Por Antonio Ozaí da Silva
“A sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo”.
(Florestan Fernandes, 1978: 20)
Resumo:
Os negros escravos foram comparados a instrumentos de trabalho e animais: era-lhes negado o status de humanos. Com a abolição, o negro foi relegado ao status de cidadão de segunda classe, excluído dos direitos sociais e de cidadania e desconsiderado por uma concepção de história branca e européia que enfatizava o movimento operário na perspectiva do branco imigrante europeu. Mesmo em condições adversas os negros atuaram politicamente. Para compreender sua política é preciso considerar a política para além das instituições estatais. O artigo analisa as práticas políticas dos negros brasileiros através das suas organizações e a inserção na política institucional enquanto estratégias para a conquista e consolidação da cidadania. Ao mesmo tempo, explora as relações entre racismo e política, em outros termos, o racismo enquanto política de exclusão.
Palavras-chave: História. Política, Negro, Racismo
Abstract:
The slave blacks were compared to work instruments and animals: it was them denied the humans’ status. With the abolition, the black was relegated to the second-class citizen status, excluded of the rights of social and of citizenship and inconsiderate for a conception of white and European history that emphasized the labor movement in the perspective of the white European immigrant. Even in adverse conditions the blacks acted politically. To understand his politics it is necessary to consider the politics for besides the state institutions. The article analyzes the political practices of the Brazilian blacks through their organizations and the insert in the institutional politics while strategies for the conquest and consolidation of the citizenship. At the same time, it explores the relationships between racism and politics, in other terms, the racism while exclusion politics.
Keywords: History. Politics, Black, Racism
Em geral, a política tem sido considerada como o universo dos homens livres, detentores dos direitos e deveres que os qualificam como cidadãos. Todavia, antes que os homens conquistassem a sua liberdade e a cidadania, houve um longo processo histórico – em muitos aspectos, ainda inacabado. A compreensão dos homens–cidadãos atuais e, mesmo, das limitações impostas à enorme parcela da população, excluída econômica e socialmente, exige o retorno às origens históricas. Do contrário, corre-se o risco de naturalizar diferenças sociais abissais e de desconsiderar a atividade política dos homens e mulheres não-livres e colocados à margem da sociedade e do Estado.
Assim, torna-se necessário, ainda que brevemente, caminhar caminhos antes percorridos e voltarmos às origens de um povo, estigmatizado por sua cor e, dessa forma, caracterizado como negro. Nesse percurso, analisaremos a ação política anti-racial dos escravos, agentes histórico-sociais nulificados pela política oficial. Enfocaremos o Brasil, mais especificamente, o negro brasileiro. Por isso, faremos uma breve exposição da sua história: sua resistência e, após a abolição, sua luta pela conquista da cidadania, nos espaços institucionais e extra-institucionais.
Antes, porém, consideramos importante salientar que o termo negro possui conotação ideológica na medida em que é uma construção histórica-social, vinculada ao ideário racista. O ser negro é uma invenção fundada em critérios raciais pseudo-científicos, ligada à justificação da sua suposta inferioridade e caráter submisso. (Santos, 2002). Raça é um conceito político ideológico construído historicamente. Sem essa consciência dos significados históricos inerentes ao termo negro, corre-se o risco de naturalizá-lo e reduzí-lo a uma tipificação biológica. Por outro lado, diante da necessidade de sedimentar sua identidade, os afro-brasileiros assumem os termos negro e negra, valorizando-os positivamente. Guimarães (1999: 211), por exemplo, utiliza o conceitoracialista no “sentido de evocar o carisma da raça negra e de visar a formação de uma identidade racial negra”.
Os males de origem
No século XVI, a partir da terceira década, o Rei de Portugal convence-se de que é preciso efetivar a ocupação do território brasileiro para garantir seus direitos sobre a colônia, ameaçada pelos franceses, cada vez mais presentes nesses trópicos. Porém, realizar esse objetivo não é nada fácil: quem se interessaria por tal empreitada? “A não ser os traficantes de madeira – e estes mesmos já começavam a abandonar uma empresa cujos proveitos iam em declínio – ninguém se interessava seriamente, até então, pelas novas terras; menos ainda para habitá-las”, escreveu Prado Jr. (1976: 31)
Para atingir seus objetivos o soberano português não teve outra opção senão a de tornar o mais atrativo possível aos olhos de ambiciosos aventureiros a árdua tarefa de colonizarem a Terra Brasilis, oferecendo-lhes nada menos do que a partilha da soberania: os que aceitaram os desígnios reais, adquiriam soberania sobre as Capitanias Hereditárias (extensos territórios em que foi dividido o Brasil, nossos primeiros latifúndios). Mesmo assim, poucos se candidataram. A qualidade dos pretendentes pode ser inferida pelo simples fato de nenhum deles pertencerem à alta nobreza ou aos grandes mercadores do Reino. Eram, como observou Prado Jr., “indivíduos de pequena expressão social e econômica”. [1]
E assim se iniciava o efetivo projeto de colonizar o Brasil. Sem braços dispostos a enfrentar os desafios de povoar produtivamente a terra e desenvolver a colônia, recorreu-se à escravidão: primeiro, do habitante nativo; depois, dos corpos africanos arrancados violentamente à mãe negra.[2]
O modelo de colonização no Brasil se fundamenta na grande propriedade e na monocultura. Como uma grande fornalha dantesca, o sistema colonial consumirá milhares e milhões de vidas humanas. É indescritível a mortandade provocada pelo parasitismo colonialista e a ganância dos traficantes de carne humana: calcula-se que, em média, apenas 50% dos africanos chegavam vivos ao Brasil; e, destes, muitos mutilados e inutilizados para o trabalho. Isto encarecia o preço do trabalhador escravo – o que acarretava, nas regiões mais pobres, a utilização do índio.[3]
Fundamento da sociedade brasileira
“Pela metade do século XIX, a força de trabalho da economia brasileira estava basicamente constituída por uma massa de escravos que talvez não alcançasse dois milhões de indivíduos. Qualquer empreendimento que se pretendesse realizar teria de chocar-se com a inelasticidade da oferta de trabalho. O primeiro censo demográfico, realizado em 1872, indica que nesse ano existiam no Brasil aproximadamente 1,5 milhão de escravos. Tendo em conta que o número de escravos, no começo do século, era de algo mais de um milhão, e que nos primeiros cinqüenta anos do século XIX se importou muito provavelmente mais de meio milhão, deduz-se que a taxa de mortalidade era superior à de natalidade.” (FURTADO, 1964: 141)
Após mais de três séculos, o trabalho do escravo permanecia como o pilar fundamental da sociedade brasileira. Os escravos eram mãos e pés do senhor. Só o escravo trabalhava e produzia. Era ele que fazia tudo.[4]
Ao contrário do mito da incapacidade do negro para o trabalho, desenvolvido no período pós-abolição – justificação ideológica para os projetos imigracionistas e de embranquecimento da nação – esse assimilava facilmente o aprendizado e desempenhava satisfatoriamente o trabalho nos diversos níveis ocupacionais. Durante o período escravista, na cidade ou no campo, ele estava presente em todos os setores sociais, desempenhando as mais diversas funções, proporcionando o ócio dos senhores. Como nota Moura (1988: 68), um breve olhar sobre as pranchas do livro de Debret comprova-o. [5]
Na Grécia antiga, o trabalho manual não era digno do cidadão livre, pois, é uma atividade não criadora, determinada pelas necessidades de sobrevivência. O escravo e o artesão gregos, vinculados ao trabalho manual, não são cidadãos de pleno direito. Como definiu Aristóteles (1995: 96), os cidadãos não são os homens em geral, “mas apenas homens políticos que, sós ou em companhias de outros, são ou podem ser senhores dos interesses comuns da cidade.”
A mentalidade predominante no Brasil do século XIX também se caracteriza pela aversão ao trabalho manual, identificado como inferior e próprio dos escravos. Além do preconceito de cor, o cativo amalgamou o preconceito em relação ao trabalho. Considerando o trabalho enquanto atividade humilhante e vil, o ideal dos senhores brancos era acumular capital suficiente para enviar os filhos às universidades, onde poderiam aprender profissões que lhes libertassem do fardo do trabalho.[6] Quando obrigados a trabalhar, envergonhados, emigravam.
Na ordem escravocrata haviam homens livres que se dedicavam ao trabalho. Eram homens sem posses, vinculados a atividades residuais e ao domínio do fazendeiro; homens sobre os quais também pesava a maldição do trabalho.[7] “Cabia-lhes as tarefas arriscadas, como as derrubadas de florestas, ou aquelas usualmente não confiadas ao escravo (tropeiro, carreiro), ou, ainda, as ocupações ligadas à criação de gado”, afirma Franco (1983: 33)
O africano representou o elemento fundante da sociedade escravocrata. Porém, a ênfase no aspecto puramente econômico induziu a que lhe dedicassem um tratamento restrito ao status de mera mercadoria, valor de uso e de troca: coisa. E era assim que os senhores os viam: como mero capital fixo, comparável aos instrumentos de trabalho. O que o diferenciava de outras mercadorias – como a força de trabalho assalariada – é que ele estava condenado aos castigos e penas, ao bel-prazer do senhorio.
Considerando o ponto de vista institucional, a participação política dos escravos – e, depois, os negros alforriados – foi historicamente neutralizada, ora por mecanismos de cooptação, ora pela repressão. Uma certa historiografia passa ao largo da ação política autônoma, isto é, o africano, escravo ou liberto, enquanto agente de transformação da sua própria história. [8] Estabeleceu-se um discurso que resultou no tratamento do cativo apenas como objeto-coisa. É como se os ele tivesse sido instrumento passivo, testemunho de uma época histórica na qual desempenhou apenas o papel de espectador.
Esse viés historiográfico restringe-se à análise econômica e institucional. A noção de política institucional, isto é, o enfoque sobre o Estado e os mecanismos de participação da sociedade, implica numa restrição da política enquanto atividade consciente coletiva. Mas, para além da política no âmbito do Estado (partidos, parlamento, eleições etc.), há uma pluralidade de ações que ocorrem fora dos espaços institucionais: sua resistência e rebelião contra o poder escravocrata.
Nesse sentido, o escravo readquire o status de agente ativo da sua própria história: excluído dos espaços institucionais, ele recorrerá aos meios e instrumentos de que dispõe para se opor e fragilizar o sistema escravocrata. O protesto escravo – vale afirmar, a sua política – assumirá formas passivas e ativas: do suicídio à resistência coletiva.[9]
A cidadania negada
“A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um.” (Art. 179, inciso XIII da Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824)
“Todos são iguaes perante a lei.” (Art. 72 § 2º da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891)
“Todos são iguaes perante a lei. Não haverá privilégios, nem distincções, por motivos de nascimentos, sexo, raça, profissões próprias ou dos paes, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideas políticas.” (Art. 113, § 6º daConstituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934)
É ilustrativo que a moeda francesa inscreva em sua face o lema Liberté, Egalité, Fraternité. Essas belas palavras, que expressaram os sonhos de várias gerações e o combustível que alimentou movimentos liberais, humanitários e revolucionários, foram resumidas historicamente em uma: propriedade. Assim, metaforicamente, quanto mais francos franceses um indivíduo possuir (ou outra moeda qualquer – de preferência, dólares), mais gozará da liberdade, mais será cidadão (com direitos, muitas vezes, acima da lei). Quanto à fraternidade, a relegará às obras de caridade e filantrópicas, de caráter religioso ou não.
O critério de posse da propriedade prevaleceu. As ilusões dos nossos liberais radicais e dos cativos quanto ao processo de independência caíram por terra.[10] A Constituinte de 1824 manteve intacto o aparato legal institucional montado desde a época colonial, em especial, a partir da vinda da família real. Para a lei maior do país o escravo não existia, não era considerado pessoa, sujeito de direitos, mas sim propriedade. Contudo, ele não era uma propriedade qualquer, mas coisa animada que poderia, entre outras coisas, se rebelar. Assim, era preciso considerá-lo e o código criminal tratou de enquadrá-lo: a lei tratava-o como humano, responsável por seus atos, quando este figurasse como réu. [11] “Numa palavra: sendo réu, era pessoa; sendo vítima, coisa.” (Silva Jr.: 2000: 361) Fora da lei, ele será tratado à parte por um Código Negro.
Não só o escravo foi excluído, mas também os homens livres pobres, mesmo brancos. Os direitos políticos foram encarados como pertinentes apenas aos que tinham posses. A Constituição de 1824 estabelecia um sistema de eleições indiretas, em dois graus, para a qualificação dos eleitores, de acordo com os bens possuídos, classificados segundo a renda anual.
Por outro lado, tratou-se de dar um verniz liberal: D. Pedro deu-se ao luxo de aceitar certos direitos como a liberdade de imprensa. Em suma, a Constituinte era uma paródia da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789: manteve o poder absoluto da monarquia imperial e as vantagens políticas resultantes da independência foram reservadas à elite agrária. O critério de propriedade manterá o status quo: a elite colonial continuará a dominar o Estado. Este, manteve-se acima da sociedade, dominador e cabide de empregos de uma massa serviçal das classes dirigentes.
Na verdade, os nossos liberais apenas adaptaram o ideário liberal europeu às nossas condições sócio-históricas. Também a França revolucionária se curvaria ao critério da propriedade[12] e a história comprovaria que liberalismo econômico e liberalismo político não são necessariamente equivalentes e simultâneos.[13] O nosso liberalismo se mostrou respeitoso ao sacrossanto e inviolável direito de propriedade (incluindo o escravo). Como bem observou Bosi (1992: 195), não há impasse real entre liberalismo e escravismo:
“O par, formalmente dissonante, escravismo-liberalismo, foi, no caso brasileiro pelo menos, apenas um paradoxo verbal. O seu consórcio só se poria como contradição real se se atribuísse ao segundo termo, liberalismo, um conteúdo pleno e concreto, equivalente à ideologia burguesa do trabalho livre que se afirmou ao longo da revolução industrial européia.”
Nossos liberais envergonhados não podiam levar suas concepções políticas às últimas conseqüências, pois isto significaria negar a estrutura social fundada na escravidão. Os ministérios liberais e conservadores alternavam-se no governo sem que isto significasse qualquer mudança substancial. Assim, tanto fazia oposição como situação: o partido que subia ao poder recebia o programa do que caía, e vice-versa.
Eram liberais-conservadores, quando muito, moderados. Como afirma a máxima lampedusiana, aceitavam mudanças desde que nada mudasse.[14] Era um liberalismo escravocrata preocupado em manter os privilégios e o exclusivismo da participação política; um liberalismo que almejava manter a estrutura social vigente amparado num programa político vinculado ao passado. Daí não haver qualquer dificuldade aos conservadores em assumir o programa liberal.
Nosso iluminismo tupiniquim foi tão limitado em seus objetivos que mesmo a ala esquerda, a minoria liberal que os conservadores chamavam de exaltados, estavam muito longe de expressar a radicalidade dos revolucionários franceses no tocante às mudanças sociais. De qualquer forma, essa esquerda tinha uma particularidade que a diferenciava sensivelmente: dirigia-se às massas populares.
Os exaltados estiveram à frente dos vários movimentos populares durante o período regencial. Os escravos e libertos, em maior ou menor grau, participaram desses movimentos. Em alguns casos, como a Revolução Farroupilha, imprimiu-se um conteúdo antiescravista claro e preciso[15]; em outros, a sua participação era admitida como necessária, mas vista com desconfiança, e seus dirigentes tratavam de tranqüilizar a elite agrária; o envolvimento do cativo era às vezes consciente e voluntário; outras vezes ocorria por ordem dos seus proprietários.
O abolicionismo e a República
Em geral, nossos liberais não se importavam com o escravo. O discurso liberal só mudou quando ficou patente que o sistema do trabalho escravo deveria dar lugar ao trabalho livre assalariado. Então, os velhos liberais assumem nova roupagem e decretam que a escravidão, embora legal – pelo estatuto de propriedade – não era legítima.[16] Essa mudança se referia basicamente aos centros urbanos e, particularmente, ao Nordeste. O rico Oeste Paulista permanecerá escravista e sua adesão ao abolicionismo será muito mais no sentido de implementar uma política imigracionista com subsídio do Estado.[17]
O programa liberal admitia a abolição gradual dos escravos, dentro de lei e da ordem. Nabuco defenderá a abolição imediata, mas também recusará qualquer movimento que rompa a institucionalidade. Ele enfatizará a via legal e pacífica: a emancipação deveria ser obra do Estado, desvinculando o social do político e substituindo o escravo pelo Estado, enquanto agente político central. [18] Mesmo assim, o liberalismo do monarquista Joaquim Nabuco adquire um tom dissonante, por expressar uma preocupação com reformas sociais. Ele compreendia que sem as condições que tornassem possíveis o exercício da cidadania, o Brasil não se tornaria uma nação civilizada.[19]
Abolicionistas como Nabuco imaginavam representar o escravo, deter o mandato dos que não tinham vez e voz. Setores mais radicalizados, como aqueles liderados por Luis Gama, incentivavam a fuga dos escravos e estabeleciam uma dinâmica política centrada neles, enquanto sujeitos da própria história.[20] Nos primeiros anos da década de 1880, intensificou-se a participação dos negros no processo abolicionista e ampliou-se as fugas em massa dos escravos. Os senhores temiam perder o controle da situação.
Então, veio a abolição, mas a causa da liberdade permaneceu irresoluta: ao escravo liberto não foram facultadas as condições econômicas e sociais para o usufruto da plena liberdade. O ato oficial da princesa regente apenas institucionalizou a realidade: boa parte dos escravos já tinham conquistado a alforria. A assinatura da abolição, em outras palavras, libertou os senhores proprietários brancos do fardo representado pelo cativo.
Escravos na Colônia e no Império, sustentáculos do desenvolvimento econômico brasileiro durante décadas, os negros se viram largados no interior de uma sociedade fundada em bases racistas. Libertos foram preteridos do mercado formal de trabalho em nome de um projeto elitista de branqueamento do país. Tiveram que disputar com o imigrante europeu até mesmo as mais modestas oportunidades de trabalho livre, como a de engraxate, jornaleiro ou vendedor de frutas e verduras, transportadores de peixe e carregadores de sacas de café, etc. As mulheres garantiram a sobrevivência da família trabalhando, ontem como hoje, como domésticas, faxineiras, babás, doceiras, cozinheiras, lavadeiras e outras atividades similares. As melhores ocupações ficaram com seu concorrente direto: o europeu.
A proclamação da República, em 1889, não mudou a situação política e social do povo negro e pobre: permaneceu excluído da política institucional, como espectador dos acontecimentos. Esse fator é bem ilustrado pelo divertido conto de Artur Azevedo (1960: 37-42) sobre O Velho Lima, funcionário público que, enfermo, ausentou-se do trabalho à véspera do 15 de novembro de 1889. Quando restabelecido e de volta ao trabalho, o velho Lima, que não tinha o hábito de ler jornais, estranhou muito o que via e ouvia. Não entendeu porque lhe chamavam de cidadão; compreendeu menos ainda quando tratou um conhecido por comendador e este lhe disse que já não havia mais comendas; outros encontros deram-lhe a impressão de que seus interlocutores estavam loucos: falavam em nova bandeira, em como seria a recepção do Imperador Pedro II em Portugal etc. Finalmente, ao chegar à repartição onde trabalhava ele não se conteve ao observar que a imagem de D. Pedro não mais se encontrava pendurada na parede. Indignado perguntou a um contínuo:
– Por que tiraram da parede o retrato de sua majestade?
O contínuo, respondeu num tom lentamente desdenhoso:
– Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana?
– Pedro Banana! repetiu raivoso o velho Lima.
E, sentando-se, pensou com tristeza:
– Não dou três anos para que isto seja uma república!
Este conto ilustra bem a situação do povo à época da proclamação da República. O velho Lima representa a maioria do povo alijado dos processos políticos.
Negro: subcidadão
O 13 de maio de 1888 marcou um momento crucial de um processo iniciado ainda nos tempos do Brasil colonial: a luta do cativo pela liberdade. O escravo emancipado perceberá que esse processo ainda não findara e que, como assinala Bosi (1992: 271), avançava em duas direções:
“Para fora: o homem negro é expulso de um Brasil moderno, cosmético, europeizado. Para dentro: o mesmo homem negro é tangido para os porões do capitalismo nacional, sórdido, brutesco. O senhor liberta-se do escravo e traz ao seu domínio o assalariado, migrante ou não. Não se decretava oficialmente o exílio do ex-cativo, mas este passaria a vivê-lo como um estigma na cor da sua pele.”
Os caminhos dos negros após a abolição foram diferentes e de acordo com fatores como: particularidades regionais, conjuntura econômica, proporção em relação à população geral, concorrência no mercado de trabalho. Eles se espalharam nas zonas rurais – economias de subsistência, monoculturas – fundindo-se com as amplas camadas da população. Substituído nas fazendas de café pelo imigrante – branco europeu ou japonês – também foi preterido nas cidades enquanto mão-de-obra para a nascente indústria brasileira. Censo da época indica que a maioria absoluta (mais de 80%) dos operários eram imigrantes, sobretudo italianos. A experiência acumulada pelo ex-escravo durante anos não lhe era suficiente para enfrentar a concorrência.[21] Escravo no passado, ele deveria se especializar e aprender a vender a sua força de trabalho.
Por outro lado, é preciso reconhecer que ele carregava o estigma de um passado marcado pelo trabalho escravo, gerador de conflitos entre as exigências do tipo de trabalho assalariado e a forma como os escravos o encaravam. Com analisa Florestan Fernandes, o imigrante embora se rebelasse contra as condições de vida e de trabalho, deformadas pelas sobrevivências do padrão de trabalho servil, aceitavam as condições impostas pelo contrato de trabalho capitalista e via nesse a possibilidade de constituir uma poupança e ascender socialmente.
“O negro e o mulato pretendiam as mesmas condições de vida e tratamento concedidos aos imigrantes, porém obstinavam-se em repudiar certas tarefas ou, o que era mais grave, o modo de dispor de seu tempo e energias. Assim, a escravidão atingia o seu antigo agente de trabalho no próprio âmago de sua capacidade de ajustar-se à ordem social associada ao trabalho livre. Tornava-se difícil ou impossível, para o negro e o mulato, dissociar o contrato de trabalho de transações que envolviam, diretamente, a pessoa humana. Ao contrário do imigrante, que percebia com clareza que somente vendia sua força de trabalho, em dadas circunstâncias de prestação de serviços, eles ajustavam-se à relação contratual como se estivessem em jogo direitos substantivos sobre a própria pessoa. Ou seja, como se se vendessem, em parte ou totalmente, ao aceitar e ao praticar as estipulações do contrato.” (Fernandes, 1978: 29-30)
A resistência dos ex-cativos à racionalidade capitalista – às exigências de disciplina, ao poder despótico fabril e à organização do trabalho – indica que ainda estavam presos ao padrão de trabalho pré-capitalista. Mas também é preciso considerar a dinâmica da rápida expansão da indústria, a qual retirou-lhes as condições para um gradual aprendizado “da mentalidade e dos comportamentos requeridos pelo novo estilo de vida”. (Id.: 30) Eles bem que tentaram, a seu modo, se inserir na sociedade republicana capitalista, mas, “viram-se repudiados, na medida em que pretenderam assumir papéis de homens livre com demasiada latitude ou ingenuidade, num ambiente em que tais pretensões chocavam-se com generalizada falta de tolerância, de simpatia militante e de solidariedade.” (Id.: 31)
Ao ex-escravo restou os trabalhos da rua e da casa, os trabalhos braçais e mal remunerados e que não exigiam qualificação educacional. Jogados à margem da sociedade, permaneceram marginalizados da política e excluídos da organização formal dos operários: os sindicatos criados pelo nascente movimento operário no Brasil, de predominância ideológica anarquista. Ele se somará à imensa população de pobres espalhados pelo país: reconhecidos como brasileiros, serão os cidadãos de segunda classe, subcidadãos, estrangeiros em seu próprio país. A modernidade republicana abandonou-os à própria sorte. “Concretizara-se, de modo funesto, imprevisto e em escala coletiva, o vaticínio de Luís Gama ao traduzir os anseios de liberdade de certo cativo: “falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira…”, notou Fernandes. (Id.: 15)[22]
O espetáculo de miséria e pobreza chamou a atenção de um dos nossos maiores escritores: Euclides da Cunha. O autor de Os Sertões, cujas qualidades incluía o racismo fundado em bases pseudo-cientificas[23], se referiu a essa população como “rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-nos três séculos.”[24]
No interior desse imenso país, mas também nos grandes centros urbanos, essa população não contava nos cálculos da política oficial – que os viam como classes perigosas. Desconsiderado econômica, social e culturalmente, o negro, a exemplo dos brancos pobres, foi excluído do jogo político das oligarquias que dominavam a república velha.
Durante o período republicano a política continuou sendo uma atividade elitista. O povo é chamado para aplaudir ou é visto como um mal necessário para legitimar uma democracia de fachada. Os personagens de Lima Barreto (1956), em Numa e Ninfa, ilustram bem essa realidade: eles defendem um governo forte que concilie liberdade e ditadura. É paradoxal! Mas esse é o regime ideal dos nossos liberais e republicanos. Suportam o povo para governar em seu nome. Nessa obra, Dona Celeste, esposa de um senador, em seu grã-finismo inato, declara:
– Os deputados e senadores não deviam estar em dependência tão estreita desse povinho – não acha você, Edgarda?
A Ninfa responde:
– Creio, mas… Dizem que eles devem ouvir todo o mundo, para bem representar a vontade do povo, por quem são eleitos.
– O povo! Eleitos! Nós é que sabemos como é isso, minha cara Edgarda; nós sabemos disso…
A política republicana reforçou os esquemas de dominação herdados do período colonial-imperial fundados em torno de relações pessoais de favor, compadrio e o poder do coronel. Os pobres permaneciam dependentes dos favores do grande fazendeiro – desde um remédio, um médico, até a concessão para a exploração de uma pequena roça ou a criação de animais e a proteção contra a polícia e a justiça. Em troca, prestavam serviços gratuitos ao coronel, seu compadre. As eleições constituíam apenas um desdobramento dessas mútuas relações de favores consolidadas no cotidiano dessas populações. Como observou Leal (1952: 20-21):
“são, pois, os fazendeiros e chefes locais que custeiam as despesas de alistamento e da eleição (…) Documentos, transporte, alojamento, refeições, dias de trabalho perdido, e até roupa, calçado, chapéu para o dia da eleição, tudo é pago pelos mentores políticos empenhados na sua qualificação e comparecimento (…) É, portanto, perfeitamente compreensível que o eleitor da roça obedeça à orientação de quem tudo lhe paga, e com insistência, para praticar um ato que lhe é completamente indiferente”.
Desenvolveu-se um sistema clientelista e as eleições eram decididas pelo maior ou menor poder dos coronéis. Os votos de cabestro e os eleitores fantasmas eram comuns em eleições geralmente fraudulentas (também contribuía o fato do voto ser em aberto). O que decidia mesmo era o poder de fogo de cada coronel. Os vencedores estendiam sua influência, através de um sistema de nomeações e favorecimento, pela política estadual e federal. As urnas terminavam por legitimar o poder do mais forte e por manter as relações de dependência e favor. Nesse esquema, aos pobres, independente da sua cor, cabia apenas o papel de cabos eleitorais ou de comporem o exército privado do coronel: seus jagunços. Era essa elite agrária, a partir da política do café com leite, que dominava o país.
A ação política do negro
O povo negro teve dificuldade de se organizar na nova situação: a I República fomentou um clima desfavorável à sua atividade política. Sem espaço na política institucional e nos sindicatos, ele desenvolveu formas de atuação amparadas numa imprensa própria surgida nas primeiras décadas do século XX: O Menelik(1915), A Rua (1916), O Alfinete (1918), A Liberdade (1919), A Sentinela (1920), O Getulino e o Clarim d’ Alvorada (fundado, também em 1924, por José Correia Leite e Jaime de Aguiar). Nessa época, se falava em organização e conscientização dos homens de cor: só mais tarde que o termo negro passou a ser aceito.
Essas iniciativas confluíram para a articulação de um grande movimento de massas: a Frente Negra Brasileira. O negro começava a construir seu próprio espaço de atuação com o objetivo de influir no jogo político. Essa iniciativa fomentava a tendência de “arregimentar o negro” com fins próprios, tanto no terreno eleitoral quanto, em sentido mais amplo, como grupo social integrado, autônomo e capaz de manejar livremente, em fins próprios, sua parcela de poder político.” (Fernandes, 1965: 21)
Fundada em 16 de setembro de 1931, a Frente Negra Brasileira expressava as inquietações e ansiedades do negro que, nesses anos, manifestava-se com vigor contra o preconceito racial e por sua elevação à cidadania. Essa organização buscava congregar todos os grupos existentes no meio negro e estimulá-los a enfrentarem os tabus e preconceitos, se organizando coletivamente para defender seus interesses específicos.
A Frente Negra publicou o jornal A Voz da Raça e sua sede ficava na Rua da liberdade, 196 (São Paulo, Capital). Florestan Fernandes descreve sua organização:
“Por seus estatutos, ela se reconhecia como tendo por fim promover a “união política e social da Gente Negra Nacional, para afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude de sua atividade material e moral no passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais, na Comunhão Brasileira”. Era dirigida por um Grande Conselho, “soberano e responsável, constando de 20 membros, estabelecendo-se dentro dele o Chefe e o Secretário, sendo outros cargos necessários preenchidos pelo Presidente”. O Grande Conselho era “ajudado em sua gestão pelo Conselho Auxiliar, formado pelos cabos distritais da Capital”. Este órgão tornou-se o fulcro da formação da milícia frentenegrina, que tinha organização para-militar. Os seus componentes vestiam camisas brancas, estavam sujeitos a rígida disciplina, recebiam treinamento militar e foram chefiados pelo Dr. Raul Joviano do AMARAL, que ocupava o posto de capitão (os demais postos de major, coronel, eram honoríficos, cabendo aos membros do Grande Conselho e ao Presidente da F.N.B.). (Id.: 35-36) [25]
Em seu horizonte estava a justiça social e a sua inserção na sociedade capitalista. Uma das formas pensadas para superar a situação de inferioridade social em que o negro se encontrava era a educação. Tratava-se de prepará-lo para integrar a sociedade de classes, para torná-lo competitivo e levá-lo a superar a miséria e o preconceito.[26]
Com esses objetivos, a Frente Negra se registraria como partido político. O golpe de 1937 a colocou na ilegalidade. Reprimida pelo governo de Getúlio Vargas e envolta num debate interno em torno das simpatias à ideologia nazi-fascista, a organização se desintegraria. Seus militantes ainda tentariam a sua reorganização com a fundação da União Negra Brasileira, sob a presidência do Dr. Raul Joviano do Amaral. Com a democratização do país, a partir de 1945, ocorreriam outras tentativas de rearticular a Frente Negra.
Embora presa à ideologia nacionalista de integração e assimilação, o que a levava a descartar a mobilização pela defesa das formas culturais africanas, a Frente teve um importante papel na ação política dos negros. Organizada como sociedade civil, externamente aos sindicatos e aos partidos (ainda que, posteriormente, postulasse a sua transformação em organização política-partidária), a Frente Negra foi o primeiro movimento de massas no período pós-abolicionista que tentou inserir o negro na política. Como relata Florestan:
“O repúdio ao padrão tradicionalista e assimétrico de dominação racial e as aspirações de integração social rápida, em escala coletiva, convertiam a Frente Negra, inapelavelmente, num movimento reivindicatório de tipo assimilacionista. No fundo, portanto, ela atuou como um mecanismo de reação societária do “meio negro”. Visava consolidar e difundir uma consciência própria e autônoma da situação racial brasileira; desenvolver na “população de cor” tendências que a organizassem como uma “minoria racial integrada”; e desencadear comportamentos que acelerassem a integração do negro à sociedade de classes. Para atingir este fim, ela operava em três níveis distintos: no solapamento da dominação racial tradicionalista, através do combate aberto às manifestações do “preconceito de cor” e da desmoralização dos valores ou das técnicas sociais em que ele se assentava; na reeducação do “negro”, incentivando-o a concorrer com o “branco”, em todas as esferas da vida, e emulando-o, psicologicamente, para enfrentar a “barreira de cor”; na criação de formas de arregimentação que expandissem e fortalecessem a cooperação e a solidariedade no seio da “população de cor”. (Id.: 37)
Essa experiência expôs as dificuldades da consolidação de uma política autônoma dos negros. De um lado, observa-se a incredulidade em relação às suas próprias forças e o deslocamento da sua ação para tentativas de ascensão individual. Pesa-lhe ainda as condições sócio-políticas herdadas do passado escravocrata:
“Desde os pródromos dos movimentos reivindicatórios, todas as tentativas de congregar o “voto negro”, por exemplo, canalizando-o para determinado (ou determinados) representantes sempre falharam irremediavelmente. Houve quem explicasse semelhante desfecho (chocante em alguns casos, pois a Frente Negra Brasileira possuía milhares de adeptos e o candidato escolhido alcançou votação inexpressiva) pelo analfabetismo que excluía o “negro”, em massa, do corpo eleitoral. No entanto, o “eleitor negro” raramente tende a acolher os argumentos favoráveis à concentração do “racial” dos votos, apesar da pertinácia dos que defendem essa orientação.” (Id.: 56-57)
Essa é uma tendência que se mantém ainda hoje. Acessório da política classista, subutopia, a luta anti-racial se dará nos poros da sociedade de classes: uma experiência aqui, outra acolá. O negro reage ao preconceito utilizando-se das brechas inscritas na própria lei liberal-constitucional. Antes de expressar seu caráter social e classista, ele precisa fazer o percurso inverso: tem que se firmar primeiro enquanto raça. Fracassada a tentativa de integração coletiva através da Frente Negra Brasileira, ele buscará a solução individual.
A aceleração do desenvolvimento industrial nos anos 1940-60 parece fornecer as oportunidades que precisa para integrar-se no mercado de trabalho como livre assalariado. O progresso, acredita, poderá redimí-lo. Porém, sua situação social não muda radicalmente. É certo que uns conseguem ascender socialmente, mas o grosso continuará a fazer parte dos setores mais pobres da população, “a concentrar-se em ocupações mal remuneradas e de pouco ou nenhum prestígio e a fornecer ralas elites, mais ou menos isoladas e fechadas, como no passado.” (Id.: 134)
Nesses anos, a política populista alça os trabalhadores à posição de coadjuvantes no cenário da política brasileira. Eles não mais poderiam ser desconsiderados como sujeitos históricos (por isso a necessidade do golpe militar). Nesse contexto, o negro intensifica sua presença na cena política, mas ainda é um rosto na multidão – sua inserção se dá pelo viés classista – através dos sindicatos, dos movimentos grevistas e da sua participação, como cabo eleitoral, nos partidos populistas; a adesão aos partidos contestadores da ordem ocorre enquanto indivíduo diluído no coletivo da classe.
Ele reagirá. Em 1945, Abdias do Nascimento cria o Teatro Experimental do Negro – até então, excluído, como ator e como platéia. Segundo seu relato:
“O Teatro Experimental do Negro nasceu para contestar essa discriminação, formar atores e dramaturgos afro-brasileiros e resgatar uma tradição cultural cujo valor foi sempre negado ou relegado ao ridículo pelos nossos padrões culturais: a herança africana na sua expressão brasileira.” (Nascimento, 2000: 206)
Impulsionado pela atuação do Teatro Experimental do Negro, ocorre, ainda em 1945, a Convenção Nacional do Negro Brasileiro; em maio de 1949, realiza-se a Conferência Nacional do Negro; e, em 1950, o 1º Congresso do Negro Brasileiro.[27]
Ao avaliar essa experiência, Guimarães (1999: 211) reconhece que o Teatro Experimental do Negro
“…ampliará a agenda anti-racista no Brasil, incluindo, de forma incisiva, a luta contra a introjeção do racismo pela população negra, por meio da aceitação do ideal de embranquecimento, dos valores estéticos brancos e da detração da herança cultural africana. A ideologia predominante no movimento ainda será, contudo, nacionalista e integracionista.”
Esses anos marcam o fim do ciclo iniciado com a efervescência política que originou a Frente Negra Brasileira. O protesto negro que floresceu na década de 1930 e irradiou-se pela década seguinte “foi sufocado pela indiferença dos brancos, em geral; pela precariedade da condição humana da gente negra; e pela intolerância do Estado Novo diante do que fosse estruturalmente democrático”. (Fernandes, 1980)
O fim das ilusões e a rearticulação do movimento negro
Como notou Nabuco (2000), as ilusões dos escravos quanto à emancipação resistiram às frustrações da Independência brasileira e às leis de papel que deveriam minorar a sua situação. (O tráfico mesmo proibido, permaneceu ativo sob os olhos e beneplácitos das autoridades; a Lei do Sexagenário, livrava o senhor do fardo de manter o velho escravo; a Lei do Ventre Livre era contornada habilmente pelos senhores de escravos; e, a abolição foi uma obra incompleta). Mesmo assim, eles mantiveram a esperança.
Nos anos 1960-70, a situação do negro na sociedade brasileira não mudara substancialmente. Em seu estudo, elaborado entre 1963 e 1964, Florestan concluía que:
“Não só os mecanismos de dominação racial tradicionais ficaram intactos. Mas a reorganização da sociedade não afetou, de maneira significativa, os padrões pré-estabelecidos de concentração da renda, do prestígio social e do poder. Em conseqüência, a liberdade conquistada pelo “negro” não produziu dividendos econômicos, sociais e culturais. Ao contrário, dadas certas condições especificamente históricas, do desenvolvimento econômico da cidade, ela esbarrou com as pressões diretas e indiretas da substituição populacional.” (Fernandes, 1965: 388-89)
O negro sintetiza a tensão entre a sua situação de raça e a situação de classe.[28] Nos anos ditatoriais a determinação de classe se fortalecerá. Os espaços para a ação política institucional serão praticamente extintos. O regime militar censurou toda e qualquer manifestação de caráter anti-racial e, inclusive, omitiu a rubrica raça no censo de 1970. Os militares oficializaram a ideologia da democracia racial e a transformaram em peça de marketing no exterior. A militância que ousou desafiar o mito da democracia racial foi acusada de “antibrasileiros”, “racistas”, ou imitadores baratos dos ativistas americanos pelos direitos civis.” (Skidmore, 1994: 165) A luta racial adquiriu ares de antipatriotismo. Com efeito, a forma corriqueira de negar a existência do racismo e de todas as suas conseqüências é simplesmente fazer de conta que o problema não existe.
Se não podemos nos surpreender com a atitude historicamente preconceituosa do pensamento dominante, é interessante observar como os partidos e organizações políticas de esquerda, que defendem idéias igualitárias e contra todo tipo de opressão, também terminam por negligenciar o tema racial. Eurocêntrica em sua fundamentação teórica, a esquerda brasileira teve como parâmetro um determinismo economicista que reduz todas as relações sociais às determinações de classe, ou seja, vê o trabalhador e a trabalhadora, negro ou branco, negra ou branca, sob a lente do conflito Capital X Trabalho. Passa-lhe despercebido que o homem e a mulher não são apenas agentes econômicos, mas agentes situados histórica e socialmente.
Uma esquerda enviesada por tal reducionismo tende a passar ao largo de questões como o racismo. Impregnada pela ideologia racista dominante, não compreende o papel e a importância desta ideologia enquanto elemento reprodutor e estruturante das desigualdades em nossa sociedade. Por conseqüência, transforma a questão racial em mero problema relativo às minorias.
Mesmo o maior partido da esquerda brasileira, resultante das lutas sociais contra a ditadura militar e pela redemocratização do país não incorporou, em sua fundação, a dimensão racial. É certo que a geração de militantes afro-brasileiros forjada nos anos 1970 encontrou no Partido dos Trabalhadores um espaço privilegiado para implementar a luta anti-racial. Eles reconhecem que o PT não ficou insensível à questão racial. Porém, o PT, na analise desses militantes, reunidos no IV Encontro Nacional de Negros e Negras do PT:
“também, não desvendou o véu, o manto que encobre o racismo brasileiro e promove uma redução aparente dos seus efeitos. Apesar de afirmar o contrário, o PT repetia o equívoco histórico da esquerda de superestimar a importância da contradição de classes diante de outras contradições engendradas na sociedade e se deixava impregnar pela ideologia racista hegemônica na sociedade brasileira. Ao não compreender o papel e a importância do racismo na estruturação e reprodução de desigualdades em nossa sociedade o PT tornou-se, ainda que involuntariamente, cúmplice, parceiro da manutenção do “status quo racial”.[29]
É interessante notar que a Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT foi criada apenas em 1995, aprovada no seu X Encontro Nacional. Nesse evento, o PT homenageou os 300 anos de Zumbi dos Palmares. Note-se, ainda, que o PT não é o único partido a abrigar a militância afro-brasileira. Esses militantes já estavam presentes no velho Movimento Democrático Brasileiro (MDB), no Partido Democrático Trabalhista, em organizações políticas e na esquerda em geral. [30] Nos anos 1980, já com a reformulação partidária consolidada, encontraremos militantes da causa negra até mesmo em partidos considerados à direita no espectro político brasileiro.
A geração dos anos 1970 impulsionou a presença negra na política brasileira. O marco, nessa trajetória, foi a criação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, resultante da articulação das várias tendências que atuavam na luta anti-racial e pelas liberdades democráticas. Conforme o depoimento de Abdias do Nascimento (2000: 219-20), o movimento negro:
“enfrentava, no contexto da resistência ao regime de exceção, a oposição de setores de esquerda que negavam a legitimidade da nossa luta especifica. Os militantes do movimento negro precisavam se manter como verdadeiros heróis para levantar e sustentar essa bandeira. Em geral, essa fase da luta afro-brasileira se caracterizava por um certo atrelamento a expectativas da esquerda, e com isso uma impossibilidade de recorrer, se embasar, ou dar continuidade às histórias e conquistas materializadas nos períodos anteriores. Naquela circunstância, tutelado pelas esquerdas, o movimento negro se reorganizava como uma subutopia, já que a vitória da revolução mais ampla automaticamente resolveria os problemas de exclusão social.”
O Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial nasceu a partir do Ato Público, realizado em São Paulo, em 07 de julho de 1978, em protesto contra a discriminação sofrida por quatro jovens negros nas dependências do Clube Regatas Tietê e contra a tortura e morte de Robson Silveira Luz, numa delegacia de São Paulo.[31] Essa data ficaria marcada como o Dia Nacional de Luta Contra o Racismo. Passara-se, então, 41 anos desde o fechamento da Frente Negra Brasileira.
Um dos primeiros atos de caráter político-social naquele contexto, esse protesto reuniu centenas de pessoas. Aos que desconheciam a história da luta anti-racial poderia parecer que o movimento negro nascia ali. De fato, esse momento sintetizava um dos aspectos dos movimentos populares no Brasil: a luta do povo negro. Essa luta esteve sempre presente: seja numa tenda de umbanda, nas lágrimas do negro e da negra diante da discriminação sofrida ou na alegria de uma conquista, como o alargamento da sua influência política com a eleição de parlamentares comprometidos com a causa afro-brasileira, nas câmaras municipais, Assembléias Legislativas e o Congresso Nacional.
Na avaliação de Skidmore (1994: 165), o Movimento Negro Unificado expressa a “onda de consciência afro-brasileira mais forte que apareceu neste século”. Um dos fatores que ilustram essa força é o surgimento de ampla literatura afro-brasileira (muitas das quais mantidas pelos próprios autores). “Na luta anti-racista no Brasil, o movimento negro contemporâneo teve no MNU um importante instrumento de qualificação das nossas reivindicações junto ao Estado e à sociedade”, frisa Onawale.[32]
A participação dos negros na política institucional seguia, até então, a tendência já identificada por Thales de Azevedo (1955: 106-107) no seu estudo sobre a ascensão do negro na Bahia dos anos 1950. Ele observou que “numerosos escuros candidataram-se a cargos políticos, mas os registros dos mesmos no Tribunal Eleitoral não incluem indicações sobre o respectivo tipo físico. Mas entre os 103 atuais representantes do povo baiano nas assembléias legislativas federal, municipal e estadual, existem cerca de trinta por cento de morenos e pardos e alguns bastante escuros.” (sic.). Sem entrar no mérito dos números apresentados, observemos apenas que esses parlamentares não se agrupam segundo critérios de raça e que o prestígio de que desfrutam não dependem da cor, mas “dos seus traços de personalidade e dos partidos ou chefes políticos a que estão ligados”.[33]
Nos últimos anos, o crescimento da participação do negro na política institucional, através dos partidos políticos, indica mudanças nesse quadro. Na legislatura federal (mandato 1999-2003), constituiu-se, em caráter informal, a Frente Parlamentar Negra. Seu coordenador, o deputado Saulo Pedrosa (PSDB-BA), lamentou o fato de apenas 11 deputados se declararem afro-brasileiros e concordarem em participar. Observa-se ainda a resistência dos negros dos diversos partidos em agruparem-se segundo o critério racial.[34]
O fortalecimento da participação do negro na política institucional incidiu ainda sobre a estrutura do Estado, com a criação de conselhos e apoio a entidades responsáveis pelas demandas raciais. O pioneiro foi o governador Franco Montoro que, em 1984, criou o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra. Esse exemplo foi seguido por outros governos estaduais e federal, os quais criaram órgãos próprios para tratar da temática racial.
A Constituição de 1988 consagrou os avanços obtidos pelos negros em suas lutas institucionais. A discriminação racial só foi reconhecida oficialmente em 1951, coma aprovação da Lei Afonso Arinos. Cem anos após a abolição da escravatura, o Estado brasileiro, pela segunda vez, admitiria a existência da discriminação contra os negros e tipificaria tal procedimento como crime inafiançável e imprescritível (artigo 5º, inciso XLII), sujeitando os responsáveis à pena de reclusão.[35] Coube ao deputado negro Carlos Alberto de Moura justificar essa exigência. Ressalte-se que a Comissão Provisória – a denominada Comissão Arinos – não tinha a presença de um único negro (passou a contar após as intermediações do ex-governador Franco Montoro).
Nesses anos, o movimento negro logrou ampliar sua influencia no Congresso Nacional através da eleição de deputados e senadores publicamente identificados com a causa negra: é o caso de Abdias do Nascimento (deputado e depois senador, assumindo a suplência após a morte de Darcy Ribeiro); deputada Benedita da Silva (ex-senadora e ex-governadora do Rio de Janeiro); o deputado federal Paulo Paim (atual senador pelo Rio Grande do Sul); Carlos Alberto Caó de Oliveira; Edmílson Valentim etc.
Os sindicatos também passaram por mudanças em relação ao tema racial, fruto da crescente influência dos negros. Se antes predominava um discurso sindical que solicitava “que esquecessem seus problemas do cotidiano, se convencessem de que são iguais a todos os outros trabalhadores, isto é, não-negros, e, finalmente, que abdicassem da sua condição racial em nome da unidade de classe” (Bento, 2000: 332), observa-se, principalmente a partir da década de 1990, uma maior sensibilidade em relação à especificidade dos negros.
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), em seu V Congresso Nacional, reconheceu oficialmente que a temática racial era fundamental para a organização dos trabalhadores. A Central Geral dos Trabalhadores(CGT), organizou, em 1990, no Rio de Janeiro, o Seminário Nacional de Sindicalistas Anti-Racistas e criou aComissão Nacional Contra a Discriminação Racial. A Força Sindical (FS), reestruturou a Secretaria Nacional de Desenvolvimento da Igualdade Racial, cumprindo decisão do seu congresso. Em 20 de novembro de 1995, realizou-se uma das mais importantes manifestações do movimento negro: a Marcha contra o Racismo, pela Igualdade e pela Vida, reunindo em Brasília, milhares de militantes e sindicalistas de todo o país. Ainda nesse âmbito, devemos registrar a formação do Instituto Sindical Interamericano Pela Igualdade Social (INSPIR), com a participação da CUT, CGT, FS, AFLCIO e ORIT.
Também as mulheres afro-brasileiras intensificaram a sua participação, criando movimentos, publicações, entidades e Organizações Não-Governamentais específicas.[36] O Movimento das Mulheres Negras interveio nos fóruns nacionais e internacionais que, em 1995, prepararam a Conferência Beijin 95, incluindo a temática racial, na perspectiva de gênero, na pauta das discussões feministas.
Com o fortalecimento da sociedade civil, verifica-se um boom no surgimento de ONGs, as quais preenchem o vazio deixado pelo Estado. Nesse período, formam-se várias ONGs preocupadas com a temática racial, também locus da militância afro-brasileira. Verifica-se ainda o crescimento da intervenção racialista na internet, espaço privilegiado para a divulgação e denúncia da luta anti-racial. Os negros também resistiram através da formação de associações comunitárias negras, do candomblé, das escolas de samba, da imprensa e publicações.
Atualmente, o movimento negro em geral intensifica a sua participação no âmbito institucional e busca intensificar a adoção de políticas afirmativas. [37] As ações afirmativas, públicas ou privadas, partem do princípio de que determinados grupos sociais são legatários de uma situação histórica-social que os tornam merecedores de um tratamento diferenciado, enquanto fator compensatório e de justiça social. O debate sobre as políticas afirmativas se dá em torno de três modalidades: 1) ações preventivas (medidas que objetivam evitar processos discriminatórios futuros); 2) política de cotas (reserva de vagas em universidades, instituições públicas etc.)[38]; e, 3) reparação (movimento que busca compensar discriminação sofrida no passado).[39]
Essa demanda causa polêmica na sociedade em geral e, inclusive, em setores do próprio movimento negro. Trata-se da tensão entre identidade racial e identidade de classe, entre o caráter universalista da luta de classe e as especificidades da problemática racial.[40] Tutelado por uns, manipulado e usado como massa de manobra por outros, o negro tem dificuldade em articular as formas coletivas de organização. Quando ousa fazê-lo é acusado de divisionismo, de praticar racismo às avessas e importar ideologias raciais. Pedem-lhe que acredite que vivemos numa democracia racial, quando até mesmo a democracia política se mostrou débil e esporádica em nossa história. Exigem-lhe que creia que a utopia socialista há de se concretizar e, então, os preconceitos e o racismo findarão. Resta-lhe aceitar a inevitabilidade da história.
Uns enfatizam o aspecto classista e outros o aspecto racial. Ora, parece claro que a temática racial se insere no âmbito da nossa formação histórica e diz respeito á estrutura econômica forjada nesse processo; mas, também parece evidente que as mudanças estruturais não significam, mecanicamente, o fim do racismo e dos preconceitos (as experiências históricas denominadas socialistas o confirmam). Como escreve Munanga (1996: 216):
“Sem dúvida, não podemos fazer uma separação mecânica entre um problema social que afeta todos os oprimidos da sociedade, brancos e não-brancos, e a questão racial. Brancos pobres e negros pobres são ambos vítimas da mesma causa. A libertação de ambos passaria pela mesma solução, mas não liberta o negro dos efeitos do racismo que, antes de ser uma questão econômica, é uma questão moral e ontológica.”
Se no Governo FHC, os negros obtiveram avanços – como reconhece setores do próprio movimento[41] – a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (e de vários parlamentares negros) favorece a ampliação da sua presença nos espaços institucionais. A palavra esperança parece sintetizar o momento político atual. Todavia, o negro aprendeu que para ele sempre é mais difícil e seus esforços, no âmbito institucional e extra-institucional, deverão ser ainda mais redobrados.
Considerações conclusivas
A pesquisa sobre a participação e representação do negro na política se ressente de fontes bibliográficas, entrevistas aos militantes negros e negras, levantamento criterioso e aprofundado sobre a presença do negro nas instituições. Esse é um trabalho que foge ao âmbito e às características de um artigo como esse, exigindo um trabalho mais aprofundado.[42]
Se considerarmos o âmbito institucional, a situação do negro e da negra mostra avanços em direção à conquista da cidadania. Hoje eles podem escolher seus governantes e também disputarem as eleições. Ampliaram-se os canais de participação e mesmo as possibilidades deles conquistarem um cargo no legislativo ou no executivo brasileiros. Eles estão presentes nas câmaras municipais, nas assembléias legislativas estaduais, no congresso e senado federal e se inserem no aparato do Estado em todos os níveis.
Ainda é pouco e constitui a exceção que confirma a regra. Quantos vereadores/as negros/as temos em nossas câmaras municipais? E nas prefeituras? Quantos são eleitos deputados para as Assembléias Legislativas e para o Congresso Nacional? E no senado? E se considerarmos as direções dos partidos políticos, mesmo os de esquerda? Será diferente nas direções sindicais? Em todos os casos veremos que a participação dos negros segue a mesma lógica observável nos demais setores da sociedade: no mercado de trabalho, no acesso à educação superior etc., as estatísticas demonstram que eles são minoritários e, mesmo quando ocupam cargos prestigiados, não estão livres do preconceito e do estigma da cor.
Contudo, a despeito das adversidades em que a luta anti-racista foi historicamente submetida, inclusive através do isolamento político, o negro e a negra resistem. Há uma história política não institucional que nem sempre é contada. A começar por Quilombo dos Palmares, símbolo da resistência de um povo que luta pela vida em liberdade. Esta experiência histórica, em geral desconhecida, mesmo no ensino formal, representou uma radical contestação à ordem, subvertendo a ideologia dominante quanto à boçalidade e indolência dos trabalhadores negros.
As diversas formas de resistência convergiram para que os negros se impusessem enquanto sujeitos políticos potenciais. Lutam pelo reconhecimento público da temática racial. Sabem que a denúncia do diferencial de raça enquanto elemento constitutivo da reprodução das desigualdades e do acesso aos chamados direitos de cidadania é de fundamental importância para o combate de todas as formas de racismo.
A política racial, através da ação direta e autônoma dos afro-brasileiros, tem sido o caminho mais fecundo para a defesa de uma população que, em sua maioria, é mantida à margem da política institucional. Eles aprenderam que só assim podem conquistar seu espaço, inclusive nas instituições do Estado (incluindo-se os partidos políticos). Em outras palavras, a sua participação política é necessariamente diferenciada.
Quando se é negro ou negra não basta, por exemplo, lutar pela cidadania participando de um partido político de esquerda. É preciso definir a qualidade desta cidadania e, simultaneamente, organizar-se enquanto setor diferenciado no interior deste partido. E isso ocorre porque a luta contra o racismo ainda não foi suficientemente abraçada por todos aqueles que, independente da cor, acreditam e lutam por uma sociedade plenamente democrática e justa.
[1] Prado Jr (1976: 34) salienta o fato de Portugal não contar com população suficiente para abastecer a colônia com mão-de-obra. Além disso, o português, como qualquer outro europeu, “não emigra para os trópicos, em princípio, para se engajar como simples trabalhador assalariado do campo.” A escravidão, portanto, se impôs como uma necessidade econômica – e muito lucrativa. Como sabemos, mesmo na América do Norte, adotou-se o trabalho do escravo como solução à falta de mão-de-obra. “É aliás esta exigência da colonização dos trópicos americanos que explica o renascimento, na civilização ocidental, da escravidão em declínio desde fins do Império Romano, e quase extinta de todo neste século XVI em que se inicia aquela colonização”, enfatiza.
[2] O soberano português sancionou a escravidão do aborígine (a primeira Carta Régia, de 1570, reconhecia o direito do colonizador em submetê-los ao trabalho forçado). Em certas regiões, esse tipo de mão-de-obra foi mais fundamental que o negro. Com efeito, o escravo africano exigia recursos financeiros que somente as regiões mais ricas dispunham. Até o século XVII, territórios mais pobres, como São Paulo e a parte setentrional (Maranhão e Pará), o índio foi utilizado quase que exclusivamente. Os documentos da época referiam-se aos índios através do termo “negros”. Essa palavra foi comumente utilizada para designar os indivíduos das raças dominadas. Também no Rio de Janeiro, a mão-de-obra nativa era amplamente predominante. A escravidão do índio só será abolida em meados do século XVIII – mas se manterá, sob formas mais ou menos disfarçadas, por muito tempo.
[3] Conrad (1985) descreve e analisa o tráfico de africanos para o Brasil, fornecendo inúmeros dados sobre essa fúnebre transação comercial. “Provavelmente mais de 5 milhões de africanos foram desembarcados nas praias brasileiras durante os anos 1525 a 1851”, escreve. (p.208) Os números não incluem os milhares que morreram no mar, sucumbiram às doenças e outras formas de privações. Esse horror foi denunciado pelo poeta brasileiro Castro Alves; filmes como Amistadconseguiram a proeza de reproduzi-lo.
[4] Conforme descreve Bonfim (2000: 708-09): “Havia escravos carpinteiros, ferreiros, pedreiros, alfaiates, sapateiros… escravos tecendo, fiando, plantando; era o escravo que construía o caro de bois, o monjolo, o moinho, a canga, o selote, a cangalha; a peneira, o pilão de mineiro… Por isso, o senhor não sabia o preço do trabalho (fazendas haviam onde nem se alimentavam os escravos: dava-se-lhes o sábado, para com o trabalho desse dia alimentarem-se e vestirem-se!), porque não sabia o preço do trabalho, multiplicavam-se os serviços improdutivos; cada fazenda ou centro de mineração alimentava um exército de inúteis; cada senhor tinha um séqüito de parasitas: uma banda de música, um capelão, uma dúzia de lacaios, um contingente de assassinos para vingar os seus ódios e o defender contra os seus iguais (era esta a única justiça). Em cada cozinha havia uma dúzia de escravas doceiras, outras tantas assadeiras, queijeiras, biscoiteiras… em cada varanda viviam bandos de mucamas; e em redor da casa, ou mesmo sob o teto conjugal, um harém de mulatinhas – todas as crias púberes, cujas primícias pelos costumes da época pertenciam ao senhor.”
[5] Moura se refere ao famoso pintor francês, Jean Baptiste Debret, que esteve no Brasil nos anos 1816-1839. Sua obra (Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo, Martins, 1940, 2v.), registra o cotidiano da sociedade brasileira e a forte influência do escravo.
[6] Machado de Assis (1988: 30-31), com perspicácia e fina ironia, faz a crítica do bacharelismo. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, lemos: “E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade de estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudade, – principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, – de prolongar a Universidade pela vida adiante…”
[7] “Com o suor de teu rosto, comerás o pão, até que voltes à terra, donde foste tirado.” (Gênese, 3, 18)
[8] A análise crítica dessa historiografia encontra-se em Moura (1990) e Queiróz (1987). Vale ressaltar, como notou Felinto, que a “a visão do negro na principal historiografia brasileira é até hoje trabalho de branco: são brancos Silvio Romero, Gilberto Freyre e Euclides da Cunha, para citar apenas alguns dos mais importantes estudiosos do assunto”.(Ver: “Visões do Negro”. In: http://www.uol.com.br/fol/brasil500/zumbi_24.htm ). Mesmo Florestan Fernandes (1978: 16), comentando a participação dos escravos no movimento abolicionista escreveu: “Mas, pela própria natureza da sua condição, [o escravo] não passava de uma espécie de aríete, usado como massa de percussão pelos brancos que combatiam o “antigo regime”. Isso, é claro, não retira o mérito da sua obra, nem muito menos da sua atuação política e intelectual a favor dos negros. (Ver: ARRUDA, 1996: 277-295).
[9] Moura (1981: 251), enumera-as: “a) Formas passivas: 1) o suicídio, a depressão psicológica (banzo); 2) o assassínio dos próprios filhos ou de outros elementos escravos; 3) a fuga individual; 4) a fuga coletiva; 5) a organização de quilombos longe das cidades. b) Formas ativas: 1) as revoltas citadinas pela tomada do poder político; 2) as guerrilhas nas matas e estradas; 3) a participação e movimentos não escravos; 4) a resistência armada dos quilombos às invasões repressoras e 5) a violência pessoal ou coletiva contra senhores ou feitores.”
[10] Bonfim (2000: 757), observou: “Em que consistiu a independência?… Numa substituição de pessoas (…) Assim se fez nos países em que a mudança foi mais radical. No Brasil e no México, por exemplo, não houve nem isto. Aqui não só não houve alteração essencial no regime governativo, como não foi destituído um só dos altos funcionários.”
[11] Como nota Silva Jr. (2000: 361-62), O Código Criminal editado em 16 de dezembro incluía várias normas “destinadas à contenção da rebeldia negra, seja entre escravos, seja entre livres e libertos, entre elas: fixava a responsabilidade penal em 14 anos; atribuía ao senhor a responsabilidade pela indenização dos danos causados pelo escravo; estabelecia a pena de açoite e uso compulsório de ferros; criou o crime de insurreição…”
[12] Nos debates da Constituição revolucionária, a maioria dos deputados apoiou o sistema eleitoral censitário proposto por Mounier. Seu projeto distinguia os cidadãos em duas categorias: os ativos e os passivos. Os cidadãos que pagassem uma contribuição equivalente a dez jornadas de trabalho podiam ser eleitores (deveriam ser do sexo masculino, com 25 anos ou mais); os que não conseguissem cumprir esta exigência não podiam votar: são os passivos. Tinha direito a se candidatarem os que podiam pagar o “marco de prata” (cerca de 54 libras) e que tivessem propriedades territoriais. Na constituinte, apenas cinco deputados foram contra tais leis (com destaque para Robespierre: deputado pelo distrito de Aras e advogado; o mais rousseauniano dos jacobinos). Observe-se ainda que a Declaração dos Direitos do Homem consolidou a propriedade como um direito “sagrado e inviolável”.
[13] Como expõe Bobbio (1986: 37):“Os modernos liberais nasceram exprimindo uma profunda desconfiança para com toda forma de governo popular, tendo sustentado e defendido o sufrágio restrito durante todo o arco do século XIX e também posteriormente.” A pressão popular forçou o liberalismo a aceitar a ampliação da democracia. O novo liberalismo, ao enfatizar o aspecto do mercado e advogar o Estado mínimo, mostra-se incompatível com a democracia – ou seja, pode prescindir dela. “A relação entre liberalismo e democracia foi sempre uma relação difícil (…). Hoje que o liberalismo parece mais uma vez ancorado, de resto coerentemente com a sua melhor tradição, na teoria do Estado mínimo, a relação tornou-se mais difícil do que nunca”, acentua. (Id.: 92)
[14] Referência ao escritor Tomasi Di Lampedusa que, em sua obra O Leopardo, retrata a ascensão da burguesia italiana e o processo de unificação da Itália. “Se quisermos que tudo fique como está é preciso que tudo mude”, escreveu (Lampedusa, 1974: 42).
[15] Os negros, como demonstra Moura, não perderam as esperanças e continuaram lutando durante todo o período imperial, se engajando nos movimentos subseqüentes à Independência. “Na Revolução Farroupilha, eles se sentirão à vontade porque, afora a insurreição dos alfaiates, na Bahia, nenhum outro movimento foi tão enfática e ostensivamente antiescravista como o chefiado por Bento Gonçalves”, afirma. (1981: 79)
[16] Joaquim Nabuco, por sua vez, defendeu a tese de que, além de ilegítima, a escravidão era ilegal. Ele partia do pressuposto de que as leis, em especial a lei contra o tráfico, se levada a sério, tornara ilegal a instituição da escravidão (observe-se que se desde a década de 1830 a entrada de escravos estava proibida em território nacional, então os escravos não poderiam ser considerados enquanto tais). No entanto, o tráfico era não apenas tolerado como estimulado sorrateiramente pelas autoridades e os jornais se encontravam repletos de anúncios de vendas de escravos em todas as áreas de serviços. Junto a isso, observa-se a propaganda de que no Brasil a escravidão é branda e suave para o escravo, quase que um favor aos mesmos. Como diz Nabuco, isto apenas provava que os jornais não eram escritos por escravos, “nem por pessoas que se hajam mentalmente colocado, por um segundo, na posição deles.” (Nabuco, 2000: 87)
[17] “Entre os 61 votantes a favor da Lei do Ventre Livre, bem como entre os 35 que lhe foram contrários, figuravam membros de ambos os partidos políticos do Império. O café paulista votou contra. A mentalidade empresarial dos fazendeiros do Oeste, já em plena expansão, não era, porém, tão moderna, lúcida e progressista como a supôs a historiografia paulista do século XX. Era ainda escravista”, escreve Bosi. (1992: 233)
[18] “A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos.(…) A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É, assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda.” (Nabuco, 2000: 35-36)
[19] Como assinalou Alonso: “A radicalidade de sua análise sociológica não o levou, porém, a
uma aposta revolucionária; monarquista que era, Nabuco investiu em reformas sociais e políticas internas ao quadro institucional do Império. A República viria solapar seu reformismo; mudando o regime político sem transformar a sociedade, nos legou, sem resolvê-los, os pontos de estrangulamento do Império que Nabuco tão bem diagnosticou.”(Ver: “A voz dissonante de Joaquim Nabuco”. In: http://www.uol.com.br/fol/brasil500/zumbi_25.htm )
[20] Como salienta Bosi (1992: 233), é mais correto se referir ao abolicionismo no plural. A partir da obra de Joaquim Nabuco, Minha formação, ele identifica as seguintes forças abolicionistas: “1) os abolicionistas que fizeram a campanha no Parlamento, na imprensa e nos meios acadêmicos; 2) os militantes da causa, abertamente empenhados em ajudar as fugas em massa e instruir os processos de alforria; 3) os proprietários de escravos, sobretudo nordestinos e gaúchos, que se puseram a libertá-los em grande número nos últimos anos do movimento; 4) os homens públicos (Nabuco os chama generosamente de estadistas) mais ligados ao governo, que, a partir da Fala do Trono de 1867, mostrou sua intenção de resolver gradualmente a questão servil; 5) a ação pessoal do imperador e da princesa regente.”
[21] Esse aprendizado social era “constituído muitas vezes a partir de noções de subsistência e padrões de organização social distintos dos que eram imaginados pelas classes dominantes.” Wissenbach (1998: 52)
[22] Em nota rodapé, Fernandes (1978: 15-16) relata como Ezequiel Freire descreve esse caso: “Um dia, faz 8 anos, estávamos no escritório de Luís Gama, onde viera um preto fugido apresentar pecúlio e pedir para a sua libertação o auxílio nunca negado daquele outro preto de coração de ouro. Com pouco, a convite de Luís Gama chegou o senhor do escravo, de quem Luís era amigo.
Ao ver o seu negro: Que mal te fiz eu, rapaz? diz o senhor. Pois não tem boa cama e boa mesa, roupa e dinheiro? Queres então deixar o cativeiro de um senhor bom como eu, para ires ser infeliz em outra parte? Que te falta lá em casa? Anda! Fala!
E o negro, ofegante, cabisbaixo, calava-se.
Falta-lhe, responde gracejando Luís Gama, dando uma palmada de amigo no homem de sua cor, falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira…” (A Província de São Paulo. 13-XI-1887)
[23] Moura (1990:183-95), analisa os aspectos racistas da obra centenária de Euclides da Cunha: Os Sertões. Contudo, como o próprio Moura reconhece, o autor de Os Sertões expressa a ciência em moda à época, em especial as teses evolucionistas. Também Schwarcz (1993), estudará as instituições (museus, institutos, faculdades etc.) procurando demonstrar como o discurso racial se faz presente na intelectualidade brasileira. Ainda nessa linha, Santos (2002), fará estuda a influência e percurso das idéias que naturalizaram a concepção de que o negro pertence a uma raça inferior.
[24] Citado por Wissenbach (1998: 49).
[25] Transcrito, pelo autor, de: A Voz da Raça, São Paulo, 29-IV-1933 – Ano I – Nº 7.
[26] “O que estava em jogo era converter a sociedade de classes num sistema “aberto” pelo menos aos “negros” que estivessem em condições de competir com os “brancos” – não transformá-la num sistema “fechado” a todos os negros e mulatos”, escreve Florestan (1965: 26)
[27] Esse processo, as teses e resoluções do 1º Congresso do Negro Brasileiro, encontram-se em O Negro Revoltado, organizado pelo militante afro-brasileiro, Abdias do Nascimento.
[28] “Para nós, o homem se define antes de tudo como um ser “em situação”. Isto significa que constitui um todo sintético com sua situação biológica, econômica, política, cultural etc.”, escreve SARTRE (1965: 37). Ele observa a tendência, sobretudo nos democratas e liberais, de “suprimir pura e simplesmente o judeu em favor do homem. Mas o homem não existe: há judeus, protestantes, católicos; há franceses, ingleses, alemães; há brancos, pretos,a amarelos.” Assim também agem os nossos universalistas (democratas e socialistas): idealizam o operário-negro e esquecem o negro real; imaginam poder superar a contradição racial pelo mecanismo automático da mobilidade social.
[29] Texto disponível no site do PT: http://listas.pt.org.br/racismo/racismo.htm O encontro se realizou há mais de 15 anos da fundação do PT – o que dá à análise um tom de balanço. No mesmo texto, afirma-se: “Apesar do PT se reivindicar portador de uma nova “matriz” no complexo universo político da esquerda e na trajetória histórica brasileira, isso não o imuniza diante da ideologia racista hegemônica. Além disso, decorridos mais de quinze anos de experiência petista podemos afirmar, a cada dia com maior segurança, que, mesmo com alguns elementos diferenciadores que dão certa originalidade ao partido, o PT é, sobretudo, continuidade reciclada da tradição de esquerda que reduz as contradições da sociedade ao terreno econômico e enxerga o Brasil com um olhar branco.”
[30] O programa e resoluções aprovados no I Encontro Nacional de Negros e Negras do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), reconhece que a luta do negro tem um caráter especifico, mas que esta “coloca-se no marco de um programa global que tenha como objetivo a derrubada do capitalismo e a construção de uma sociedade socialista”. E, mais adiante, afirma: “Dado o seu estreito vínculo com a estrutura de classes da sociedade capitalista, como também à utilização que o capitalismo faz das diferenças raciais para super-explorar e oprimir enormes setores da sociedade, o PSTU afirma que o racismo e todas as formas de preconceito e discriminação racial só poderão ser totalmente eliminados com a revolução socialista.” A militância negra e socialista do PSTU – a exemplo da militância petista – reconhece implicitamente que “nem mesmo o partido está imune à ideologia discriminatória criada durante séculos de opressão e, por isto, deve fazer esforços redobrados para extirpá-la.” Texto disponível na Internet:http://www.pstu.org.br/negros_programa01.asp Ver também: “Racismo se combate com raça e classe”. (Publicado em:http://www.pstu.org.br/negros_artigo02.asp )
[31] Em 23 de julho de 1978 ocorreu a primeira assembléia para a formalização do Movimento e verificou-se a polêmica em torno do seu nome: Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial ou Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial? Não se trata de mera discussão semântica, mas de interpretações e perspectivas divergentes; trata-se da tensão entre a identidade de classe e a identidade de raça. Posteriormente, o Movimento também seria criticado por expressar somente a intelectualidade e a classe média negra e seria comparada com a Frente Negra Brasileira, a qual teve forte presença nos setores pobres da população negra. Sobre essas divergências, ver o documentário: Além de trabalhador, negro.
[32] Ver o artigo “Quilombo de Palavras”, publicado na Internet: AFIRMA – Revista Negra, de 20.12.2002.
[33] Em seu estudo, Thales de Azevedo (1955: 150) notou que: “Uma das maneiras de ascender socialmente é, para toda a gente, ingressar nas carreiras liberais, conquistando o prestigiado título de Dr., que, mais ou menos indiscriminadamente, se dá na linguagem comum às pessoas diplomadas pelas Universidades.” É interessante observar que em Lima Barreto (1995: 26), o sonho de ser doutor aparece como a redenção ao estigma da cor, ao preconceito racial: “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor… Nas dobras do pergaminho da carta [diploma], traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro. O flanco, que a minha pessoa, na batalha da vida, oferecia logo aos ataques dos bons e dos maus, ficaria mascarado, disfarçado… ” Observe-se, ainda, que Thales de Azevedo (1955: 195) não descarta a existência do preconceito racial. “A ascensão social dos escuros como indivíduos é freqüente e fácil de verificar. Como grupo, no entanto, as pessoas de cor vem ascendendo mais dificultosamente”, conclui.
[34] O deputado Luiz Alberto disse à Afirma – Revista Negra que o objetivo é formalizar a Frente Parlamentar Negra, na legislatura que ora se inicia. Ele lamentou que haja deputados que, apesar de negros, não se assumirem enquanto tais, e nem demonstrarem interesse em se envolver nas questões raciais. “Esta resistência tende a diminuir. Vamos fazer gestões e apelos com eles para que venham se unir a nós”, afirmou. (Publicado in: www.afirma.inf.br)
[35] O artigo 65 das Disposições Transitórias da Carta Magna concede o direito de propriedade da terra aos negros remanescentes dos Quilombos.
[36] O envolvimento da mulher negra na luta anti-racial não é um fenômeno recente. Sueli Carneiro, lembra as pioneiras Antonieta de Barros e Maria Brandão dos Reis. Antonieta foi jornalista e escritora, e a primeira mulher negra eleita para a Assembléia Legislativa de Santa Catarina (1934-37), pelo Partido Liberal catarinense. Reis, militou no Partido Comunista e se destacou na “Campanha da Paz”, organizada pelo PCB em 1950. Premiada, foi preterida para viajar à Moscou, onde deveria receber a Medalha da Paz. O partido a substituiu por uma jovem intelectual que, relata Carneiro, “se embriagou e caiu no rio Volga. Maria Brandão jamais perdoou o Partido Comunista pelo desrespeito e indiferença declarando: ‘‘Sou preta e ignorante, mas esse papelão eu não faria’’. (Ver: “Mulheres negras: lembrando nossas pioneiras”, por Sueli Carneiro. Publicado em 08 de março de 2002 no site http://www.afirma.br )
[37] O termo, em si, é objeto de polêmica: uns o vincularão às demandas e realidade de negro norte-americano, como se se tratasse de mera importação.
[38] Ver os artigos de Alves, Cunha, Praxedes e Tragtenberg (todos publicados na Revista Espaço Acadêmico –http://www.espacoacademico.com.br.
[39] As indenizações concedidas pelo Estado brasileiro às famílias atingidas pela repressão durante a ditadura militar ilustram um dos casos mais recentes desse tipo de modalidade reparativa.
[40] Ver os artigos de Heringer e Oliveira, publicados em www.afirma.br (e também a polêmica sobre as cotas). Há, ainda, uma tensão entre a necessidade da afirmação da identidade negra e a constituição da identidade nacional, amparada em idéias como a democracia racial e a mestiçagem. Munanga (1999), entre outros, analisa essa contradição.
[41] “O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso tem sido responsável pela valorização simbólica, de caráter retórico, dos elementos negros da cultura brasileira. Assim, temos o primeiro governo a reconhecer a existência de mecanismos discriminatórios, embora sejam ainda insuficientes as ações no sentido de combater de maneira séria às desigualdades. Apesar das divergências, o presidente FHC foi o único na história nacional que visitou a Serra da Barriga, onde se localizava o Quilombo de Palmares, em delegação oficial nos 300 anos de Zumbi dos Palmares”, admite a equipe da Revista Negra Afirma. (Publicado in http://www.afirma.br )
[42] Fica a sugestão para os que procuram temas para seus mestrados e doutorados. Além das dificuldades apontadas, devemos considera que, como assinala Nascimento (2000: 203): “A precariedade do registro decorre da própria trajetória de uma comunidade destituída de poder econômico e político, e de um movimento composto de entidades quase sempre sujeitas à instabilidade e à falta de recursos, infra-estrutura, espaço físico e apoio de outros setores da sociedade civil.”
Fonte: Revista Espaço Acadêmico