Afinal, o que os letrados chamam de “racialização”?

Por: Fátima Oliveira

 

 

{xtypo_quote}”Mas é preciso ter força, é preciso ter raça/ É preciso ter gana sempre/ Quem traz no corpo a marca/ Maria, Maria mistura a dor e a alegria/ Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça/ É preciso ter sonho sempre/ Quem traz a fé nessa marca/ Possui a estranha mania de ter fé na vida”… (Maria, Maria, Fernando Brant e Milton Nascimento){/xtypo_quote}

É certo que não construiremos um país justo e democrático sem que os brancos compartilhem com os negros os seus privilégios seculares. No caso brasileiro, compartilhar privilégios significa também que os brancos terão menos do que sempre foi exclusivamente seu. Não há como ser diferente. O caderno Mais! da Folha de S.Paulo, de 9 de julho de 2006, sob a manchete “A guerra das cotas”, além de outros textos contém duas entrevistas exemplares das posições pró e contra as cotas: Peter Fry e Luiz Felipe Alencastro, ambos signatários dos dois manifestos sobre cotas e Estatuto da Igualdade Racial entregues ao Congresso Nacional.

Peter Fry, quando perguntado “O Sr. é contra as cotas?”, respondeu: “Eu tenho sérias dúvidas”. E para a pergunta “O fato de a questão estar sendo politizada é ruim?, disse: “Não, acho absolutamente positivo”.

À pergunta “A adoção do sistema de cotas não introduz um conflito e uma tensão que não existem atualmente?”, Luiz Felipe de Alencastro não teve dúvidas em afirmar: “A tensão existe o tempo todo. Se você pegar as vítimas da polícia nos ataques recentes em São Paulo [15/5], eram jovens negros. O conflito existe o tempo todo e está feito. A idéia de que vai se criar um conflito onde não existe é a mesma idéia de quando ocorreu a introdução do voto feminino, o voto das mulheres iria dividir as famílias”. E continuou:

A tensão existe, está lá. Os signatários do manifesto contra as cotas passam a vida viajando para os Estados Unidos, onde encontram negros o tempo todo nas salas de aulas, que não estão nas salas de aulas deles, numa população negra que é muito maior. Acho que a divisão já existe, está escrita na nossa sociedade (…)
A Folha [em 5/7/2006] fala em seu editorial por que não [ação afirmativa] para os homossexuais, os judeus? Porque nem os judeus tiveram escravidão no Brasil, e os bissexuais não sofrem discriminação hereditária. Os negros têm esse duplo handicap.

 

O debate sobre cotas em qualquer área da sociedade não pode ser feito isolado do seu fundamento teórico e político – a denominada Ação Afirmativa, que conceitualmente é qualquer iniciativa de promoção da igualdade que visa reparar ineqüidade e iniqüidades. E as reparações dizem respeito às dívidas contraídas. A ação afirmativa portanto é aplicável a todos os casos nos quais há decisão política de superar desigualdade e reparar dívidas, logo podemos usá-la para o combate a diferentes formas de opressão, como no caso das mulheres e de vítimas de racismo, posto que a ação afirmativa visa mudar a ordem de privilégios injusta estabelecida entre diferentes e desiguais.

Quanto às cotas, elas são apenas uma das muitas formas que uma ação afirmativa poderá assumir e em geral são utilizadas quando um setor ou uma sociedade não assume voluntariamente a sua parte para sanar desigualdades que vitimam grupos sociais e raciais que se encontram em situação de desvantagem.
Diante do exposto, cotas para o acesso de negros à universidade no Brasil é uma questão política e ética de grande vulto. Não é apenas um desejo dos negros, mas uma necessidade emergencial que diz respeito ao futuro do Brasil. Cotas numéricas nem sempre são justas, pois para que sejam justas precisam ter paridade com o percentual populacional do setor que precisa de ações de eqüidade. Ora, se a população negra no Brasil é praticamente metade da população as cotas devem contemplar tal realidade!

Finalidades escusas

O vocábulo racialização tem sido figurinha fácil no debate sobre ações afirmativas no Brasil, em especial sobre as cotas étnicas. Tenho a impressão que o modismo no uso da palavra racialização serve a múltiplos senhores e a finalidades escusas.
A inexistência de raças humanas é uma verdade científica, mas o racismo é uma realidade cruel, segregacionista, excludente e que freqüentemente assume a face de genocídio, às vezes sutil, localizado, mas marcadamente genocídio, que conceitualmente consiste em atingir a integridade corporal ou mental para eliminar – no todo ou em parte – um grupo religioso, nacional, racial ou étnico. Ou ainda realizar deportações ou medidas contraceptivas, sem o consentimento informado, contra estes segmentos de uma sociedade. O racismo é um crime contra a humanidade.

Em fevereiro de 2006 fui contatada pela revista ComCiência exatamente para opinar sobre o conceito de racialização utilizado por dois dos 114 signatários do manifesto contra as cotas étnicas e o Estatuto da Igualdade Racial. Refiro-me aos professores-doutores Peter Fry (Antropologia, UFRJ) e Sérgio Danilo Pena (Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG). Por interpretar como pejorativo e uma tentativa de desqualificar a luta contra o racismo o conceito de “racialização” que ambos adotam, compartilho a íntegra das perguntas da entrevistadora e minhas respostas. Parte significativa de minhas respostas às perguntas formuladas foram editadas pela jornalista e encontram-se na reportagem “Nova genética desestabiliza idéia de ‘raça’ e coloca dilemas políticos”, de Carol Cantarino:

***
1) Para muitos geneticistas, como Sérgio Danilo Pena, não existe relação entre “raça” e doença na medicina, ou seja, “o uso médico de distinções raciais tende a perpetuar racionalizações pseudocientíficas de diferenças entre grupos humanos. Certamente há disparidades de saúde entre as ditas categorias ‘raciais’ mas isso tem muito menos a ver com genética do que com diferenças de cultura, dieta, status social, acesso ao cuidado médico, marginalização social, discriminação, estresse e outros fatores. As categorias ‘raciais’ humanas não são entidades biológicas claramente definidas e circunscritas, mas construções sociais e culturais fluidas” afirma, em artigo, o geneticista. Na opinião da Srª. a anemia falciforme pode ser definida como uma “doença racial”? A associação entre a anemia falciforme e a população negra não corre o risco de aumentar a estigmatização dos negros?

Resposta – A opressão racial/étnica é um fato que independe dos saberes da genética molecular comprovarem que considerando-se o DNA como o material hereditário e o gene como unidade de análise biológica, é absolutamente impossível dizer se estas estruturas pertencem a uma pessoa negra, branca ou amarela. Isso é o óbvio e o ululante, pois o gene carrega possibilidades de caracteres e não os caracteres. O que significa que geneticamente não há raças humanas. O que não autoriza ninguém a dizer que o racismo não existe. Por outro lado, cabe ressaltar que seres humanos são seres biológicos, mas não só. Todavia, quando se trata do ser humano não estamos falando de abstrações, logo a condição biológica deve ser obrigatoriamente considerada, pois ela é a expressão da materialidade da vida. Se abstrairmos do ser humano a sua condição biológica, que é regida também por leis biológicas válidas para todos os seres vivos, estamos falando mesmo do quê?

É um absurdo no atual estágio do desenvolvimento das biociências ignorar que a predisposição biológica é um fato, sabendo-se que predisposição biológica significa a maior ou menor capacidade de um ser vivo responder às complexas interações solicitadas pelo meio ambiente físico, e, no caso de humanos, também pelo meio ambiente cultural em que vive. A predisposição biológica resulta e refere-se a um longo processo evolutivo da humanidade, é o binômio indissociável: constituição hereditária + meio ambiente.

São análises elementares, como as que mencionei – a compreensão do holismo da natureza, grosso modo a interação entre meio ambiente físico, cultural e social – que geneticistas em geral desconsideram, ou por ignorância, ou por má fé, ou mesmo medo. O que é lamentável para a ciência e para as pessoas, pois os leva fatalmente a deslizes analíticos catastróficos no campo da ciência e com decorrências maléficas também para parcelas expressivas da sociedade.

A análise política do geneticista Sérgio Danilo Pena, inegavelmente uma glória da ciência brasileira, é parcial, equivocada e renega os conhecimentos atuais do seu próprio objeto de estudo: os genes, que, como sabemos, portam possibilidades de caracteres e não os caracteres. Assim sendo, não conseguem, a maioria, entender que o conceito de doenças raciais/étnicas não é sinônimo de “doença genética”, de fatalismo genético e nem de doença “típica” ou “especial” de negros.

O que é um paradoxo. Em primeiro lugar, porque é fato que TODOS os grupos raciais ou étnicos apresentam particularidades em algumas doenças, da aparição à evolução; em segundo, porque quando elaboramos o conceito de doenças raciais/étnicas, o fizemos focadas em doenças que, inegavelmente, são prevalentes e, devido a causas multifatoriais, cursam na população negra de modo singular, mas tendo em alta conta que a tal realidade agrega-se um potencial enorme de múltiplos agravos, em grande parte decorrentes, hipoteticamente, da vivência do racismo, da condição de mulher e de pobreza. Isto é, da interação das variáveis sexo/gênero X raça/etnia X classe social.

Em outras palavras, o conceito de doenças raciais/étnicas evidencia, de forma inequívoca, o caráter social e histórico das doenças que é amplamente demonstrado através da história de vida das pessoas, e esta está intimamente vinculada ao sexo (ao privilégio ou desprivilégio de gênero); à raça/etnia (à vivência ou não do racismo).

Embora não concorde com as opiniões políticas de Sérgio Danilo Pena, eu o compreendo, o que não significa uma justificativa pela superficialidade de sua análise. E o compreendo porque quem pensa como ele, a partir da condição de mulher ou homem da ciência, busca um guarda-chuva que os resguarde da pecha de eugenistas, já que o pensamento eugênico sempre esteve vinculado à genética, e geneticistas de renome também abraçaram idéias eugenistas. Embora a genética jamais tenha respaldado as pretensões da eugenia, muitos abusos e atrocidades foram cometidos em seu nome sob o manto de algo idiota denominado racismo científico.
Hoje o que causa preocupação não são as descobertas e os inventos das biociências, da biologia molecular e da engenharia em si, mas o “culto” ao DNA. A distorção é que de repente nada “escapa aos genes” e a incompreensão da realidade que somos Homo pela nossa condição biológica e sapiens pelas nossas culturas.

2) Em artigo publicado recentemente Peter Fry faz a seguinte avaliação sobre a anemia falciforme no Brasil: “Parece-me que, no Brasil, o apoio aparentemente total que os ativistas negros prestam ao PAF [Programa de Anemia Falciforme] significa que a anemia falciforme tornou-se, muito mais do que uma doença a ser detectada e tratada, um poderoso elemento no processo de naturalização da ‘raça negra’ (por oposição lógica e política à ‘raça branca’). Em outras palavras, um marcador de diferença num país onde as delimitações raciais são imprecisas e ambíguas”. Qual a sua opinião sobre essa posição de Peter Fry? A “racialização” da anemia falciforme estaria sendo usada como instrumento político pelo movimento negro no Brasil?

Resposta – O professor Peter Fry tem o direito de expressar suas opiniões sobre o que bem lhe aprouver, desde que não cause danos a outrem. É assim que deve ser a convivência civilizada em países democráticos e laicos. E vivemos num. Todavia ele precisa descer do pedestal de se portar como o dono da única verdade possível e se render às verdades científicas até agora comprovadas, pois elas não referendam o que ele está pensando no momento.

Não estamos falando de coisas simples e nem fáceis, mas de uma temática que exige estudo, um lastro teórico no campo da biologia e, se possível, uma experiência cotidiana lidando com pessoas portadoras de anemia falciforme – substratos necessários para um melhor aproveitamento do estudo e da compreensão da história natural da anemia falciforme. Só assim é possível emitir opiniões fora do campo do “achismo”.

O que é consenso científico hoje é que a anemia falciforme é prevalente em negros; a sua origem é África; é a doença genética mais comum da população negra no mundo e é a doença genética nº 1 do Brasil; e é uma doença hereditária (lembro: nem toda doença genética é hereditária!) que resulta de uma mutação genética na molécula de hemoglobina (substituição do aminoácido ácido glutâmico pela valina). Foi a primeira doença molecular humana descoberta (1910) e para a qual, apesar dos avanços da genética molecular, não há, sequer rotas de pesquisas em busca de um tratamento curativo para ela e a única explicação plausível é porque negros não constituem um mercado para a indústria farmacêutica e o direito humano ao remédio ainda não está suficientemente estabelecido para que as mazelas prevalentes em negros os tornem mercados rentáveis.

O conceito de “racialização da anemia falciforme” proposto pelo prof Peter Fry é destituído de qualquer base científica sustentável e se configura como uma distorção no campo das aberrações teóricas, nas biociências e na política. E é desmascarado e superado em sua totalidade por uma constatação científica elementar: não podemos nos escusar e dizer que diante do diagnóstico de anemia falciforme em pessoa de qualquer cor de pele, não podemos ter dúvida de que alguém de sua ancestralidade ‘dormiu’ com preto ou um afro-descendente! Isso sim, é o que diz a ciência. Precisa dizer mais?

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E por que remédios para negros?

 

Não me recordo exatamente para qual entrevista respondi à seguinte pergunta, mas tenho certeza que foi em 2004: “Está sendo anunciado o lançamento do remédio Bidil. Seria destinado a negros e negras com problemas cardíacos. Há uma certa polêmica em torno do assunto (exemplo é a coluna de André Petry na Veja desta semana) sobre ser um remédio para raça… enfim, qual a sua opinião sobre esse tipo de pesquisa? No que contribui ou não para o movimento?”

Embora alguns trechos de minha resposta sejam repetitivos no presente artigo, vou colocá-la como a respondi, mas relembro que a indústria farmacêutica não rasga e nem joga dinheiro fora e jamais atendeu pelo nome de “instituição de caridade”, logo não apostaria num mercado inexistente.

“Eu poderia escrever páginas e páginas sobre o assunto. Mas tentarei, na medida do possível, ser breve e didática.
A espécie humana é única mas, a exemplo dos demais seres biológicos, também na espécie humana a diversidade é uma norma da natureza. Também, a exemplo dos demais seres vivos, seres humanos são regidos também por leis biológicas. Se abstrairmos do ser humanos a sua condição biológica extraímos dele a materialidade da vida. Restará o que mesmo? Cada ser humano é geneticamente único. Este é um saber básico da genética. É a biologia organismal, e não a genética, quem explica as complexas interações entre patrimônio genético e meio-ambiente. Sem entender isso, não há o que conversar.

Digo sempre que entender um pouco de genética hoje é condição indispensável para o exercício da cidadania no Século 21, inclusive porque nos dá serenidade para enfrentar a ignorância e o analfabetismo genético e as distorções ideológicas e políticas que medram na área. Alguns artigos e notícias que tenho lido sobre o assunto nos últimos dias são primorosos exemplares de ‘ignorância dos rudimentos da genética’ e ignorância de biologia organismal.

Nova visão

De maneira que, partindo daí, não é difícil de entender inúmeros achados da ‘medicina baseada em evidências’, cujos benefícios historicamente foram negados a negros, que as doenças cursam, isto é, ou evoluem, de forma diferenciada dependendo da faixa etária, do sexo, e por que não também dos grupos populacionais raciais ou étnicos? Há evidências disso. E reconhecê-las, abre caminho para atenção à saúde e para tratamentos farmacológicos hoje denominados de ‘personalizados’ (de acordo com a necessidade de cada pessoa).

O Bidil é uma substância que responde a novos saberes e conhecimentos da ‘medicina baseada em evidências’! Apenas isso. E, em nome de uma suposta proteção contra o racismo, vamos negar isso a negros? E por que só a negros? Então, seria o caso de retirarmos do mercado os anti-hipertensivos aos que só os brancos respondem bem. Ou, não? Enfim, não há nada de extraordinário nem de racista na descoberta científica de um medicamento ao qual negros com hipertensão arterial respondem melhor. Ao contrário, atende a uma parcela de pessoas que não responde adequadamente a outros anti-hipertensivos.

É um saber popular, há séculos, em todas as culturas, que um mesmo remédio para uma mesma doença, cura umas pessoas e para outras, é como se diz no Nordeste, é mesmo que ‘beber água do pote’. Há uma explicação científica para tal fenômeno, que não tem nada a ver com racismo. Ao contrário, a indústria farmacêutica responder a essa evidência e necessidade é um avanço rumo à eqüidade na atenção à saúde. E isso sim, ajuda a combater o racismo. Pois como sabemos, as doenças prevalentes em brancos são suficientemente estudadas e há tratamentos farmacológicos para elas, todavia a indústria farmacêutica, que não atende pelo rótulo de instituição de caridade, não se interessava em fabricar remédios para doenças prevalentes em populações pobres, e aqui não há como não incluir negros. A mudança de comportamento se deve a uma nova visão do direito ao remédio como um direito humano, o que tem responsabilizado governos pela garantia do acesso ao remédio, via assistência farmacêutica de qualidade e com dignidade. Então, negros também se tornaram um grande mercado, inegavelmente.

Ser negro no Brasil: alcances e limites
[Publicado em Estudos Avançados 50. Dossiê O Negro no Brasil, p. 56-60. Vol. 18 – Número 50 – Janeiro/Abril de 2004. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.]

Por considerar pertinente e elucidativo para o debate em curso, socializo, na íntegra, artigo de minha autoria que aborda a mestiçagem, a condição de afro-descendência e a classificação racial oficial do Brasil (IBGE), além de tecer breves considerações sobre os conceitos de raça e de etnia; identidade racial/étnica; e políticas de ação afirmativa segundo sexo/gênero e raça/etnia. Conforme convenção do IBGE, no Brasil, negro é quem se auto-declara preto ou pardo, pois população negra é o somatório de pretos e pardos. Para fins políticos, negra é a pessoa de ancestralidade africana, desde quem assim se identifique.

“O Brasil é um país mestiço, biologica e culturalmente. A mestiçagem biológica é, inegavelmente, o resultado das trocas genéticas entre diferentes grupos populacionais catalogados como raciais, que na vida social se revelam também nos hábitos e nos costumes (componentes culturais). No contexto da mestiçagem, ser negro possui vários significados que resulta da escolha da identidade racial que tem a ancestralidade africana como origem (afro-descendente). Ou seja, ser negro, é, essencialmente, um posicionamento político de assumir a identidade racial negra.

Identidade racial/étnica é o sentimento de pertencimento a um grupo racial ou étnico, decorrente de construção social, cultural e política. Ou seja, tem a ver com a história de vida (socialização/educação) e a consciência adquirida diante das prescrições sociais raciais ou étnicas, racistas ou não, de uma dada cultura. Assumir a identidade racial negra em um país como o Brasil, é um processo extremamente difícil e doloroso, considerando-se que os modelos ‘bons’, ‘positivos’ e de ‘sucesso’ de identidades negras são poucos e invisibilizados e o respeito à diferença em meio à diversidade de identidades raciais/étnicas inexiste. Desconheço estudos brasileiros consistentes sobre identidade racial/étnica.

As classificações raciais: alcances e limites

Em 1775, Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), alemão, fundador da Antropologia, cunhou a região geográfica originária de cada raça e a cor da pele como elementos demarcatórios entre elas (branca ou caucasiana; negra ou etiópica; amarela ou mongólica; parda ou malaia e vermelha ou americana). No século XIX foram agregados outros quesitos fenotípicos, como o tamanho da cabeça e a fisionomia. Desde Blumenbach, a cor da pele aparece como um dado recorrente. O que aponta que dos dados do fenótipo, isto é, das características físicas, a ‘cor da pele’ é o que tem sido mais usado e considerado importante, além do que aparece em quase todas as classificações raciais. [o prof. Sérgio Danilo Pena neste artigo dirá as razões e o acerto científico de tal persistência]
Para fins de estudos demográficos, a atual classificação racial do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é a oficial do Brasil desde 1991 e adota como essencial que a coleta do dado se baseie na auto-declaração. Ou seja, a pessoa escolhe, num rol de cinco itens (branco, preto, pardo, amarelo e indígena) em qual ela se aloca. Como toda classificação racial é arbitrária e não é aceita sem reservas, a do IBGE, desde 1940, quando coletou pela primeira vez o ‘quesito cor’ [Em 1940 o “quesito cor” era composto de: amarelo, branco e preto, mas havia o recurso para “cor indefinida” – que na tabulação dos dados foi denominada de “pardo” – que englobava: mulato, caboclo, moreno e similares que expressassem “não-brancos” e não enquadrados como amarelo ou preto], não foge à regra, possui limitações, a exemplo das demais desde quando foram elaboradas. Sabendo-se que raça não é uma categoria biológica, todas as classificações raciais, inevitavelmente, padecerão de limitações. Todavia, tenho a opinião que a do IBGE é um padrão que coleta dados em âmbito nacional e sua utilidade está centrada sobretudo na unidade da coleta das informações, o que permitir ter um padrão de comparação confiável.

O IBGE trabalha com o que chamamos de ‘quesito cor’, ou seja, a ‘cor da pele’, conforme as seguintes categorias: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Indígena, teoricamente cabe em amarelos (populações de origem asiática, historicamente catalogados como de cor amarela), todavia, no caso brasileiro, dada a história de dizimação dos povos indígenas, é essencial saber a dinâmica demográfica deles. Um outro dado que merece destaque é que população negra, para a demografia, é o somatório de preto + pardo. Cabe ressaltar que preto é cor e negro é raça. É simples, não há ‘cor negra’, como ouvimos muito. Há cor preta. É tão simples, mas em geral pesquisadores(as) insistem em dizer que não entendem, apesar da obrigatoriedade ética de inclusão do ‘quesito cor’ como dado de identificação pessoal nas pesquisas brasileiras em seres humanos desde 1996, segundo a Resolução196/96. Normas de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos [(VI. Protocolo de pesquisa. VI.3 – informações relativas ao sujeito da pesquisa (…) cor (classificação do IBGE)].

A identidade racial/étnica

De acordo com a convenção do IBGE, portanto, negro é quem se autodeclara preto ou pardo. Embora a ancestralidade determine a condição biológica com a qual nascemos, há uma produção social, cultural e política da identidade racial/étnica. No Brasil, para fins políticos considera-se negra pessoa de ancestralidade africana desde quem assim se identifique.
Vale mencionar ainda as polêmicas sobre o conceito de raça e de etnia, na medida em que, grosso modo, raça deveria ser um conceito biológico, porém não é; e etnia um conceito cultural. Não sendo raça uma categoria biológica, etnia também se revela como um conceito que não é estritamente cultural, pois a delimitação de grupos étnicos parte de uma suposta alocação deles no guarda-chuva dos grupos populacionais raciais sem abstrair a unidade do local de origem, e, para delimitar etnia, considera-se a concomitância de características somáticos (aparência física), lingüísticas e culturais. Enfim, o conceito de raça é uma convenção arbitrária, enquadra-se como uma categoria descritiva da antropologia, baseada nas características aparentes das pessoas. Portanto, o uso dos vocábulos raça ou etnia está circunscrito à destinação política que se pretende dar a eles.

Estudos da genética molecular, sob o concurso da genômica, são categóricos: a espécie humana é uma só e a diversidade de fenótipos, bem como o fato de que cada genótipo é único são normas da natureza. Tendo o DNA como material hereditário e o gene como unidade de análise, não é possível definir quem é geneticamente negro, branco ou amarelo. O genótipo sempre propõe diferentes possibilidades de fenótipos. O que herdamos são genes, e não caracteres!

Se para as ciências biológicas raça não existe e é consensual nas ciências sociais que o conceito de raça está superado, por que a insistência, em particular do movimento negro, em usar raça como um paradigma da luta contra a opressão de base racial/étnica, ou seja, do racismo? Por questões políticas, já que o racismo existe e é uma prática política que tem por base não apenas a existência das raças, mas que as ‘não-brancas’ são inferiores.

Políticas de ação afirmativa segundo sexo/gênero e raça/etnia

 

A alocação das pessoas segundo classe social, sexo/gênero e raça/etnia se constitui em indicadores que podem ser traduzidos em políticas públicas anti-discriminatórias na área da saúde, da educação, saneamento, habitação, segurança etc. Um exemplo paradigmático é dado pelo ‘Dossiê Assimetrias raciais no brasil: alertas para a elaboração de políticas’, publicado pela Rede Feminista de Saúde, elaborado pela pesquisadora Wânia Sant’Anna (2003), que promove um diálogo entre dados com recorte racial/étnico, nas mais diferentes áreas da vida social, sistematizados pelo IPEA, obtidos das PNADs da década de 1990 até 2001, e os Megaobjetivos do ‘Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 – Orientação estratégica de governo, um Brasil de todos: crescimento sustentável, emprego e inclusão social.’ O referido Dossiê visibiliza a crueza da realidade vivenciada pela população negra, uma situação de desvantagens e vulnerabilidades em todas as esferas da vida.

(Disponível em www.redesaude.org.br/dossies/html/dossieassimetriasraciais.html)
A medicina baseada em evidências demonstra que algumas doenças são mais comuns ou mais freqüentes, ou evoluem de forma diferenciada, em determinados agrupamentos humanos raciais ou étnicos. E o são, conforme determinadas interações ambientais e culturais com o patrimônio genético. Relembrando que humanos são seres biológicos regidos também por leis também biológicas, urge considerar que há uma produção social da enfermidade, ou da manutenção da sanidade, nas condições das sociedades de classes, da opressão racial/étnica e da opressão de gênero. Diante do exposto, o significado político de dar visibilidade aos dados da morbidade e da mortalidade segundo sexo/gênero e raça/etnia é incomensurável.

No caso da população negra, há vários estudos que corroboram que o recorte racial/étnico na saúde é um componente essencial para compreender o que chamamos predisposição biológica, que, como tenho afirmado em vários escritos, significa a maior ou menor capacidade de um ser vivo responder às complexas interações solicitadas pelo meio ambiente físico, e, no caso de humanos, também pelo meio ambiente cultural em que vive. A predisposição biológica resulta e refere-se a um longo processo evolutivo da humanidade, é o binômio indissociável: constituição hereditária + meio ambiente. O que quer dizer que o caráter social e histórico das doenças é amplamente demonstrado através da história de vida das pessoas, e esta está intimamente vinculada ao sexo (ao privilégio ou desprivilégio de gênero); à raça/etnia (à vivência ou não do racismo).

Apesar das limitações inerentes ao que se convenciou denominar de classificação racial, é de grande valia uma classificação racial como a brasileira, pois através dela é possível delimitar de que adoece (morbidade) e de que morre a população negra, indicadores fundamentais para políticas de combate ao racismo institucional no aparelho formador, nas instituições e profissionais de saúde. O mesmo é válido para outras áreas.”

 

O processo sanidade/enfermidade

[Extraído de Saúde da população negra no Brasil em 2001 (Opas-Brasil, 2002), Fátima Oliveira, disponível em www.opas.org.br/publicmo.cfm?codigo=68]
Krieger e Basset (1986) dizem que:

A elucidação e a prevenção precisas dos componentes materiais e ideológicos dos processos da enfermidade fazem necessária a adoção explícita de um ponto de vista anti-racista e com consciência de classe (…) está bastante evidente que precisamos de novos enfoques para compreender a interpenetração do racismo, das relações de classe e saúde. Para desemaranhar e eliminar as diferenças entre brancos e negros na enfermidade devemos começar a denunciar politicamente, e não tão-somente descrever as raízes sociais do sofrimento e da enfermidade (…) Devemos também desmascarar o fundo classista dos modelos das enfermidades (…) devemos nos empenhar em desenvolver um modelo anti-racista das causas das doenças. E, em última instância, apelar para uma ciência anti-racista é exigir uma ciência com consciência de classe. Não podemos nos conformar com menos.
Oliveira (1993) afirma que:

As diferenças e diferenciais raciais/étnicos são realidades inegáveis do nosso tempo. Não sabemos exatamente, na maioria das vezes, onde começam e até onde vão os alcances e limites da predisposição biológica. Não são compreensíveis ainda todos os passos e os limites entre a saúde e a doença. Mas, reconhecemos que há condições de sanidade/enfermidade relativas ao sexo e às raças/etnias, embora não saibamos com exatidão quais todas as causas desta realidade.

 

As evidências do recorte racial/étnico no processo saúde/doença, cuja abordagem ampla encontra-se no capítulo III, em geral são invisibilizadas por argumentos de inspiração anti-racistas oriundos de duas matrizes humanitárias, que em geral se entrecruzam, a ponto que é extremamente difícil separar uma da outra.
A primeira matriz, de cunho ideológico, de inspiração inegavelmente anti-racista, se expressa, na prática, como uma contraposição ao darwinismo social e à eugenia. Sem dúvida, há razões mais que suficientes no debate e nas teorizações sobre o processo saúde/doença para que se combata as posturas racistas e as de discriminações de classe. A principal delas é a idéia equivocada e anticientífica de que há seres humanos superiores e inferiores.
A história da humanidade está repleta de fatos exemplares dos danos causados pelas discriminações classistas, sexistas e racistas na área da saúde, grande parte deles alicerçados em visões biologizantes de hierarquização dos grupos populacionais raciais ou étnicos. Não há dúvida também que tais visões via de regra constituem grosseiras deturpações dos saberes biológicos.

Porém, na atualidade é também uma deturpação inaceitável não considerar a condição biológica do ser humano que, a exemplo de qualquer ser vivo, é também regido por leis biológicas. É inaceitável, porque anticientífico, que não seja percebida a interpenetração das variáveis sexo/gênero, raça/etnia e classe social como informadora do processo saúde/doença. Não há como desconsiderar a condição biológica humana em interpenetração com as condições sociais, culturais e materiais nas quais vive, posto que está comprovado que é impossível dizer qual é mais importante se o meio ou a condição biológica dos seres vivos, pois ambos são interdependentes!

 

A segunda destaca as dificuldades e as diferentes formas de ‘nomeação’, seja por raça ou por etnia, o que cria dificuldade de definição de um parâmetro para comparabilidade [Há diferentes maneiras de coletar e analisar informações estatísticas. Torres (2001) informa que há nos EUA, expressivo acúmulo de informações estatísticas, pesquisas e medições que abordam o enfrentamento da pobreza a partir de uma perspectiva de etnia, enquanto que na América Latina e no Caribe tal abordagem ainda é incipiente, sobretudo porque os instrumentos de coleta de informações (recenseamentos, pesquisas domiciliares e estatísticas vitais) geralmente não incluem as variáveis raça/etnia. A referida autora destaca que, tal como nos Estados Unidos, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Guatemala, Nicarágua, Peru, Paraguai e Trinidad e Tobago incluem a “variável étnica” ou “quesito cor”, como no caso do Brasil, em alguns dos instrumentos de informações demográficas ou sobre padrões de vida (censos e/ou pesquisas em domicílios). Belize, Brasil, Cuba, Estados Unidos, Guiana, Peru, Trinidad e Tobago e Uruguai incluem a variável raça/etnia/”quesito cor” nos atestados de óbitos.].

Alega também que a escassez de pesquisas com recorte racial/étnico nas populações vítimas do racismo, em particular as ‘não-brancas’, não permite conclusões passíveis de generalização. Na verdade, tais argumentos criam um círculo vicioso. Não há dados, logo não é possível generalizações. Generalizar não é possível, posto que não há dados. Mas sair do círculo vicioso exige responder, sinceramente, à pergunta: mas por que os dados não são produzidos? Mas por que é possível generalizar que a saúde das populações vitimadas pela discriminação racial não recebe a atenção necessária na assistência e na pesquisa?

Tais matrizes informam as propostas de solução para os ‘problemas de saúde’ que incidem nas populações ‘não-brancas’ através de tentativas de correção das assimetrias em geral via políticas de combate à pobreza com instrumentos que tenham foco nas populações vulneráveis. Cabe lembrar que vulnerabilidade é um conceito aplicável aos casos nos quais a autonomia poderá estar diminuída: por idade, doença, sexo/gênero – no caso das mulheres em idade fértil, de privação de liberdade etc. O critério/idéia de vulnerabilidade incorpora a vulnerabilidade social, biológica, de sexo/gênero e hierárquica, todas situações nas quais o poder e autonomia encontram-se diminuídos [Guimarães e Novaes dizem, respondendo à pergunta: “Quem são as pessoas vulneráveis?”, “São pessoas que por condições sociais, culturais, étnicas, políticas, econômicas, educacionais e de saúde têm as diferenças, estabelecidas entre elas e a sociedade envolvente, transformadas em desigualdade. A desigualdade, entre outras coisas, os torna incapazes ou pelo menos, dificulta enormemente, a sua capacidade de livremente expressar a sua vontade” . Para as autoras citadas, a autonomia é um atributo individual, enquanto que a vulnerabilidade pode ser individual ou coletiva. GUIMARÃES, Maria Carolina S. e NOVAES, Sylvia Cauby. Vulneráveis. www.ufrgs.br/HCPA/gppg/vulnera.htm].

Os argumentos ditos de cunho ideológico e os de escassez de dados, ao fim e ao cabo, ainda que de modo indireto e talvez inconsciente, criam barreiras que impedem que suas indicações de resolução dos problemas ultrapassem os limites impostos pelo seu arsenal de análise: o ‘modelo econômico’, ou visão economicista, das doenças, ainda que agreguem a ele a idéia dos comportamentos insalubres (modelo ecológico). É uma visão simplista e parcial da sanidade e da enfermidade ‘reduzir’ o estar ou não saudável às condições econômicas nas quais as pessoas vivem. Trata-se portanto de uma explicação que só considera a produção social das doenças e sua associação ao estilo de vida adotado pelas pessoas.
Inegavelmente o processo sanidade/enfermidade é multifatorial e complexo, nele estão entrelaçados influências do meio ambiente físico, social, político e cultural, todas em interação com as condições biológicas de cada ser humano. A condição biológica humana não pode ser abstraída quando analisamos o processo saúde/doença, pois sendo ela a materialização da existência humana não podemos omiti-la. Desconhecemos o como e todos os porquês as pessoas se mantém saudáveis ou adoecem. Os modelos contemporâneos (modelo genético; modelo econômico; modelo ambientalista; modelo ecológico; e modelo ou visão holística) que tentam explicar a sanidade e a enfermidade, exceto o modelo holístico, adotam visões parciais, mas nenhum, isoladamente, consegue fornecer uma imagem fidedigna da realidade.
[Modelos explicativos do processo saúde/doença

“1. O modelo genético, muito em “moda”, tenta ser o único e verdadeiro caminho que responderá e desvendará TODOS os mistérios da vida, ao reduzir o destino das pessoas ao que portam os seus genes, pois deles depende a forma como as proteínas das pessoas são produzidas.
2. O modelo econômico “reduz” o destino das pessoas às condições econômicas nas quais elas vivem, de maneira que essa explicação só considera a produção social das doenças.
3. O modelo ambientalista “reduz” o destino das pessoas às condições do ambiente em que vivem. Isto é, o meio ambiente é o determinante da saúde e da doença.
4. O modelo ecológico “reduz” o destino das pessoas ao estilo de vida que elas adotam. Ou seja, a relação delas com o ambiente é o determinante para a sanidade e a enfermidade.
5. O modelo ou visão holística, baseia-se numa compreensão integral, de interação entre a condição biológica do ser humano + meio ambiente físico, cultural e social. Apesar da abrangência e da visão de integralidade, algumas correntes do holismo às vezes não compreendem que a desestabilização de uma destas variáveis pode ser suficiente para desencadear ou determinar o processo de doença (por exemplo, às vezes basta um problema em um gene, ou par de genes, para que haja uma doença, caso da anemia falciforme). Ou seja, entendem que o “todo” – a visão de conjunto, a interdependência, sempre sobrepuja as partes.” OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. SP, SP: Moderna, 1997.]

Conforme Oliveira (1995), ‘cresce a compreensão nos meios científicos que as imagens epidemiológicas necessitam incorporar a interpenetração das variáveis sexo/gênero, raça/etnia e classe social para retratar a realidade com maior fidelidade. Esta tríade precisa ser analisada considerando a vivência do racismo e as demais condições sociais e materiais nas quais a pessoa vive, além de ressaltar que a condição biológica não é mais ou menos importante, apenas indispensável quando tratamos do ser humano. Estamos pois, diante do desafio da necessidade de elaborar um novo paradigma capaz de explicar o que a ‘ciência normal’ do nosso tempo não tem conseguido.’

A-racismo e anti-racismos tradicionais

Yvonne Maggie e Peter Fry, no artigo “A reserva de vagas para negros nas universidades brasileiras” (Estudos Avançados 50. Dossiê O Negro no Brasil, p. 67-80. Vol. 18 – Número 50 – Janeiro/Abril de 2004. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo): “As medidas pós-Durban, ao proporem ações afirmativas em prol da ‘população negra’, rompem não só com o a-racismo e o anti-racismo tradicionais, mas também com a forte ideologia que define o Brasil como o país da mistura, ou como preferia Gilberto Freire, do hibridismo. Ações afirmativas implicam, evidentemente, imaginar o Brasil composto não de infinitas misturas, mas de grupos estanques: os que têm e os que não têm direitos à ação afirmativa, no caso em questão, ‘negros’ e ‘brancos’ (…) Evidentemente, então, a repentina adoção de cotas como política de Estado nos supreendeu e muito. Estávamos errados? E se estávamos, por que?”

Há dias leio e releio o artigo de Maggie e Fry. Tenho aprendido muito. Sou grata a ambos. Porém sou obrigada a admitir que seria por demais instigante que ambos se dedicassem a responder publicamente as suas indagações, ainda que isto signifique colocar no lixo parte substancial das pesquisas que foram desenvolvidas no Brasil sob a égide de suas hipóteses, as cujo eixo é a “mistura” e o hibridismo, particularmente porque foram geradas e paridas a partir do que chamam de a-racismo e anti-racismos tradicionais que, como a história está se encarregando de demonstrar, são parceiras do status quo.

E lendo Maggie e Fry entendo que de repente estão vendo o leme que os conduziu até às vésperas da Conferência de Durban parece ter se quebrado. Então, não posso deixar de permitir que minha mente flutue e me delicio e re-energizo com a música: “Ilê que fala de amor”, na voz de Margareth Menezes… “Pro Ilê vamos cantar/Esse o que fala de amor, que fala de África do Sul/Esse é o que fala de amor, vem de lá do Curuzu”…

E também preciso ouvir Madagascar Olodum, composição do Rey Zulu: (…) “E viva Pelô Pelourinho/Patrimônio da humanidade é/Pelourinho, Pelourinho/Palco da vida e das negras verdades/Protestos, manifestações/Faz o Olodum contra o Apartheid/Juntamente som Madagascar/Evocando liberdade e igualdade a reinar / Iêêê Sakalavas oná ê/Iááá Sakalavas oná á/Iêêê Sakalavas oná ê/Iááá Sakalavas oná á/ Madagascar, ilha, ilha do amor/Madagascar, ilha, ilha do amor/Madagascar, ilha, ilha do amor/Madagascar, ilha, ilha do amor / Aiêêê, Madagascar Olodum/Aiêêê, eu sou o arco-íris de Madagascar/Aiêêê, Madagascar Olodum/Aiêêê, eu sou o arco-íris de Madagascar”.
E para encerrar, citarei trechos de Sérgio Danilo Pena e Maria Catira Bortoloni, em “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitária e demais ações afirmativas?” (Estudos Avançados 50. Dossiê O Negro no Brasil, p. 31-50. Vol. 18 – Número 50 – Janeiro/Abril de 2004. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo), no qual afirmam:

De acordo com o sonho de Martin Luther King, uma sociedade justa deveria tratar a todos os cidadãos igualmente, independente da cor da pele. Isto significaria a extinção do racismo com todas as suas perversas conseqüências: discriminação, exploração, opressão e exclusão social. A genética moderna já endossou essa postura ao mostrar que as raças humanas simplesmente não existem do ponto de vista biológico (…) Neste novo milênio, temos perfeitas condições de construir uma sociedade verdadeiramente igualitária, uma “democracia racial” na prática e não apenas no papel.

Ação imperiosa

O autor e a autora destacam o que denominam de desigualdades conjunturais dos negros e dizem: “Assim vários segmentos da sociedade brasileira têm argumentado que já é hora de se iniciar ações corretivas para sanar esta situação de desigualdade, adotando políticas públicas compensatórias de ação afirmativa, entre as quais a reserva de vagas universitárias, agora amplamente discutidas”.

Relembro que o referido artigo data de 2004. Atentem que o autor fala que as cotas étnicas naquela época eram “amplamente discutidas”. A contradição é que assina em 2006, e exatos dois anos depois um documento contra as cotas éticas sob o argumento que o debate sobre o tema era restrito! Vá entender o que vai na cabeça dessa gente.

No mesmo artigo, sob o intertítulo “Classificando pessoas” afirma: “O interesse em classificar pessoas data da Antiguidade (…) Richard Lewonti, utilizando polimorfismos genéticos clássicos (grupos sangüíneos, proteínas séricas e isozimas) … determinou que 85,4% da variação era encontrada entre indivíduos de uma mesma população, 8,3% entre populações dentro de uma mesma raça e apenas 6,3% entre as chamadas raças, o que inviabilizaria a utilização do termo para a espécie humana em um contexto biológico. Inúmeras investigações posteriores corroboram estes achados e esta idéia (…) Uma exceção à regra de que a maior parte da variabilidade genética humana está concentrada dentro das populações é a cor da pele: 88% das variação pode ser encontrada entre regiões geográficas e apenas 12% dentro das regiões (Relethford, 2002). A explicação para este fato é de que a cor da pele está sujeita à ação IMPERIOSA (grifo meu) da seleção natural e o resultado é uma adaptação notável das populações aos diferentes níveis de radiação ultravioleta vigentes nos diferentes continentes (Reletheford, 1994)…

Comportamentos pendulares

Declarando que o que se sabe hoje informa que “Esse número de genes é insignificantemente pequeno no universo de cerca de 35 mil genes que existe no genoma humano”, é enfático ao afirmar: “Da mesma maneira acredita-se (não se sabe bem ainda, grifo meu!) que outras características físicas externas (textura do cabelo, formato dos lábios e nariz, etc) devam estar sujeitas a fatores seletivos que ainda não foram claramente identificados. Sabemos que, assim como a cor da pele, estas características dependem da expressão de um número pequeno de genes. Em resumo, as diferenças icônicas de ‘raças’ correlacionam-se bem com o continente de origem (já que são selecionadas), mas não refletem variações genômicas generalizadas entre os grupos. Desta forma deve ficar claro que quando a expressão ‘raça’ for utilizada, ela irá representar uma construção social, política e cultural, e não uma entidade biológica. Mesmo assim, as sociedades humanas construíram elaborados sistemas de privilégio e opressão baseados nessas insignificantes diferenças genéticas, que envolvem pouquíssimos genes”.
E finaliza o artigo com fecho de ouro: “Analogamente, a informação genética sobre a estrutura da população brasileira deve ser considerada apenas como subsídio para o processo de tomada de decisões. Não compete à genética fazer prescrições sociais. A definição sobre quem deve se beneficiar das cotas universitárias e das ações afirmativas no Brasil deverá ser resolvida na esfera política, levando em conta a história do país, o sofrimento de seus vários segmentos e análises de custos e benefícios (…) a genética deve contentar-se em fornecer dados científicos sólidos que ajudem a sociedade como um todo a tomar decisões políticas informadas”.
Como vêem, o cientista Sérgio Danilo Pena é brilhante quando aborda as bases teóricas da ciência da qual é um especialista de renome mundial. O mesmo não se pode dizer quando se mimetiza de signatário de manifestos políticos que desonram a sua produção científica e o obrigam a comportamentos pendulares explícitos no campo da política.

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