‘A violência contra a mulher lésbica é reflexo de uma sociedade que tolera o machismo e a lesbofobia’

O avanço do debate público sobre discriminação de gênero das últimas décadas não impede que a percepção da população sobre a violência contra a mulher permaneça limitada à imagem de uma relação afetiva heterossexual, na qual a vítima, cisgênero, sofre agressão física ou ameaça, por parte de um parceiro homem. Essa é, de fato, uma realidade dramática na vida de milhares de brasileiras. Mas existem outras faces da violência de gênero, uma delas, ainda invisibilizada e subnotificada: aquela que impacta as mulheres lésbicas, dentro e fora das relações de afeto.

A violência nesse contexto se manifesta de diferentes maneiras. Numa sociedade patriarcal como a nossa, ainda tão marcada pela assimetria das expectativas dos papéis de gênero, mulheres lésbicas estariam na contramão do “dever ser”, como se desfizessem de um ideal de feminilidade que abrange o exercício da sexualidade heteronormativa e os modelos sociais de “esposa devotada” e “mãe de família”.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem alertado para as particularidades que acometem as mulheres lésbicas, de maior vulnerabilidade à violência sexual e intrafamiliar. Na forma mais insidiosa de violência sexual, os “estupros corretivos” são praticados com o objetivo de “correção” ou “conformação” de sua sexualidade, geralmente motivada pela crença de que a homossexualidade é uma “doença” ou “desvio” passível de “conversão” à heterossexualidade.

Há também relatórios da Comissão denunciando espancamentos coletivos por manifestação pública de afeto, ataques com ácidos, entrega forçada a centros de “conversão” de orientação sexual, além de violência por membros da família.

O atentado contra a vida da mulher lésbica também tem contexto específico, quando está relacionado ao ódio por sua orientação sexual, alguns pesquisadores denominam “lesbocídio”. Ele pode ocorrer, por exemplo, quando o ex-parceiro atenta contra a vida da ex-parceira por ela ter se manifestado lésbica ou assumido relacionamento com outra mulher.

Até mesmo assédios e importunações ganham contornos próprios, quando acompanhados por insultos lesbofóbicos, ofensas e ridicularizações. Como alvo ainda mais vulnerável, mulheres lésbicas precisam lidar com a insegurança na ocupação e circulação em espaços públicos.

Mulheres lésbicas também enfrentam violência no âmbito doméstico, familiar e das relações afetivas com outras mulheres. Assim como pode ocorrer em relacionamentos heterossexuais, as dinâmicas assimétricas de poder, desigualdades de papéis sociais, sentimento de posse, abuso emocional ou financeiro, são circunstâncias que também podem permear relações entre mulheres, acarretando a prática de diferentes formas de violência: física, psicológica, sexual, moral e patrimonial.

Daí a importância de ressaltar: a Lei no 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) determina no seu artigo 5o que a proteção da mulher preconizada independe de sua orientação sexual, havendo, inclusive, precedentes de jurisprudência no sentido de que a violência de gênero derivada de desavenças atreladas à orientação sexual da vítima dá ensejo à aplicação da lei. Também não há impedimento para o reconhecimento do atentado contra a vida da mulher em razão de sua orientação sexual, como no crime de feminicídio, de natureza hedionda.

No tocante aos crimes sexuais, a Lei n. 13.718/2018 acrescentou às hipóteses do artigo 226 do Código Penal a previsão de aumento de um terço a dois terços de pena, especificamente para o “estupro corretivo”.

Não obstante os avanços legislativos, a invisibilidade da vulnerabilidade das mulheres lésbicas é um dos principais obstáculos no enfrentamento dessas violências. A falta de dados e de serviços direcionados à proteção dessas mulheres contribui para a subnotificação, mantendo essa realidade nas sombras.

A violência contra a mulher lésbica é reflexo de uma sociedade que tolera o machismo e a lesbofobia. Seu enfrentamento exige esforço coletivo, que passa pela desconstrução de preconceitos, respeito à diversidade e políticas públicas eficazes. Não há como se falar em emancipação feminina efetiva sem que todas as mulheres, independentemente da sua orientação sexual, possam viver sem medo.

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