“Alguém nos ajude, Lázaro, a entender!”

“Alguém nos ajude, Lázaro, a entender!”

A classe C era formada por 108 milhões de brasileiros, 54% da população, que gastavam R$ 1,17 trilhão por ano

"Alguém nos ajude, Lázaro, a entender!"

Por Ana Paula Lisboa Do O Globo

O álbum “Nó na orelha”, lançado em 2011, ainda ecoava alto nos ouvidos, e esse deve ter sido o CD que mais ouvi na vida. Tanto que no fim de 2012 fui ao Vivo Rio assistir a Criolo e Ney Matogrosso cantarem “Freguês da meia-noite” e, não satisfeita, em janeiro de 2013 lá estava eu no Circo Voador cantando “Não existe amor em SP” mais uma vez. Se você pode se dar alguma coisa de presente, se dê um show.

Em 11 de março de 2013, uma profecia foi lançada: era a estreia da oitava temporada do programa “Espelho”, que está no ar no Canal Brasil desde 2006 até hoje, apresentado e dirigido por Lázaro Ramos.

Aquela entrevista, classificada por muitos alguns meses depois como ininteligível, me trouxe vinte e quatro minutos e quarenta e dois segundos de puro entendimento quando eu passeava pelo YouTube uns meses atrás. Epifania que só o distanciamento temporal pode dar.

Criolo logo no início fala de como o rap com ele foi um lugar para se sentir pertencente, como foi pego nos braços pelo movimento. Ele desmistifica a meritocracia, classificando sua trajetória como “uma oportunidade” depois de 20 anos de carreira.

“A gente nunca desiste do que ama, mas transformando o amor e a forma de se relacionar com ele.” Como eu não entendi isso antes?

Duas perguntas, pra mim, são centrais na entrevista: na primeira, Lázaro questiona a relação do entrevistado com as comunidades e coletivos. Criolo então descreve projetos culturais de territórios populares e como eles são decisivos para a transformação dentro das periferias. A arte como algo que acalenta os sentidos, mas que também traz soluções na prática, “não devaneios”.

Hoje faz todo sentido pensar que é mesmo uma lástima que o Ministério da Cultura seja atualmente só uma moeda de troca. Da mesma forma, a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro abandonou pontos primordiais para diminuir desigualdades, como a territorialização do orçamento. Mas como falar em orçamento com o não pagamento do Edital de Fomentos às Artes de 2016 e a abertura de um novo edital no último dia 8 de julho, com premiação de R$ 8 mil? Fazer cultura, atuando na ponta, modificando territórios populares, com OITO MIL REAIS!

Realmente algumas pessoas ainda não entenderam nada.

“Alguém nos ajude, Lázaro, a entender!”

Na segunda pergunta central, o apresentador questiona Criolo sobre o “assunto do momento”: a ascensão da classe C. E o rapper responde:

“O que é a ascensão da classe C? É tipo leite que a gente comprava, e aí tem o tipo A, da fazenda? A gente já ficou numa caixinha de novo. É dinheiro? Ascensão da classe C é dinheiro? C de quê, de nota C, que você não tirou nem A nem B? Tem que dar um ou dois passinhos atrás pra… A alma flutua. O corpo precisa de alimento. Se não tem leite, a criança chora. Dependendo do livro, uma arma, você compra pelo décimo do preço do livro. Que ascensão é essa? Alguém nos ajude, Lázaro, a entender. Porque senão a gente só vai reproduzir o que andam dizendo por aí. Mas a gente vê o rosto do nosso povo, e o nosso povo é nota A. A+.”

Criolo é um entrevistado que faz perguntas.

Naquele momento, a classe C era formada por 108 milhões de brasileiros, 54% da população, que gastavam R$ 1,17 trilhão por ano basicamente em viagens, eletrônicos, móveis para a casa (e shows). Desses, 75% eram negros e, ainda segundo o Data Popular, 68% dos jovens da classe C em 2013 haviam estudado mais que seus pais. A estimativa era que em 2023, dez anos mais tarde, 58% da população estivessem na classe C.

Corte seco.

2017: 14 milhões de desempregados, risco de o Brasil voltar ao Mapa da Fome, corrida por benefícios sociais, saques do FGTS, 60 milhões de brasileiros endividados, servidores do Estado do Rio de Janeiro em fila para receber cestas básicas, mais de quatro milhões de pessoas saíram da classe C para as classes D e E.

Criolo alertou sobre o carro popular comprado em oito anos em que 50% do valor eram imposto, alertou sobre a especulação imobiliária na linha de crédito e sobre o sonho da casa própria paga em 320 meses.

Era impossível entender a profecia porque estávamos nela. E nessa Roda da Fortuna que gira, e ela gira mesmo, só se manteve por cima quem já estava lá há gerações.

O que me salvou, e talvez a você também, foi fazer “a curvinha fora da estatística”. Junto com ela, a minha, e talvez também a sua, “completa ignorância e falta de habilidade em se adequar ao que está posto”. O que nos salva é ser um ninguém durante a maior parte da vida, um “encosto de porta em alguma pousada”.

Lázaro, entendi!

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