A agenda das negras é tudo por Flávia Oliveira

Diante do passivo acumulado, resolver a demanda das mulheres negras é sinônimo de melhorar o Brasil

por Flávia Oliveira no O Globo

Foto Marta Azevedo

Sozinha no avião, eu lia “O que é lugar de fala?”, best-seller de Djamila Ribeiro, e refletia sobre o trecho em que a filósofa brasileira menciona o discurso “E eu não sou uma mulher?”, da abolicionista e ativista afro-americana Sojourner Truth, de 1851. Na fala improvisada, espécie de pedra fundamental do feminismo negro nos EUA, ela provocou: “Se a primeira mulher que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça para cima”. O raciocínio me remeteu à frase de outro ícone global do movimento de mulheres, a também filósofa e escritora americana Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Lembrei-me de Vilma Piedade, que formulou o conceito de dororidade, traduzido pela dor impressa nas mulheres pretas pelo machismo e pelo racismo. A ciranda de pensamentos ainda me levou a Marielle Franco, vereadora carioca vítima de uma execução brutal (e ainda não solucionada), após sair da roda de conversa Mulheres Negras Movendo Estruturas, há cinco meses.

No desembarque, encontrei a mensagem do economista Manuel Thedim, do Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (Iets), sobre o aumento de 17% da pobreza em lares chefiados por pessoas pretas na Região Metropolitana do Rio, de 2016 para 2017. Ele escreveu: “a pobreza fluminense é feminina, preta ou parda”. Mais da metade (56%) dos domicílios sob responsabilidade de mulheres negras estava abaixo da linha de pobreza. Dias depois, li na “Folha de S.Paulo” que a LCA contabilizou a chegada de 464 mil pretos e pardos ao topo da pirâmide social do país, as classes A e B.

Subimos degraus, mas ainda rolamos escada abaixo. Prova disso é o relatório do Unicef sobre pobreza multidimensional na infância e na adolescência. Seis em cada dez brasileiros (58,3%) negros de até 17 anos enfrentam ao menos um nível de privação: renda, educação, informação, trabalho infantil, moradia, água e saneamento. O IBGE já contabilizara que quase três quartos (72,9%) dos pobres tinham a pele preta ou parda. Dos domicílios chefiados por negras sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos, 28,6% têm pelo menos uma condição inadequada: falta de banheiro, paredes frágeis, excesso de moradores e/ou aluguel excessivo. Quase metade das residências (43,8%) não recebem simultaneamente serviços públicos de coleta de lixo, abastecimento de água e rede de esgoto.

Já confessei ser na vida catadora de sinais. Pois esses lampejos filosóficos e estatísticos se aglutinaram quando a ONG Criola me convidou para o seminário Mulheres Negras na Política, anteontem, no Rio. Era para identificar, à luz das estatísticas socioeconômicas, prioridades para candidatas pretas que brotaram neste 2018, em ato de resistência e coragem após o assassinato de Marielle e do motorista Anderson Gomes. A coleção de evidências não deixou dúvidas. A agenda é tudo. Negras são maioria no desemprego, na informalidade, nas vagas mal remuneradas e no trabalho doméstico. Comandam os lares mais pobres e em condições precárias de construção, acesso a serviços e bens. São mães das crianças fora da escola e dos alunos de instituições em frangalho; de rapazes e moças que não estudam nem trabalham; dos jovens assassinados ou encarcerados aos milhares todo ano. São as que mais sofrem com agressões domésticas, feminicídio, violência obstétrica, mortalidade materna e falência do sistema de saúde.

A agenda das mulheres negras, sem prejuízo das políticas focalizadas, é a universalização com qualidade de serviços públicos e de oportunidades que farão do Brasil o país que os 208 milhões de habitantes recém-estimados pelo IBGE merecem. Mulheres negras em cargos políticos — eleitas ou indicadas — vão orientar a superação das carências velhas conhecidas em planejamento, divisão do Orçamento, investimentos em infraestrutura, mobilidade urbana, habitação, educação, saúde e segurança. O desafio político está posto. Para elas ou para quem com elas se comprometer. Diante do passivo acumulado e do tamanho da demanda, resolver a agenda das mulheres negras é sinônimo de melhorar o Brasil. É virar o país de cabeça para cima.

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