experiência humana.
É nesse contexto que a Marcha das Mulheres Negras pelo Bem Viver de 2015 se torna um marco decisivo. Enquanto a moral evangélica produz narrativas que culpabilizam e desumanizam a população negra — reforçadas pela figura da mãe de oração, do jovem salvo ou do candomblecista demonizado — as mulheres negras reelaboram o Bem Viver como prática de autonomia. Em seu trabalho, Juliana demonstra que elas enegrecem o conceito ao incorporar ancestralidade africana, oralidade, circularidade, cuidado coletivo, resistência e organização política.
Onde o dispositivo evangélico impõe submissão e vigilância, as mulheres negras marcham em afirmação da vida, dignidade e da agência humana, mostrando que o Bem Viver não é apenas horizonte, mas prática cotidiana capaz de sustentar existências que o cristianismo evangélico busca normatizar.
É importante destacar que, se o cristianismo evangélico produz um efeito paralisante — bloqueando tanto a mobilidade quanto a imaginação política, cultural e subjetiva — o Bem Viver oferece o movimento inverso: mobilização, reconstrução da memória, invenção de laços e recomposição do sentido de humanidade. Operando no cotidiano das mulheres e pessoas negras e indígenas por meio do cuidado, da organização comunitária, da defesa da vida e da reconstrução da autonomia.
Nesse contraste, o Bem Viver se torna alternativa concreta ao dispositivo que sufoca a imaginação, pois reabre a possibilidade de existir fora da lógica colonial e cristã que tem delimitado as formas possíveis de vida negra no Brasil. Trata-se, assim, de ferramenta teórica e política que sustenta a urgência que venho enunciando: a criação de novas formas de conceber o indivíduo, capazes de desestabilizar as categorias que sustentam a modernidade racial e abrir caminho para um estado de Bem Viver.
Assim, diante de tais elaborações ainda recentes, quero destacar neste curto espaço um último ponto: compreendo também o Bem Viver como uma forma situada de poethics (a poética feminista negra), porque, assim como propõe Ferreira da Silva ele desestabiliza as categorias modernas – aquelas mesmas que estruturam o cristianismo evangélico hegemônico – baseadas na separação, no cálculo, na equivalência e no valor. Ou seja, em vez de organizar o mundo por hierarquias, fronteiras rígidas e lógicas de produtividade, o Bem Viver abre espaço para modos de existência que não dependem desses parâmetros.
Compreendo essa abertura como um deslocamento não apenas filosófico, mas também estético. Ela legitima, como poética e como ética, práticas já vividas por mulheres negras brasileiras que reinventam espiritualidade, comunidade e mundo por meio de outras gramáticas — modos de viver que não esperam autorização da modernidade, mas a ultrapassam, encarnando no cotidiano uma política radical do sensível que afirma vida, dignidade e futuro para as populações negras e indígenas.
***
O novo tempo já chegou, e ele está sendo construído por muitas mãos negras.
Sobre a autora:
Quem escreve esse texto é Thayane Fernandes ou Antropogata, uma mulher negra pernambucana, antropóloga, p(r)o(f)eta e criadora multilinguagem. Há 10 anos tem se dedicado a investigar imaginários coletivos criados com base no cristianismo evangélico no Brasil. Atua entre-brechas (im)possíveis na produção de futuros insurgentes para o povo negro por meio emancipação subjetiva, entrelaçando espiritualidade, política, teoria crítica da raça, feminismo negro e estética. Integra o grupo de pesquisa DesAiyê: Ferida Colonial e Dissolução de Mundos e é Consultora em Geledés – Instituto da Mulher Negra.
- É importante, em primeiro lugar, destacar que ao me referir à “Igreja Evangélica” ou “Evangélicos” estou compreendendo-os como um grande grupo, cuja crença central é no Jesus como salvador, bem como na Bíblia Sagrada, e noções estruturantes de céu\inferno, pecado\santidade, deus\diabo, dentre outras. Meu entendimento também considera que essa igreja é firmada e centrada no ideal da brancura e sustenta-se por meio da manutenção das categorias que estruturam a modernidade, reproduzindo a cena colonial, e impedindo a emancipação do sujeito negro. Em segundo lugar, quero remarcar que meu entendimento sobre os “evangélicos” ou “igreja evangélica” não parte de uma visão homogênea. Reconheço que há diversas denominações com diferenças teológicas, ideológicas, políticas e de práticas, questionando, inclusive, a definição de igreja evangélica mais geral, bem como alguns de seus pressupostos morais, étnicos e raciais. Entretanto, são discursos e movimentos minoritários, alinhados com a emancipação dos sujeitos de algumas estruturas de dominação, como por exemplo aqueles grupos que se declaram LGBTS, antirracistas, progressistas politicamente, dentre outros. ↩︎
- GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Brasília, Anpocs, p. 223-244, 1984. ↩︎
- SANTOS, Juliana Gonçalves dos. O Bem Viver em narrativas de mulheres negras. 2022. Dissertação (Mestrado em Estudos Culturais) – Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. ↩︎
- Mignolo, Walter D. “Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política.” Cadernos de Letras da UFF, n. 34, p. 287-324, 2008. ↩︎
- AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019. ↩︎
- FERNANDES, Thayane. “Isso não é só coisa de judeu”: Etnografia em uma igreja “judaico-pentecostal” em Recife, Pernambuco. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, 2019 ↩︎
- Que ocorre por múltiplos fatores, com destaque aqui para o tamanho e diversidade cultural interna do país, bem como pela língua portuguesa que nos afasta dos países vizinhos. Também a ausência de educação e políticas culturais, e evidentemente a profunda desigualdade social em que vivem os brasileiros, estruturada pelo racismo e a estrutura cisheteropatriarcal da colonialidade. ↩︎
- https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3208-cecilia-mariz-2 ↩︎
- No podcast “Filosofia Pop”, hospedado no Spotify. ↩︎
- https://bahia.ba/politica/deputado-baiano-quer-inclusao-de-cristaos-em-acoes-do-novembro-negro/
↩︎ - MARIANO, Ricardo. “SOCIOLOGIA DO CRESCIMENTO PENTECOSTAL NO BRASIL: UM BALANÇO”. Perspectiva Teológica, v. 43, n. 119, p. 11, 2011;
MARIZ, Cecília L. (1999), “A Teologia da Batalha Espiritual: Uma Revisão da Bibliografia”. BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 47: 33-48.
BURDICK, Jonh. (1999), Procurando Deus no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad;
MACHADO, Carly e TORRES, Nildamara. «Casas, pessoas e cidades em recuperação: Sobre acolhimento, autoconstrução e pentecostalismo nos territórios urbanos», Anuário Antropológico [Online], v.49 n.1 | 2024;
ORO, Ari Pedro. O “neopentecostalismo macumbeiro” . Revista USP, São Paulo, Brasil, n. 68, p. 319–332, 2006. ↩︎ - Dados baseados no CENSO 2022, publicados pelo ISER. Disponível em: https://religiaoepoder.org.br/artigo/o-que-mudou-no-quadro-das-religioes-do-brasil-comparacoes-entre-os-censos-2010-e-2022 ↩︎
- Em declaração recente, o novo Papa Leão 14 publicou um decreto que instruiu os 1,4 bilhão de católicos do mundo a não se referirem a Maria como a “corredentora” do mundo. Para especialistas, “não há dúvida de que esse esclarecimento católico é uma reação ao movimento evangélico cada vez mais crescente, que critica duramente essa ideia de Maria como um ser quase divino, com prerrogativas quase divinas”. ↩︎
- Esperava-se que o aumento dos evangélicos fosse ainda superior na década, chegando a 31%, entretanto, o “crescimento” foi 4% abaixo do esperado. ↩︎
- Incorporo esses dois pontos centrais, reconhecendo também o protagonismo do Brasil no que concerne ao avanço na conquista de direitos para populações vulneráveis na América Latina, mesmo num cenário de crescimento da extrema direita e de retrocessos, como a Reforma Trabalhista e Reforma da Previdência Social. ↩︎
- CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. ↩︎
- BENTO, C. *O pacto da branquitude*. São Paulo: Cia. das Letras, 2022. ↩︎
- MIGNOLO, Walter D. La Idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial, de Walter D. Mignolo. Barcelona: Gedisa (2007 [2005]).Tradução do original em inglês: Silvia Jawerbaum e Julieta Barba. 241p. ↩︎
- JESUS, Alexandro Silva de. Corupira. Mau encontro, tradução e dívida colonial, 2019, Recife, Titivillus, 144 p. ↩︎
- FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979. ↩︎
- FERREIRA DA SILVA, Denise. A Dívida Impagável. Rio de Janeiro: Zahar, 2024. ↩︎
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