Agostinho Neto

Agostinho Neto foi o primeiro presidente de Angola (1975-1979), após a independência desta de Portugal. Nasceu em Bengo em meio a uma família metodista – seu pai era pastor. Envolveu-se com grupos anticolonialistas quando estudava medicina em Portugal. Poeta nacionalista, seus escritos foram proibidos e esteve preso de 1955 a 1957 e outra vez, já em Angola, de 1960 a 1962. Conseguiu fugir para o Marrocos e posteriormente fundou o MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola, de tendência marxista. Conquistada a independência de Angola em 1975, o novo governo dirigido pelo MPLA, contando com o apoio de Cuba, entrou em choque com grupos de direita, apoiados pelos EUA e pelo governo racista sul-africano.

– Fonte: Portal São Francisco –

 

(Foto: Imagem retirada do site DW)

ANTÓNIO AGOSTINHO NETO nasceu a 17 de Setembro de 1922, na aldeia de Kaxicane, região de Icolo e Bengo, a cerca de 60 km de Luanda. O pai era pastor e professor da igreja protestante e, tal como sua mãe, era igualmente professora. Após ter concluído o curso liceal em Luanda, Neto trabalhou nos serviços de saúde. Viria a tornar-se rapidamente uma figura proeminente do movimento cultural nacionalista que, durante os anos quarentas, conheceu uma fase de vigorosa expansão.

 

 

Decidido a formar-se em Medicina, Neto pôs de lado parte dos seus magros proventos durante vários anos e, foi com essas economias que embarcou para Portugal em 1947 e se matriculou na Faculdade de Medicina de Coimbra. Não havia uma única instituição de ensino superior na Colónia. O estudante que pretendesse continuar os seus estudos via-se forçado a fazê-lo à custa de grande sacrifício e tinha de alcançar um notável status académico em condições de pobreza e discriminação racial extremamente difíceis. Estudando primeiro em Coimbra e posteriormente em Lisboa, foi-lhe concedida uma bolsa de estudos pelos Metodistas Americanos dois anos depois da sua chegada à Portugal.

Cedo se embrenhou em atividades políticas e experimentou a prisão pela primeira vez em 1951, ao ser preso quando reunia assinaturas para a Conferência Mundial da Paz em Estocolmo.

Retomando as atividades políticas após a sua libertação, Neto tornou-se representante da Juventude das colónias portuguesas junto de um movimento da juventude portuguesa, o MUD juvenil. E foi no decurso de um comício de estudantes a que assistiam operários e camponeses que a PIDE o prendeu pela segunda vez.

Preso em Fevereiro de 1955, só veio a ser posto em liberdade em Junho de 1957.

Por altura da sua prisão em 1955 veio ao lume um opúsculo com os seus poemas. Entretanto, certos poemas que descreviam as amargas condições de vida do Povo angolano e a fervente crença do poeta no futuro haviam já atravessado, anos antes, o muro de silêncio que Portugal erguera em torno da repressão que exercia sobre os democratas e dos crimes brutais que se perpetravam nas colónias.

O caso da prisão do poeta angolano desencadeou uma vaga de protestos em grande escala. Realizaram-se encontros; escreveram-se cartas e enviaram-se petições assinadas por intelectuais franceses de primeiro plano, como Jean-Paul Sartre, André Mauriac, Aragon e Simone de Beauvoir, pelo poeta cubano Nicolás Gullén e pelo pintor mexicano Diogo Rivera. Em 1957 foi eleito Prisioneiro Político do Ano pela Amnistia Internacional.

Em 10 de Dezembro de 1956 fundaram-se em Angola vários movimentos patrióticos para formar o MPLA, Movimento Popular para Libertação de Angola, o movimento que lançaria a luta armada do povo angolano contra um Portugal fascista e obstinado, cujas estruturas económicas e sociais eram demasiado obsoletas para permitir a aplicação das soluções neocolonialistas procuradas noutros lugares. Começando por se organizar nas áreas urbanas, entre os operários e intelectuais progressistas, o MPLA viria a mostrar em breve as suas notáveis flexibilidade e capacidade de adaptação às exigências do momento quando passou à luta armada, criando um exército do povo para conduzir uma guerra que o poeta viria a chefiar.

Em 1958, Agostinho Neto doutorou-se em Medicina e, casou no próprio dia em que concluiu o curso. Nesse mesmo ano, foi um dos fundadores do clandestino Movimento Anticolonial (MAC), que reunia patriotas oriundos das diversas colónias portuguesas.

Neto voltou ao seu País, com a mulher, Maria Eugénia, e o filho de tenra idade, em 30 de Dezembro de 1959. Ocupou, então, a chefia do MPLA em território angolano e passou a exercer a medicina entre os seus compatriotas. Muitos membros do Movimento tinham sido forçados ao exílio nos anos que antecederam o seu regresso à Angola, tendo estabelecido um quartel-general próprio em Conacry, na independente República da Guiné, donde podiam informar um mundo ainda em larga medida ignorante da situação em Angola.

Sucederam-se novas prisões em Julho de 1959, incluindo a de Ilídio Machado, o primeiro presidente do MPLA, um dos réus do célebre julgamento dos Cinquenta, julgamento militar secreto em que foram aplicadas severas penas à destacados militantes do MPLA, alguns dos quais foram julgados na ausência, dado que haviam já optado pelo exílio.

Em 8 de Junho de 1960, o director da PIDE veio pessoalmente prender Neto no seu Consultório em Luanda. O que se seguiu foi um exemplo típico da brutalidade assassina praticada pelas autoridades fascistas. Uma manifestação pacífica realizada na aldeia natal de Neto em protesto contra a sua prisão foi recebida pelas balas da polícia. Trinta mortos e duzentos feridos foi o balanço do que passou a designar-se pelo Massacre de Icolo e Bengo.

Receando as consequências que podiam advir da sua presença em Angola, mesmo encontrando-se preso, os colonialistas transferiram Neto para uma prisão de Lisboa e, mais tarde enviaram-no para Cabo Verde, para Santo Antão e, depois para Santiago, onde continuou a exercer a medicina sob constante vigilância política. Foi, durante este período, eleito Presidente Honorário do MPLA.

Na altura que mereceram as honras das primeiras páginas dos jornais as notícias da captura, no oceano Atlântico, de um navio português, o Santa Maria, por um grupo de democratas portugueses chefiado por Henrique Galvão, ex-funcionário colonial que acabava de escapar à prisão em Portugal! E que havia denunciado a existência de trabalhos forçados em Angola num fulminante relatório escrito em 1961. Correu o boato de que o navio rumava à Luanda, boato esse que levou à capital angolana grande número de jornalistas estrangeiros. Os militantes do MPLA que operavam clandestinamente em Luanda decidiram fazer coincidir a sua planeada acção para libertar os prisioneiros políticos com a presença desses jornalistas, no intuito de atrair as atenções do mundo para a dolorosa operação ao domínio português na colónia de Angola.

Puseram o seu plano em prática. As primeiras horas do dia 4 de Fevereiro de 1961, as prisões de Luanda foram assaltadas por homens munidos de catanas armas de fogo, algumas das quais capturadas durante um ataque realizado antes contra um Jeep da polícia. Se bem que os assaltantes não tivessem conseguido os seus intentos, este acto de coragem dirigido contra os baluartes da opressão foi a primeira salva da luta armada que alastraria pelo território angolano, conduzida pela determinação de homens e mulheres preparados para superar todas as dificuldades e que, neste momento, já dura há mais tempo do que qualquer luta armada em África.

À esta explosão sucedeu uma repressão brutal. Bombardearam-se aldeias, e aqueles habitantes que conseguiram fugir foram metralhados e atacados com napalm. O número total das vítimas tem sido calculado entre vinte e trinta mil, mas pode muito bem ter sido superior, dado que as autoridades coloniais nunca se preocuparam com manter um recenseamento exacto da população africana. Espalhando o terror, as autoridades fascistas mataram e mataram recorrendo a métodos tão horrendos como o agrupar pessoas e passar-lhes um bulldozer por cima. Nas áreas urbanas, a sua acção tinha por objectivo a liquidação dos africanos instruídos, os ditos assimilados, receando que estes elementos assumissem a direcção das massas.

Algumas fotografias conseguiram chegar à imprensa estrangeira, de entre as quais merece especial referência uma que foi inserta em diversos jornais (por exemplo, no Afrique Action, semanário que se publica em Tunes). Nessa fotografia, um grupo de jovens soldados portugueses sorriam para a câmara, segurando um deles uma estaca em que foi espetada a cabeça de um angolano. O horror transmitido por esta fotografia despertou muitas consciências para os crimes nefandos que se perpetravam em Angola. Foi precisamente por mostrar esta fotografia a alguns amigos em Santiago (Cabo Verde) que Neto foi preso na cidade da Praia e transferido depois para a prisão de Aljube em Lisboa aonde deu entrada em 17 de Outubro de 1961.

FOTO: Acervo MPLA/Divulgação

Acima de tudo, o MPLA lançou uma implacável campanha em prol da sua libertação, apelando para a solidariedade mundial para com Neto e todos os prisioneiros políticos angolanos.

Sob esta forte pressão, as autoridades fascistas viram-se obrigadas a libertar Neto em 1962, fixando residência em Portugal. Todavia, pouco tempo depois da saída da prisão, a eficaz organização do MPLA pôs em prática um plano de evasão e Neto saiu clandestinamente de Portugal com a mulher e os filhos pequenos, chegando a Léopoldville (Kinshasa), onde o MPLA tinha ao tempo a sua sede exterior, em Julho de 1962. Em Dezembro desse ano, foi eleito presidente do MPLA durante a Conferência Nacional do Movimento.

Agostinho Neto na África de expressão portuguesa é comparável à Léopold Senghor na África de expressão francesa.

Presidente Neto lança-se numa intensa actividade desde 1963, já eleito Presidente do MPLA, quer no interior, quer no exterior do País. Dirigiu pessoalmente as relações diplomáticas do Movimento, podendo assim visitar numerosos países e contactar grandes dirigentes revolucionários que nele reconheceram sempre o guia esclarecido de um povo heróico e generoso, que travava uma guerra justa pela independência nacional, pela Democracia e pelo Progresso Social.

Com a “Revolução dos Cravos” em Portugal e a derrocada do regime fascista de Salazar, continuado por Marcelo Caetano, em 25 de Abril de 1974, o MPLA considerou reunidas as condições mínimas indispensáveis, quer a nível interno, quer a nível externo, para assinar um acordo de cessar-fogo com o Governo Português, o que veio a acontecer em Outubro do mesmo ano.

Presidente Neto regressou à Luanda no dia 4 de Fevereiro de 1975, sendo alvo da mais grandiosa manifestação popular de que há memória em Angola. Dirige, pessoalmente, a partir desse momento toda a acção contra as múltiplas tentativas de impedir a independência de Angola, proclamando a Resistência Popular Generalizada.

E a 11 de Novembro de 1975, após 14 anos de dura luta contra o colonialismo e o imperialismo, o Povo Angolano proclamou pela voz do Presidente Neto a independência Nacional, objectivo pelo qual deram a vida tantos e tão dignos filhos da Pátria Angolana, tendo sido nessa altura investido no cargo de Presidente da República Popular de Angola.

Ao intervir no acto da proclamação da Independência, o Presidente Neto sintetizou claramente quais as meta e meios para as materializar, definindo como objectivo estratégico a construção de uma nova sociedade sem exploradores nem explorados.

O Processo de Reconstrução Nacional nos domínios político, económico e social com vista à melhoria das condições de vida de todo o Povo Angolano, a concretização das suas aspirações mais legitimas, tornou-se então a preocupação fundamental da direcção do País, que firmemente aponta como facto decisivo o papel do trabalho de todo o Povo na criação das bases materiais e técnicas para a construção do Socialismo. Em Dezembro de 1977, funda-se então o Partido de Vanguarda, o MPLA – Partido do Trabalho.

A figura de Neto, como militante total, corajoso revolucionário e estadista eminente não se limita às fronteiras de Angola. Ela projecta-se no contexto africano e mundial, onde a sua prática e o seu exemplo servem de impulso à luta dos Povos que, no Mundo, estão ainda submetidos à humilhação, ao obscurantismo e à exploração.

Assim é que, nas tribunas internacionais a voz de Neto nunca deixou de denunciar as situações de dominação colonial, neocolonial e imperialista, pela Libertação Nacional, a favor da independência total dos Povos, pelo estabelecimento de relações justas entre os países e pela manutenção da paz como elemento indispensável ao desenvolvimento das nações.

Agostinho Neto foi também um esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser, antes de mais, a expressão viva das aspirações dos oprimidos, armas para a denúncia de situações injustas, instrumento para a reconstrução da nova vida.

A atribuição do Prémio Lótus, em 1970, pela Conferência dos Escritores Afro-Asiáticos e outras distinções atribuídas a algumas das suas obras de poesia, são mais um reconhecimento internacional dos seus méritos neste domínio.

Também na República Popular de Angola, a eleição de Neto como Presidente da União dos Escritores Angolanos cuja proclamação assinou, traduz a justa admiração dos homens de letra do jovem País, pelo seu mais destacado membro, que tão magistralmente encarou a “SAGRADA ESPERANÇA” de todo o povo

 

Obra literária

Fonte: www2.ebonet.net –

Poesia
1957 Quatro Poemas de Agostinho Neto, Póvoa do Varzim, e.a.
1961 Poemas, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império
1974 Sagrada Esperança, Lisboa, Sá da Costa (inclui os poemas dos dois primeiros livros)
1982 A Renúncia Impossível, Luanda, INALD (edição póstuma)
Política
1974 – Quem é o inimigo… qual é o nosso objectivo?
1976 – Destruir o velho para construir o novo
1980 – Ainda o meu sonho
Fonte: pt.wikipedia.org

Poemas

Voz do sangue
Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue
Ó negro esfarrapado do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South
Ó negro de África
negros de todo o mundo
eu junto ao vosso canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.
Eu vos acompanho
pelas  emaranhadas áfricas
do nosso Rumo
Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos.
(A renúncia impossível)

Quitandeira
A quitanda.
Muito sol
e a quitandeira à sombra
da mulemba.
– Laranja, minha senhora,
laranjinha boa!
A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.
A quitandeira
que vende fruta
vende-se.
– Minha senhora
laranja, laranjinha boa!
Compra laranja doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.
Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa
que não abriu
princípio impelido ainda para um início.
Laranja, minha senhora!
Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu já não choro.
E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.
Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
à alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.
Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.
Tudo tenho dado.
Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.
Agora vendo-me eu própria.
– Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
– sangue.
Talvez vendendo-me
eu me possua.
– Compra laranjas!
(Sagrada esperança)

 


Mussunda amigo
Para aqui estou eu
Mussunda amigo
Para aqui estou eu
Contigo
Com a firme vitória da tua alegria
e da tua consciência
O ió kalunga ua mu bangele!
O ió kalunga ua mu bangele-lé-leleé…
Lembras-te?
Da tristeza daqueles tempos
em que íamos
comprar mangas
e lastimar o destino
das mulheres da Funda
dos nossos cantos de lamento
dos nossos desesperos
e das nuvens dos nossos olhos
Lembras-te?
Para aqui estou eu
Mussunda amigo
A vida a ti a devo
à mesma dedicação ao mesmo amor
com que me salvaste do abraço
da jibóia
à tua força
que transforma os destinos dos homens
A ti Mussunda amigo
a ti devo a vida
E escrevo versos que não entendes
compreendes a minha angústia?
Para aqui estou eu
Mussunda amigo
escrevendo versos que tu não entendes
Não era isto
o que nós queríamos, bem sei
Mas no espírito e na inteligência
nós somos!
Nós somos
Mussunda amigo
Nós somos
Inseparáveis
e caminhando ainda para o nosso sonho
No meu caminho
e no teu caminho
os corações batem ritmos
de noites fogueirentas
os pés dançam sobre palcos
de místicas tropicais
Os sons não se apagam dos ouvidos
O ió kalunga ua mu bangele…
Nós somos!
(Sagrada esperança)

Contratados
Longa fila de carregadores
domina a estrada
com os passos rápidos
Sobre o dorso
levam pesadas cargas
Vão
olhares longínquos
corações medrosos
braços fortes
sorrisos profundos como águas profundas
Largos meses os separam dos seus
e vão cheios de saudades
e de receio
mas cantam
Fatigados
esgotados de trabalhos
mas cantam
Cheios de injustiças
calados no imo das suas almas
e cantam
Com gritos de protesto
mergulhados nas lágrimas do coração
e cantam
Lá vão
perdem-se na distância
na distância se perdem os seus cantos tristes
Ah!
eles cantam…
(Sagrada esperança)
Aspiração
Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas
Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar
ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos
Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida
E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado
Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco
Ainda a minha vida
oferecida à Vida
ainda o meu desejo
Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer
E nas sanzalas
nas casas
no subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda
O meu desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.
(Sagrada esperança)

Poesia Africana
Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braços erguidos
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas
Poesia africana
Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha dos olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa
No céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marimbas
Poesia africana
E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone
Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.
(No reino de Caliban II –  antologia
panorâmica de poesia africana de ex-
pressão portuguesa)

Fogo e ritmo
Sons de grilhetas nas estradas
cantos de pássaros
sob a verdura úmida das florestas
frescura na sinfonia adocicada
dos coqueirais
fogo
fogo no capim
fogo sobre o quente das chapas do Cayatte.
Caminhos largos
cheios de gente cheios de gente
em êxodo de toda a parte
caminhos largos para os horizontes fechados
mas caminhos
caminhos abertos por cima
da impossibilidade dos braços.
Fogueiras
dança
tamtam
ritmo
Ritmo na luz
ritmo na cor
ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços
ritmo nas unhas descarnadas
Mas ritmo
ritmo.
Ó vozes dolorosas de África!
(Sagrada esperança)

 


Noite
Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.
Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.
São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.
Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.
Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.
Também a noite é escura.
(Sagrada esperança)

Consciencialização
Medo no ar!
Em cada esquina
sentinelas vigilantes incendeiam olhares
em cada casa
se substituem apressadamente os fechos velhos
das portas
e em cada consciência
fervilha o temor de se ouvir a si mesma
A historia está a ser contada
de novo
Medo no ar!
Acontece que eu
homem humilde
ainda mais humilde na pele negra
me regresso África
para mim
com os olhos secos.
(Sagrada esperança)

Civilização ocidental
Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa
Os farrapos completam
a paisagem íntima
O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante
Depois as doze horas de trabalho
Escravo
Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra
A velhice vem cedo
Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.
(Sagrada esperança)

Adeus à hora da largada
Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis
Mas a vida
matou em mim essa mística esperança
Eu já não espero
sou aquele por quem se espera
Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida
Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos
Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura
Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.
Foto em destaque: Imagem retirada do site Lusofonia Poética

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