A repressão aos rolezinhos patrocinada pelos interesses privados (dos shopping centers) terá o potencial de disseminar a percepção de que os donos do capital são também promotores da violência, do racismo, do classismo e repressão às formas de expressão juvenis, periféricas, negras? Não nos subestimem, o movimento negro e a juventude negra estão dispostos a tornar concreta essa possibilidade.
Nas primeiras semanas de 2014 ganhou destaque a discussão sobre os chamados rolezinhos – encontros, em grandes grupos, de adolescentes e jovens em shopping centers, principalmente da cidade de São Paulo. Muito já se falou e escreveu sobre o assunto, e o acontecimento poderia ser ainda mais bem tratado em muitas perspectivas, como do planejamento urbano e do direito à cidade, da ideologia do consumo como realização máxima da existência, da disputa discursiva sobre os sentidos desses encontros juvenis, da estética do funk como forma de identificação geracional, das políticas públicas voltadas à juventude etc. Sem desprezar a possibilidade de outras abordagens. Enquanto militantes do movimento negro, entendemos que é indispensável destacar o racismo – articulado às dimensões de classe, geracionais/etárias e ao estilo (o funk) – como uma das bases fundamentais dessa polêmica.
A controvérsia pública gerada a partir dos rolezinhos tem, de um lado, o funk como trilha sonora e jovens negras(os), pobres e das periferias enquanto atores principais, que protagonizam com esses eventos a busca de uma opção de lazer, num local, o shopping center, totalmente adequado a essa busca segundo o senso comum. Do outro lado, como pretensos atores coadjuvantes, aparecem representantes de lojistas dos shoppings, o Judiciário, a Polícia Militar e grandes mídias, todos mais ou menos explicitamente se colocando contra esses encontros, incentivando, legalizando e efetivando a repressão. Deve-se evidenciar, entretanto, que esses coadjuvantes de maior poder, status e dinheiro (dos grupos e classes do privilégio – brancos, das classes médias tradicionais e elites – ou seus representantes) são, na verdade, parte do elenco principal de uma peça maior, que podemos definir como a tragédia do racismo brasileiro. No caso dos rolezinhos, os privilegiados e seus representantes responderam como secularmente reagem a qualquer forma de ação dos “de baixo” que subverta a ordem, mesmo que de maneira lateral e sem nenhuma intencionalidade. Não se pode escapar, nessa perspectiva, ao sentido político da reação dos privilegiados, pois ela não é um ponto fora da curva, e sim uma marca da reprodução de nossa ordem social ainda profundamente desigual, autoritária e racista.
Foram dadas pelo Judiciário, não só em São Paulo, mas também em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, liminares de proibição aos rolezinhos. A polícia, quando acionada, portou-se da forma conhecida: com violência e força totalmente desproporcionais – até com balas de borracha e bombas de “efeito moral”. Para completar, em alguns shoppings as(os) jovens, principalmente menores de 18 anos, passaram a ser “selecionados” (eufemismo para a discriminação racial, de classe e etária, aqui articuladas) nas portarias desses templos do consumo. Bem ao modo do racismo à brasileira, em entrevista o representante nacional dos proprietários desses estabelecimentos disse que as(os) jovens deveriam procurar um local mais adequado para seus passeios em grupo – o sambódromo, por exemplo. Douglas Belchior, ativista do movimento negro de São Paulo, chamou a atenção com muita perspicácia para esse fato em seu blog Negro Belchior. Para os privilegiados, o único local de lazer e encontro “adequado” para jovens negras(os) de periferia é o sambódromo! Há melhor definição, além de racista, para o imaginário desse senhor?
Fonte: Teoria e Debate