A questão racial – por Octavio Ianni

A questão racial parece um desafio do presente, mas tem sido permanente. Modifica-se ao acaso das situações, das formas de sociabilidade e dos jogos das forças sociais, mas reitera-se continuamente, modificada mas persistente. Esse é o enigma com o qual defrontam-se uns e outros, intolerantes e tolerantes, discriminados e preconceituosos, segregados e arrogantes, subordinados e dominantes, em todo o mundo. Mais do que tudo isso, a questão racial revela, de forma particularmente evidente, nuançada e estridente, como funciona a fábrica da sociedade, compreendendo identidade e alteridade, diversidade e desigualdade, cooperação e hierarquização, dominação e alienação.

Por Octavio Ianni, do  Com Ciência

Getty Images/iStockphoto

Vista assim, em perspectiva ampla, a história do mundo moderno é também a história da questão racial, um dos dilemas da modernidade. Ao lado de outros dilemas, também fundamentais, como as guerras religiosas, as desigualdades masculino-feminino, o contraponto natureza e sociedade e as contradições de classes sociais, a questão racial revela-se um desafio permanente, tanto para indivíduos e coletividades, como para cientistas sociais, filósofos, artistas. Uns e outros com freqüência são desafiados a viver situações e/ou interpretá-las, sem alcançar a explicação, nem resolver a situação. São muitas, recorrentes e diferentes, as tensões e contradições polarizadas em termos preconceitos, xenofobias, etnicismos, segregacionismos ou racismos, multiplicadas ou reiteradas no curso dos anos, décadas e séculos, nos diferentes países, continentes, ilhas, arquipélagos.

Esse o dilema envolvido entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Gines de Sepúveda, na época da conquista do Novo Mundo, repetindo-se e desenvolvendo-se nas vivências e ideologias, teorias e utopias de muitos, no curso dos tempos modernos. Essa é uma história na qual entram Herbert Spencer, Conde de Gobineau e Georges Lapouge, tanto quanto o evolucionismo e o darwinismo social, o nazismo e o americanismo.

Em certa medida, o debate relativo ao “choque de civilizações” implica em xenofobia, etnicismo e racismo. Ao hierarquizar as “civilizações”, hierarquizando também os povos, nações, nacionalidades, e etnias, é evidente que se promove a classificação, entre positiva, negativa, neutra ou indefinida, de uns e outros. Samuel P. Huntington, que classifica as “civilizações contemporâneas” em: Chinesa, Japonesa, Hindú, Islâmica, Ocidental e Latinoamericana, está, simultaneamente, estabelecendo alguma relação entre etnia, ou raça e cultura ou civilização; uma relação cientificamente insustentável, desde Franz Boas, mesmo quando dissimulada. Essa é, obviamente, uma implicação de sua teoria, ao priorizar a “civilização ocidental” por sua escala de “modernização”, “tecnificação”, “produtividade”, “prosperidade”, “lucratividade”. Aliás, esse contrabando etnicista, xenófobo ou racista, está presente em diferentes pensadores “empenhados” em explicar o mundo em termos de “modernização”, “racionalização”, “tecnificação” e outros emblemas ideológicos do “ocidentalismo”.

É evidente que Huntington “esquece” a presença e a atuação do mercantilismo, colonialismo, imperialismo ou capitalismo, simultaneamente “ocidentalismo” na constituição do seu mapa do mundo; uma “recomposição da ordem mundial” de conformidade com a geopolítica norteamericana, arrogando-se como herdeira do “ocidentalismo”, como guardião do capitalismo, ou vice e versa. Toma cada “civilização” como se fossem essências, qualificáveis ou inqualificáveis, com referência ao padrão de civilização capitalista desenvolvida na Europa Ocidental e nos Estados Unidos da América do Norte. Está empenhado em delinear a geopolítica de alcance mundial que está sendo exercida pelas elites governantes e as classes dominantes norteamericanas desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), entrando pelo século XXI. Essa é a ideologia que informa também o pensamento e a prática de Henry Kissinger, Zbigniew Brzezinsk, Condoleezza Rice e outros.

É assim que o mundo ingressa no século XXI, debatendo-se com a questão racial, tanto quanto com a intolerância religiosa, a contradição natureza e sociedade, as hierarquias masculino-feminino, as tensões e lutas de classes. São dilemas que se desenvolvem com a modernidade, demonstrando que o “desencantamento com o mundo”, enquanto metáfora do esclarecimento e da emancipação continua a ser desafiada por preconceitos e superstições, intolerâncias e racismos, irracionalismos e idiossincrasias, interesses e ideologias.

Esta é, em síntese, uma idéia, hipótese ou interpretação com a qual todos se defrontam cotidianamente ou de quando-em-quando: a sociedade burguesa, capitalista, fabrica contínua e reiteradamente a questão racial, assim como as desigualdades feminino-masculino, o contraponto sociedade natureza e as contradições de classes, além de outros problemas com implicações práticas e teóricas. São enigmas que nascem e desenvolvem-se com a modernidade, por dentro e por fora do “desencantamento com o mundo”. A despeito de inegáveis conquistas sociais realizadas no curso dos tempos modernos, esses e outros enigmas se criam e recriam, desenvolvem e transfiguram, em diferentes círculos de relações sociais, não só em sociedades nacionais, como também na sociedade mundial. De par-em-par com a globalização da questão social, desenvolve-se e intensifica-se mais um ciclo de racialização do mundo, assim como de transnacionalização de movimentos sociais de todos os tipos, envolvendo feministas, reivindicações étnicas, tensões e lutas religiosas implicadas na geopolítica do terrorismo e crescente consciência de que o próprio planeta Terra. Esses são problemas e enigmas da modernidade-nação, ou primeira modernidade, e da modernidade-mundo, ou segunda modernidade, ambas conjugando-se e tensionando-se no curso dos tempos e nos espaços do mapa do mundo; revelando que a modernidade seria ininteligível sem esses dilemas, os quais desafiam a prática e a teoria a ideologia e a utopia.

Seria fácil reconhecer que esses enigmas estão na natureza das coisas, da vida, ou da sociedade burguesa, moderna, como enigmas insolúveis, ainda que manejáveis. E é esse o pensamento de muitos em diferentes partes do mundo. Grande parte das práticas e dos discursos sobre “a lei e a ordem”, “a nova ordem econômico-social mundial”, “o mundo sem fronteiras”, “o fim da história” ou “a teoria, a prática do neoliberalismo” implica em “naturalizar” ou “ideologizar” o status quo: modificar alguma coisa para que nada se transforme.

Mas é possível imaginar que esses problemas ou enigmas podem ser fermentos de outras formas de sociabilidade, outros jogos de forças sociais, outro tipo de sociedade, outro modo de produção e processo civilizatório; com os quais se põe em causa a ordem social burguesa prevalecente, revelando-se a sua incapacidade e impossibilidade de resolvê-los, reduzi-los ou eliminá-los. Sim, esses problemas ou enigmas podem ser tomados como contradições sociais abertas, encobertas ou latentes, permeando amplamente o tecido das sociedades nacionais e da sociedade mundial, com os quais se fermenta a sociedade do futuro.

Octavio Ianni é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

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