A África do Sul reage à absolvição de Oscar Pistorius

Cerca de 70% dos negros sul-africados queriam ver o atleta condenado pela morte da namorada; veredicto apenas reforça descrente na Justiça de grande parte da população
por Lorenzo Simoncelli de Pretória

Após seis meses de julgamento, Oscar Pistorius, o primeiro atleta a correr nos Jogos Olímpicos com próteses de carbono nas pernas, foi condenado por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) pela morte de sua namorada Reeva Steenkamp na noite de 14 de fevereiro de 2013. A juíza Thokozile Masipa, a segunda mulher negra a atuar no Tribunal de Pretória após o fim do Apartheid, não acatou a versão da acusação, para quem, naquela noite, o atleta paraolímpico teria perdido a cabeça depois de uma briga, matando intencionalmente a namorada.

O promotor de justiça, de acordo com a juíza sul-africana, não apresentou ao tribunal evidências inquestionáveis que levassem à condenação por homicídio premeditado. A juíza Masipa, especializada em processos de violência contra a mulher, acreditou na versão de Pistorius, definindo-a como “razoavelmente possível”.

O velocista sul-africano sempre afirmou se tratar de um “trágico acidente”, uma vez que, naquela noite, assustado depois de ouvir ruídos vindos do banheiro em sua casa em Pretória, teria pegado sua arma e disparado quatro tiros, percebendo apenas depois que por trás da porta estava sua namorada, morta, e não um ladrão.

Apenas no próximo mês será definida a pena, que deve variar de 7 a 10 anos, e o local onde esta será cumprida – Pistoriusdificilmente irá para a cadeia por conta de sua deficiência. A decisão da juíza Masipa gerou controvérsias, dividindo famílias, advogados e a opinião pública. “Estamos chocados. Não houve justiça”, comentou June Steenkamp, mãe de Reeva. “Não consigo aceitar que eles acreditaram que foi um acidente. Só espero que um dia a verdade venha à tona.”

Já a família Pistorius, que esperou até o último minuto pela absolvição completa, pode respirar aliviada por ter evitado as condenações por homicídio intencional ou doloso, que teria forçado o atleta sul-africano a cumprir uma pena entre 15 e 25 anos. “Nós nunca duvidamos da versão de Oscar, mas somos gratos à Justiça”, disse Arnold Pistorius, tio do campeão paraolímpico.

Desde o início do julgamento, estava claro que seria muito difícil condenar o campeão paraolímpico por homicídio intencional, posto que, na casa do crime só estavam o agressor e a vítima. Nenhuma testemunha. Mas o debate jurídico foi aberto depois que o juiz também excluiu o homicídio doloso, ou seja, quando uma pessoa prevê que a sua ação poderia levar a consequências fatais.

De acordo com Ulrich Roux, advogado criminal entrevistado por CartaCapital, “mesmo acreditando na versão de Pistorius, certo de que por trás da porta do banheiro estava escondido um ladrão e não a namorada, se alguém dispara quatro tiros de uma arma potente contra uma pessoa trancada em um espaço de 2×2 metros, sabe que são grandes as chances de matá-la”. A juíza Masipa afirmou sim que o atleta paraolímpico agiu “com negligência” e “com violência excessiva”, mas também argumentou que ele “não poderia prever que os quatro tiros matariam Reeva”. “Trata-se de uma interpretação equivocada da lei”, disse James Grant, professor de direito na Universidade de Wits, em Johannesburgo, e que dá margem à possibilidade de a acusação recorrer da sentença.

Para parte do povo sul-africano, o processo tinha peso histórico, posto que uma mulher negra, a juíza, decidiria o destino de um homem branco. “Reeva foi morta duas vezes, primeiro pelo seu namorado e depois pelo veredito”, comentou um jovem diante do Tribunal. “Nós ficamos muito decepcionados, acreditávamos na lei”, afirmou um estudante de Direito.

Na África do Sul, está presente à enésima potência um sentimento de falta de confiança na justiça, que se expressa no chamado “mob justice”, a justiça feita com as próprias mãos. Nas favelas de Pretória, Johannesburgo e Cidade do Cabo, quem rouba ou mata é espancado e depois queimado vivo.

Isso justifica que, de acordo com uma pesquisa, 70% dos negros sul-africanos queiram ver Pistorius apodrecer na prisão, para voltarem a acreditar na justiça e na lei. Eles queriam parar de pensar que os brancos, ricos e poderosos sempre ganham. Isso não aconteceu, mas, à espera de conhecer a pena que Pistorius terá que cumprir, grande parte da África do Sul se deixou levar pelo sentimento popular e pelas controvérsias de bar, não entendendo que a sala de um tribunal não é um ringue de boxe.

Ao contrário de uma tragédia grega ou shakespeariana, não prevaleceram os personagens, os gêneros ou as cores de pele; mas sim a Justiça, aquela escrita nos códigos penais, corretos ou incorretos, próximos ou distantes da realidade. Se a juíza sul-africana cometeu ou não um erro, haverá outras instâncias possíveis de julgamento que farão a apuração, mas os fatos indicam que ninguém sabe de fato o que aconteceu naquela noite. Dois são os guardiões da verdade: uma está morta e outro é Oscar Pistorius.

 

Foto: Stefan Heunis/AFP

Fonte: Carta Capital 

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