O uso de uma droga experimental no tratamento de dois norte-americanos infectados pelo vírus Ebola está provocando um debate ético sobre o acesso em primeira mão a novas terapias ainda não devidamente aprovadas pelos órgãos competentes para combater a doença mortal.
Não existe tratamento ou vacina cientificamente testados e aprovados para combater a infecção por Ebola. Cientistas afirmam que não há como dizer com certeza se a droga experimental conhecida como ZMapp realmente fez a diferença no tratamento dos dois funcionários de ajuda humanitária americanos que contraíram o vírus na Libéria e foram levados para os Estados Unidos.
Também não há elementos para crer que a droga experimental de fato ajudará a frear o alastramento da doença, que começa com febre e dores no corpo e em certos casos evolui para fortes sangramentos e pode levar à morte.
Os estoques da droga são limitados e ela nunca foi testada em seres humanos tanto do ponto de vista de segurança quanto de eficácia. Nos EUA, um tratamento só é autorizado em larga escala após autorização da FDA (Food and Drug Administration).
Pelo menos um país afetado pelo surto de Ebola já demonstrou interesse pelo tratamento experimental. O ministro da Saúde da Nigéria, Onyenbuchi Chukwu, afirmou ter solicitado acesso à droga ao Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos EUA. Segundo um porta-voz do órgão, “praticamente não há doses disponíveis”.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) convocou para a próxima semana uma reunião de especialistas em ética médica para analisar qual a “medida mais responsável a ser tomada” em relação a um tratamento ainda em fase de testes. Seria apropriado que os EUA disponibilizem uma droga a países em desenvolvimento que ainda não foi testada e aprovada para uso em seus próprios cidadãos? Esta é uma das questões que será debatida na reunião convocada pela OMS. A possibilidade de aumentar a produção e a oferta da nova droga também deve ser discutida.
O presidente Barack Obama prometeu ajuda para “combater o surto o mais rápido possível”. “No curso desse processo, creio que é inteiramente apropriado verificarmos se existem drogas ou tratamentos médicos adicionais que possam reduzir as mortes em consequência de uma doença tão mortal”, disse.
“Pacientes negros e brancos não têm o mesmo valor”
Enquanto os especialistas divergem sobre o novo tratamento, habitantes da região afetada pelo surto criticam o fato de o tratamento já não estar disponível para africanos infectados.
O surto de Ebola começou na Guiné e se espalhou para os vizinhos Serra Leoa e Libéria antes de chegar à Nigéria, país mais populoso da África Ocidental. Até o momento cerca de 1.700 pessoas já foram diagnosticadas e mais de 930 morreram no maior surto já registrado no mundo. A doença também matou um norte-americano e um saudita.
Anthony Kamara, um homem de 27 anos entrevistado pela agência Associated Press em Freetown (capital da Serra Leoa) disse que “os americanos são egoístas e se preocupam apenas com as vidas deles”. Ele se referiu ao ZMapp como o “soro milagroso” que os norte-americanos “se recusam a dividir conosco para salvar vidas de africanos.”
A falta de disponibilidade da nova droga de forma mais ampla “simplesmente mostra que pacientes brancos e negros não têm o mesmo valor aos olhos da medicina mundial”, disse Nouridine Sow, que leciona sociologia no Instituto Universal de Guiné.
O ZMapp é um coquetel de três anticorpos que agem conjuntamente para identificar a presença do Ebola dentro da célula infectada, eliminando-a.
“Saúde pública tradicional deve ser o foco”
Alguns especialistas temem que a polêmica sobre o acesso ao tratamento tire o foco do que é mais importante neste momento: diagnosticar, isolar e tratar os doentes, educar os que tiveram contato com infectados e controlar infecções hospitalares.
“Nem sabemos se o tratamento funciona”, afirmou o médico Anthony Fauci, do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, nos EUA. Segundo ele, o fabricante do ZMapp informou o governo norte-americano que levaria de dois a três meses para produzir uma “quantidade modesta”. “Todos estão tentando apressar as coisas”, afirmou.
“Quantas vezes descobrimos terapias mágicas que acabaram causando mais mal do que bem”, questionou o professor Michael Osterholm, da Universidade de Minnesota, consultor do governo norte-americano sobre doenças infecciosas. “Vacina ou novos tratamentos não são a melhor forma de combater o surto neste momento”, disse.
O médico Tom Frieden, diretor do Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC), afirmou nesta quinta que os principais motivos pelo rápido alastramento do vírus são a falta de medidas de proteção adequadas durante o tratamento dos doentes e práticas inadequadas ao enterrar os mortos nos países afetados. “Sabemos como parar o Ebola: saúde pública tradicional”, disse Frieden, que defendeu ações “testadas e aprovadas”.
A OMS afirmou que, particularmente na Libéria, funcionários de saúde enfrentam resistência por parte de habitantes que temem ser hospitalizados ou preferem tratar doentes em casa, expondo o resto da família ao vírus. O Ebola só é transmitido por contato direto com o sangue e/ou outros fluídos corporais de uma pessoa doente.
Para ajudar no diagnóstico nos quatro países africanos, a FDA autorizou o uso emergencial de testes de sangue para detectar o vírus Ebola.
Nesta semana, a Organização Mundial de Saúde convocou um comitê de emergência para determinar se o surto de Ebola deve ser considerado uma “emergência de saúde pública de alcance internacional”, o que exigiria uma resposta global.
Missionário espanhol recebe tratamento em Madri
O padre espanhol Miguel Pajares, de 75 anos, infectado pelo Ebola na Libéria, foi trasladado num avião-hospital para Madri dentro de uma bolha protetora. Ao chegar à capital espanhola, foi colocado em isolamento no hospital La Paz e permanece em situação estável. É a primeira vez que um infectado pelo Ebola é tratado na Europa.
Segundo o diretor do hospital, o paciente está sendo hidratado, mas, se o tratamento experimental tiver bons resultados nos EUA, a Espanha buscará ter acesso ao mesmo medicamento.
Por Otávio Dias
Fonte: Info.abril