por Larissa Altoé
O Brasil recebeu, do século XVI ao XIX, aproximadamente quatro milhões de cativos. A principal região brasileira importadora de africanos escravizados era o Sudeste, e nela se destacava a praça comercial do Rio de Janeiro, onde eles chegavam do Congo, Angola e Moçambique.
Não havia lugar que se comparasse com a nossa cidade no início do século XIX em relação ao aumento da população africana e afrodescendente. Na década de 1820, havia na corte 86.323 habitantes, dos quais 40.376, ou 46,7%, eram escravos, majoritariamente africanos (dados do livro A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, de Mary Karasch).
Ao longo daquele século, esses números só aumentaram, caracterizando a cidade como a que mais abrigava escravos e negros livres em todas as Américas. Em 1849, eles já somavam 48% de uma população de quase 206.000 habitantes. Desempenharam papel fundamental no cotidiano urbano. Os chamados “escravos de ganho” faziam os serviços nas casas dos senhores e iam para as ruas em busca de trabalho. Alugavam seu tempo a um e a outro, e, ao final do dia ou da semana, deviam entregar uma determinada soma a seu senhor ou senhora. O que passava do valor previamente acordado ficava para si. O senhor podia também alugar o serviço de seu escravo a terceiros por um período de tempo – caso dos negros de aluguel.
Ocupavam-se também do transporte de pessoas e mercadorias nas ruas e portos. Eram eles que carregavam água das fontes públicas para as cozinhas e banheiros dos sobrados. Constituíam a mão de obra mais numerosa empregada na construção de casas, pontes e estradas. Muitos cativos trabalhavam na fabricação de tecidos, sabão, chapéus e outros artigos de consumo. Eram também os responsáveis pela distribuição de alimentos, como vendedores ambulantes e quitandeiras.
Modo de vida do escravo urbano
É importante observar que nas cidades os escravos e escravas normalmente variavam de uma ocupação para outra, fosse por interesse próprio ou por imposição dos senhores. Assim, uma escrava doméstica podia, nas horas vagas, se transformar numa vendedora de doces nas ruas. No mundo urbano, a utilização da mão de obra escrava era muito flexível e dinâmica. As quitandeiras, que enchiam as ruas vendendo mingaus, bolos, caldo de cana e outras receitas africanas, muitas vezes levavam consigo os filhos pequenos presos às costas ou, quando mais crescidos, mantinham-nos próximos aos locais em que trabalhavam.
Os escravos de ganho e de aluguel geralmente moravam fora da casa do senhor. Habitavam os sótãos ou os subsolos dos sobrados, chamados de lojas, espécies de senzalas urbanas. Muitos residiam em grandes sobrados, localizados nos centros das cidades – espaços abandonados pelas elites. Eles sublocavam pequenos cubículos, dividindo-os com parceiros de trabalho, com libertos ou com suas mulheres. Essas habitações, conhecidas como cortiços, reuniam pessoas de condições diversas: escravos, libertos e livres.
Nos sobrados urbanos encontravam-se as domésticas, cozinheiras, amas secas e amas de leite, que limpavam, arrumavam, lavavam, engomavam e passavam roupa, cozinhavam, amamentavam e cuidavam das crianças. As escravas domésticas se encarregavam ainda de inúmeros afazeres fora das casas dos senhores. Se pertencessem a senhores com dificuldade financeira, eram obrigadas a trabalhar em outras casas como mão de obra alugada.
Ter escravos não era privilégio apenas dos grandes senhores de engenho, fazendeiros de café ou de pessoas ricas das cidades, estendendo-se a padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taverneiros e pequenos comerciantes, principalmente até a primeira metade do século XIX. Mesmo ex-escravos possuíam escravos. No Rio de Janeiro, a maioria dos cativos pertencia a pequenos proprietários, com no máximo um ou dois escravos.
Chibata para os rebeldes
Durante a Colônia e o Império, organizar e aprimorar a atuação das forças policiais nas cidades foi a grande preocupação dos governantes brasileiros. A legislação, farta em alvarás, cartas régias, código criminal, leis municipais (posturas) e provinciais, estabelecia os limites de liberdade dos escravos urbanos, definindo os espaços onde podiam circular, exercer seus ofícios, divertir-se, jogar capoeira, frequentar tabernas e fazer batuques. A eles era proibido o uso de armas e a circulação pelas ruas das cidades durante a noite. Temia-se que, camuflados pela escuridão, pudessem cometer crimes, fugas e preparar revoltas. O escravo que vagasse à noite sem autorização de seus senhores podia ser preso como suspeito de fugido.
Nas cidades, depois do toque de recolher, às oito horas, só podiam circular pelas ruas com licenças escritas pelos senhores ou por autoridades policiais. As patrulhas e rondas policiais vigiavam também os locais de culto afro-brasileiro, frequentemente prendendo seus membros e destruindo ou apreendendo objetos e instrumentos rituais. As leis coloniais e imperiais previam que os divertimentos da população negra, fosse ela escrava ou liberta, deveriam ser vigiados de perto pela polícia. Vez por outra, os vereadores aprovavam a proibição de batuques, maracatus e “ajuntamentos” de negros.
A despeito das medidas de controle, os escravos não abandonaram os hábitos noturnos, nem deixaram de participar de festas, de juntarem-se para batucar ou jogar capoeira, frequentar as tabernas e casas de jogos. Por medo e preconceito, a elite evitava circular pelas ruas e isso permitia aos cativos ocuparem determinados pontos das cidades sem serem importunados. Aliás, eles eram os grandes conhecedores das cidades; sabiam de seus segredos e recantos.
Castigo físico passa da praça pública para locais fechados
Nos centros urbanos, os senhores podiam recorrer ao poder público para punir os escravos que desrespeitavam as regras. Durante a colônia o castigo era aplicado publicamente, em local determinado pela municipalidade. Este local era chamado de pelourinho. Mas, em torno de meados do século XIX, quando a escravidão passou a ser condenada abertamente por alguns setores da sociedade, o castigo passou a ser aplicado em locais fechados, para não despertar a atenção das pessoas, como no interior das cadeias públicas, com pagamento de taxa à polícia.
Os interesses dos grandes e pequenos escravistas garantiram a sobrevivência da escravidão no Brasil por mais de três séculos. Wlamyra de Albuquerque e Walter Fraga Filho afirmam em Uma História do Negro no Brasil que “Em 1822, quando o país tornou-se independente de Portugal, o grande esforço das elites foi promover a modernização das instituições sem acabar com a escravidão. A primeira constituição do Brasil, promulgada em 1824, em alguns aspectos considerada uma das mais modernas e liberais das Américas, manteve intacto o direito de propriedade dos senhores sobre seus escravos. Defender os princípios do liberalismo segundo os quais todos os homens eram livres e iguais, e ao mesmo tempo manter a escravidão, foi o grande dilema vivido pelo país durante todo o século XIX”.
O tráfico de escravos era o negócio mais rentável da época. Nenhuma grande nação europeia ficou de fora e quem os trazia tinha profundo envolvimento em diferentes esferas da sociedade brasileira e dos poderes constituídos.
A Inglaterra vivia a Revolução Industrial e a consequente valorização do trabalho assalariado. Para fabricar produtos em série, necessitava de mercado consumidor que pudesse pagar por eles. Como outra lógica ganhava espaço, era tempo de se combater o tráfico de escravos. A pressão inglesa, inclusive com patrulhamento da costa brasileira, foi determinante para que o governo brasileiro proibisse o tráfico transatlântico de escravos em 1850.
Trinta e oito anos depois, a assinatura da Lei Áurea aboliu a escravidão no Brasil, em 1888. Sobre o fato, o professor Ricardo Salles, da Escola de História da Unirio, escreveu em O Brasil Imperial, volume III: “A vitória do 13 de maio, por breve momento, abriu as comportas das águas profundas ao abater a escravidão. Restava destruir a obra da escravidão”. Na época, os intelectuais a favor da abolição diziam que seria necessário, a partir dela, implementar a partilha da terra, a universalização da educação e o sufrágio universal.
Muito da alegria carioca de viver, ligada ao samba, à capoeira, à feijoada e à caipirinha, é herança dos negros africanos. Isso sem falar nas expressões da língua portuguesa falada no Brasil que têm palavras sonoras, entre elas zangar e dengo, vindas da África.