A ousadia negra de ser livre

O que um relatório ministerial recente sobre trabalho análogo à escravidão tem em comum com dois jubileus – da Rebelião dos Malês e de José do Patrocínio? A determinação negra de reverter o destino imposto.

Na terça feira (28/01), o Ministério do Trabalho e do Emprego divulgou dados sobre suas ações no combate ao trabalho análogo à escravidão. Em 2024, mais de 2 mil pessoas foram retiradas dessas condições, se somando aos mais de 65 mil cidadãos brasileiros que, nos últimos 30 anos, foram submetidos a condições de trabalho degradantes. Um conjunto de ações que deve ser conhecido, difundido e comemorado, neste país que insiste em fazer da escravidão não só um fantasma, mas um mecanismo de violência e opressão que segue ordenando as nossas relações de trabalho.

Os dados mostram que as atividades rurais concentram a maior parte dos resgates, embora a construção civil seja o setor específico em que foi encontrado o maior número de pessoas em condições análogas à escravidão.

Esses dados falam muito sore as decisões políticas que organizaram e seguem organizando o Brasil. Sem sombra de dúvida, a ausência total de uma reforma agrária (um tema que, infelizmente, parece ter saído de moda e do debate público do país), é o pano de fundo estrutural que explica a concentração de escravização no campo. Mas o alarmante número de pessoas trabalhando tal qual escravizados na construção de edifícios nos lembra que no Brasil a escravidão sempre foi uma instituição maleável, funcionando ao gosto do freguês, seja no campo, na cidade, ou na casa dos patrões escravizadores.

E aqui volto a dizer algo que já pontuei em outros momentos: uma das maiores e mais perversas heranças da escravidão no Brasil (que se mistura e confunde com o nosso racismo à brasileira) é a manutenção desse etos de senhor de escravo. Isso fica especialmente explícito em situações nas quais as pessoas são resgatadas da escravidão – afinal, se há condição análoga à escravidão, é porque também há condição análoga a proprietário de escravo.

Mas é também esse desejo inconsciente (talvez não tão inconsciente assim) que sustenta uma senhora da branca da Zona Sul do Rio de Janeiro se sentir no direito de bater num entregador negro de aplicativo, ou então que explica por que tantos patrões e patroas seguem dizendo que suas empregadas domésticas são “como se fossem da família”, embora façam de um tudo para não pagar adequadamente seus direitos trabalhistas.

Mais de 65 mil brasileiros foram submetidos a regime análogo à escravidão em três décadas – Foto: ANDRE VIEIRA/ Newscom World/ IMAGO

“Ousadia negra” em ação

E justamente por conta da manutenção dessa vontade de ser senhor de escravos que é tão importante falar da ousadia negra na luta pela liberdade. Na realidade esse era o mote inicial desse artigo, justamente por conta de duas datas importantes que comemoramos recentemente: os 190 anos da Rebelião dos Malês sem Salvador (1835), e os 120 anos do falecimento do abolicionista José Patrocínio (1905). Mas como o Brasil não é para amadores, calhou de os dados sobre escravização contemporânea serem divulgados entre essas duas comemorações. Não há como fugir: a escravidão ainda é o nosso passado presente.

Por isso, é sempre bom lembrar que dos nossos pouco mais de 500 anos de existência, mais de 350 anos foram forjados na e pela escravidão de pessoas não-brancas. Sim, a raça era um critério fundamental de justificativa moral do sistema escravista. E talvez conhecer e comemorar essa ousadia negra pela liberdade seja nosso melhor remédio na luta pela construção de uma sociedade mais democrática e justa, na qual a possibilidade da exploração e expropriação de trabalhadores não seja mais tolerada e praticada.

Pois bem, na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, as ruas da cidade de Salvador foram tomadas por escravizados e negros livres e libertos que faziam aquela cidade funcionar, e que por meses organizaram uma insurreição. Como bem nos conta João Reis – maior especialista no assunto – a rebelião foi liderada por africanos muçulmanos, conhecidos como “malês”, que desejavam a liberdade; numa trama sofisticada, que recentemente virou um filme dirigido por Antônio Pitanga. Ainda que a rebelião tenha sido sufocada pelas autoridades da época, ela era mais uma prova de que o Brasil foi formado por muitas Áfricas, e que esses africanos encontraram (junto com a população negra nascida aqui) variadas formas de se opor ao sistema escravista.

José do Patrocínio, uma biografia brasileira atípica

Dentre os milhares de descendentes desses africanos, vale destacar José do Patrocínio.

Ele nasceu em Campos dos Goytacazes em 1853, filho ilegítimo de um padre e de uma mulher negra alforriada. Ao contrário do que ocorria com a maior parte dos meninos negros daquela época, conseguiu estudar, se formou em farmácia, mas atuou como um dos mais importantes jornalistas do seu tempo.

Patrocínio escreveu seu nome na história do Brasil como um dos mais importantes abolicionistas, e escreveu e publicou importantes textos do movimento, foi um dos responsáveis pela criação da Confederação Abolicionista – que congregava diversas associações abolicionistas do país –, e atuou de forma mais direta, promovendo espetáculos e comícios abolicionistas, e auxiliando escravizados a fugirem. Se isso não fosse o bastante, ele teve um papel, no mínimo curioso, na Proclamação da República (1889). Apesar disso tudo, Patrocínio morreu em 29 de janeiro de 1905, cego e pobre no subúrbio do Rio de Janeiro, e hoje são poucos os brasileiros que conhecem sua trajetória.

Ainda que essas duas histórias pareçam não ter “final feliz”, são elas que de fato viabilizaram que a liberdade fosse uma possibilidade para todos os brasileiros. Por isso, é fundamental lembrar que no dia do enterro de José do Patrocínio, a região central do Rio de Janeiro foi tomada por milhares de homens e mulheres, gente simples, que sabia da sua importância, e que reverenciavam sua ousadia. Portanto, se a escravidão ainda é um passado presente, a luta pela liberdade também é.


Ynaê Lopes dos SantosMestre e doutora em História Social pela USP, é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

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