A resposta para “se é para pegar uma mulher ‘bofinho’, porque não pega um homem?”

Essa pergunta tão comum oculta uma série de preconceitos muito comuns entre heterossexuais e homossexuais; leia e repense suas atitudes

por Marcio Caparica, do Lado Bi 

Traduzido do artigo de Sara Alcid para o site Everyday Feminism

Pode ser que você já tenha ouvido essa pergunta, já teve de respondê-la ou até mesmo teve de refletir sobre isso quanto a você mesma: Por que é que mulheres queer e lésbicas namoram mulheres com aparência masculina ao invés de simplesmente saírem logo com um cara cisgênero?

Bem, vamos dividir essa questão em partes e respondê-la.

E, mais importante ainda, vamos examinar por que essa questão é tão comum – e bolar algumas perguntas mais respeitosas e positivas que se pode fazer em seu lugar.

1. A masculinidade não pertence a qualquer gênero

Masculinidade não é “propriedade” de um gênero único. Qualquer pessoa pode se identificar como masculina, ter tendências masculinas ou se apresentar de maneira masculina. Isso é um fato.

Considereo seguinte: a masculinidade é um universo e nós todos somos estrelas. Alguns de nós brilham intensamente com sua masculinidade, enquanto outros brilham só um pouquinho nesse aspecto, ou não brilham nada (mas reluzem em outras áreas!).

Quando se pergunta por que alguém está saindo com uma mulher masculina ao invés de um homem cisgênero, deixa-se implícito que a masculinidade “pertence” aos homens e que uma mulher que se apresenta de maneira masculina está apenas emprestando ou imitando a masculinidade.

Deixa-se implícito que a masculinidade de um homem é mais autêntica, mais natural e superior à masculinidade de uma mulher.

Essa suposição está enraizada nas construções tradicionais de masculinidade e apaga as muitas maneiras em que a masculinidade pode ser expressada e desejada.

Mulheres cisgênero podem ser masculinas. Homens queer podem ser masculinos. Pessoas assexuais ou agênero (pessoas que não se identificam nem como homem nem como mulher) podem ser masculinas. E por aí vai. Por quê? Porque a masculinidade não está presa a uma única identidade, seja ela qual for.

E lembre-se que a masculinidade é um espectro pelo qual podemos nos mover ao longo da vida.

2. Heterossexualidade compulsória

Similar à maneira em que essa pergunta velha parte do princípio de que a masculinidade “pertence” aos homens, ela também supõe que relações heterossexuais são superiores a outros tipos de relações (e mais desejáveis).

Como a cultura geral constrói e mantém a ideia de que a heterossexualidade é a orientação padrão de todos, não chega a ser surpresa que “Por que ela está saindo com uma mulher ‘bofinho’ ao invés de sair com um cara de uma vez?” seja uma pergunta que muitas de nós que nos envolvemos com mulheres masculinas temos que ouvir.

Afinal, a maior parte das pessoas na comunidade LGBT têm uma história de “sair do armário” para contar porque a heterossexualidade compulsória é uma ideia totalmente presumida.

Alguns de nós têm de arriscar a própria segurança, as relações familiares, empregos, e moradia apenas para se desfazer da orientação sexual e/ou identidade de gênero que nos foi imposta e declarar nossa própria verdade.

A cultura geral não reflete a realidade da vida de tantos de nós, mas tudo depende do que se considera normal. E essa é a razão por que essa pergunta existe.

Uma das maneiras de se desnormalizar a heterossexualidade é parar de se partir do pressuposto de que todos são heterossexuais a não ser que eles nos digam o contrário. Eu já perdi a conta de quantas vezes eu já me referi à minha namorada e a pessoa com quem eu conversava assumiu que ela era apenas minha “amiga”.

Quanto mais nós decentralizarmos a heterossexualidade compulsória, menos perpetuaremos os sistemas culturais que tornam essa pergunta algo que vale a pena ser questionado.

3. Igualar gênero e sexualidade

Essa pergunta também parece igualar o gênero e a sexualidade porque presume que uma mulher que sai com uma mulher masculina também estaria interessada em sair com um homem cisgênero – só porque ambos são “masculinos”.

Eu digo “masculino” porque essa confusão de gênero com sexualidade também presume que todos os homens cisgênero se apresentam de maneira masculina. Qualquer um pode ser feminino ou se apresentar de maneira feminina, inclusive os homens cisgênero!

Também precisamos nos lembrar de que muitos homens cisgênero são homossexuais, queer, ou assexuais.

Essa pergunta, portanto, está fazendo várias pressuposições sobrepostas sobre o que é ser um homem cisgênero, uma mulher masculina, e uma mulher que sente atração por mulheres masculinas.

E você sabe o que costuma acontecer com as pressuposições, certo? Isso mesmo.

4. Atração é algo complexo

Por mais que eu tenha exposto como não se pode presumir que uma mulher que sai com uma mulher masculina gostaria de sair com um homem cisgênero, nós também não podemos ignorar o fato que algumas mulheres são bissexuais, pansexuais, sexualmente fluídas, e/ou atraídas pela masculinidade em todas suas muitas expressões e formas.

No entanto, só porque a sexualidade de algumas mulheres não inclui a atração para múltiplas identidades de gênero e/ou pessoas fora da conformidade de gênero, não significa que elas deveriam ser questionadas por que não se envolvem com um cara cisgênero de uma vez.

Lembre-se: cada indivíduo é o expert sobre o que e quem ele deseja numa relação, e sua função é confiar nisso (a não ser, é claro, que você suspeite que um amigo ou pessoa querida esteja numa relação abusiva).

A atração é algo tão complexo que não há rótulos o suficiente no mundo para descrever todo o espectro de atrações que pode-se sentir.

A atração e sexualidade também podem mudar com o tempo para algumas pessoas. Por exemplo, pode-se identificar como heterossexual aos vinte anos, e depois identificar-se como queer aos 30. Isso não quer dizer que se é indeciso ou confuso. É a coisa mais normal.

O que importa é:

Mesmo que uma mulher que está envolvida com uma mulher que se apresenta de maneira masculina venha a sair com um homem – ou tenha saído com um no passado, porque atração e sexualidade são complexos e fluídos – não quer dizer que fazer esse tipo de questionamento é correto.

5. Masculinidade tóxica não é bem-vinda

Eu já disse que questionar o relacionamento de uma mulher com uma mulher masculina deixa implícito que sair com uma mulher masculina é de alguma maneira inferior a sair com um homem cisgênero.

Essa ideia já é problemática por si só, e também perpetua a noção de que todos os tipos de masculinidade deveriam refletir a masculinidade padrão – algo que muitos homens cisgênero exibem porque são condicionados socialmente a fazer.

As normas padrão da masculinidade são em grande parte alimentadas pela misoginia, tornando esse tipo de masculinidade tóxico, já que alimenta um sentido de propriedade sobre a sexualidade, o corpo e o tempo das mulheres.

A cultura do estupro e todos seus tentáculos são os ícones da masculinidade tóxica.

E apesar de que às vezes isso pode ser algo difícil de compreender, a masculinidade tóxica não existe apenas em círculos de homens cisgênero heterossexuais.

Gays, caminhoneiras, e pessoas fora da conformidade de gênero também podem imitar a masculinidade misógina e tóxica que alguns pensam não existirem nas comunidades LGBT.

A verdade é que mulheres masculinas – assim com qualquer outra pessoa que seja masculina – podem adotar e agir de acordo com a masculinidade tóxica.

Mesmo se as mulheres masculinas não tenham sido socializadas desde o nascimento para incorporar a masculinidade tóxica como acontece com os homens cisgênero, com o privilégio masculino, elas podem adquirir e replicar a misoginia sem nem sequer se darem conta disso.

Portanto, assim como é necessário que os homens redefinam sua masculinidade e esqueçam a masculinidade tóxica para se tornarem verdadeiros aliados das mulheres e das feministas, é importante que as comunidades LGBT – inclusive as mulheres de apresentação masculina – certifiquem-se de que não estão replicando dinâmicas misóginas em seus relacionamentos e vidas.

Isso pode ser difícil de se aceitar porque, às vezes, mulheres masculinas sentem muita pressão para se “elevarem” ao patamar da masculinidade padrão e dos homens cisgênero.

Por que? Porque, como já falei, tudo depende dos padrões sociais (ser branco e heterossexual), então, quanto mais se desvia dessas normas, maior a probabilidade de se sofrer opressão diariamente.

É importante que todos – inclusive homens cisgênero e mulheres de apresentação masculina – comprometam-se a desaprender a masculinidade tóxica.

6. Pare de vigiar a sexualidade

Por último, mas não menos importante, vamos parar de vigiar a sexualidade alheia em geral. OK? OK.

Repreender por causa do sexo é vigiar a sexualidade. Não tirar os olhos de um casal homoafetivo que anda de mãos dadas é vigiar a sexualidade. E perguntar por que uma mulher namora uma outra mulher de apresentação masculna – ao invés de namorar logo um homem – também é vigiar a sexualidade.

Não deveria ser necessário dizer que vigiar a sexualidade alheia é opressivo, mas às vezes precisamos de um lembrete porque isso é algo tão enraizado na mídia, nas conversas que nos cercam, e na maneira como aprendemos a sentir a respeito de nossa própria sexualidade.

Então aqui está um lembrete amigo: pare de vigiar a sexualidade alheia e dê-se esse mesmo respeito, também, conforme você explora sua própria sexualidade ou assexualidade com o passar do tempo.

Nossa tendência de vigiar a sexualidade alheia vem dos estigmas que cercam o sexo e a maneira como a heteronormatividade nos ensina a não aceitar pessoas que não se identificam como heterossexuais.

Se você está se esforçando para desenvolver um ponto de vista positivo quanto ao sexo, tenha paciência consigo mesmo porque desaprender a vergonha e julgamento internalizados leva tempo; continue a encarar o desafio de se tornar um aliado consciente de pessoas com outras orientações sexuais.

 

Agora que você conhece a verdadeira resposta para por que mulheres que namoram mulheres com apresentação masculina não vão logo namorar um homem cisgênero de uma vez, aqui vão algumas perguntas mais produtivas e respeitosas que pode-se fazer:

  • Que mudanças você gostaria que ocorressem em sua comunidade para que ela se torne mais inclusiva e acolhedora a todos os casais LGBT?
  • Como sua compreensão de masculinidade se alterou depois que você namorou uma mulher com apresentação masculina?
  • Qual é a coisa que você mais gosta por namorar [seu/sua parceira/o]?

Para que esse mundo se torne mais justo e igualitário para mulheres que namoram mulheres masculinas e todas as pessoas LGBT, cada um de nós deve se comprometer conscientemente a desaprender os muitos componentes da kyriarquia que faz com que a pergunta que eu analisei seja sequer possível.

Devemos desaprender as normas de gênero, decentralizar a heterossexualidade e a pele branca, e praticar a sexualidade positiva – um passo de cada vez.

Estamos juntos nessa, e podemos chegar lá.

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