O Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) vota nesta semana duas importantes resoluções para definir e assegurar o compromisso internacional dos Estados em relação aos direitos das mulheres. Os debates têm como foco o combate à discriminação e à violência de gênero, como a condenação da prática de mutilação genital feminina.
Durante a negociação dos textos em votação, o Brasil pediu a retirada de parágrafos inteiros que recomendavam o pleno acesso de mulheres à saúde e a direitos sexuais e reprodutivos. A delegação brasileira foi contra a inclusão do artigo que preconizava o acesso a informações e métodos contraceptivos, bem como ao aborto seguro e legal e à prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, HIV e cânceres reprodutivos.
Essa conduta consolida o posicionamento retrógrado do governo Bolsonaro e seu alinhamento com Estados reconhecidamente párias na defesa dos direitos humanos. Desde o ano passado, o Brasil vem dando apoio inédito às chamadas “emendas hostis” propostas por governos conservadores para negar o acesso de mulheres a seus plenos direitos.
Apesar das vicissitudes do cenário nacional de políticas públicas e da histórica apatia dos diferentes governos democráticos na promoção e proteção dos direitos sexuais e reprodutivos, o país desempenhou papel de liderança regional em discussões de gênero nas conferências dos anos 1990 e suas revisões. Em 2003, o Brasil foi o primeiro país a propor uma resolução sobre direitos humanos e orientação sexual na extinta Comissão dos Direitos Humanos da ONU; e teve papel relevante na criação do mandato do Perito Independente para Orientação Sexual e Identidade de Gênero, no Conselho de Direitos Humanos. A temática do HIV/AIDS e direitos humanos também ocupou um lugar importante na agenda de política externa brasileira.
A postura do Itamaraty comandado por Ernesto Araújo macula o histórico diplomático do Estado que um dia foi considerado um dos principais atores na luta internacional pela garantia dos direitos humanos.
Durante audiência pública no Congresso Nacional em 2019, o chanceler usou uma metáfora insólita ao tratar os direitos sexuais e reprodutivos como “um truque” da “ideologia abortista”. Segundo ele, o aborto era “uma gilete dentro do bolo” dos direitos da mulher. E adicionou: “A ONU não pode substituir o processo legislativo brasileiro… Eu não vou comer bolo com gilete, e o povo brasileiro não quer comer bolo com gilete dentro”. Outras vozes do governo têm reiterado essa mesma visão na ONU. A ministra Damares Alves, por exemplo, usou seu primeiro discurso no Conselho de Direitos Humanos para defender de maneira absolutista o direito à vida desde a concepção.
Na atual sessão do conselho, “emendas hostis” apresentadas por Rússia, Egito e Arábia Saudita às resoluções sobre direitos das mulheres visam eliminar trechos sobre direitos sexuais e reprodutivos e educação sexual como forma de prevenir abusos contra meninas. As emendas serão votadas nos próximos dias.
Lembramos ao chanceler que as relações internacionais do Brasil devem ser sempre guiadas pela primazia dos direitos humanos tal como prevê a Constituição Federal de 1988 e que, sendo membro do Conselho, devemos manter nossos compromissos com os mais altos padrões de promoção e proteção destes direitos.
A cruzada contra temáticas legítimas dos direitos humanos nas esferas do gênero e da sexualidade que hoje pautam a política externa brasileira é espúria e seus efeitos nacionais e internacionais não podem ser minimizados. A sociedade civil brasileira e as demais instituições democráticas devem estar muito atentas a seus desdobramentos e denunciar essas diretrizes como irresponsabilidade de uma chancelaria que, um dia, foi mundialmente prestigiada pela condução de negociações nesse debate.
*Sonia Corrêa é coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, e Gustavo Huppes é assessor de advocacy internacional da Conectas Direitos Humanos