Filme de Lázaro Ramos apresenta ideia distópica de reparação

Em ano eleitoral, é preciso atenção a quem desconsidera processo de cotas raciais

Era semana do aniversário de Salvador e da pré-estreia do longa Medida Provisória, dirigido por Lázaro Ramos, com texto do espetáculo “Namíbia, não!”, de Aldri Anunciação. Ao mesmo tempo que me julgava, afinal, sou baiana assim como os idealizadores da produção audiovisual e nunca tinha assistido à peça teatral, compreendi que deveria ter sido tocada por essa história agora. Os tempos e processos de maturação e amor sobre nossas realidades e corpos são diferentes. Hoje, digiro e traduzo a partir do olhar racializado. E entendo que cabe a mim, e a nós, tocados pelo enfrentamento ao racismo, contribuir à reflexão dos nossos sobre qual ponto de atenção estamos.

Na plateia, rostos de pessoas de referência da luta antirracista. Paulo Rogério, publicitário, ao meu lado, conversava animado sobre as referências do filme às obras e produções marcantes para nós. Como a cena do personagem André no banheiro, e nossa conexão direta com a obra “Alma no Olho”, de Zózimo Bulbul, ou as cenas de amor de Capitu e Antonio (Taís Araújo e Alfred Enoch) e a semelhança com o longa “Orfeu”, estrelado por Toni Garrido e Patrícia França. Do meu outro lado, a atriz Mônica Santana, premiada pela sua peça “Isso Não é uma Mulata”.

E eu poderia seguir falando apenas da pré- estreia, que por si só já valeria um registro documental por reunir tantos heróis e heroínas do nosso tempo em diversas áreas (cultura, arte, ciência, comunicação, saúde, educação, religião), com objetivo comum de garantia ao direito de existir. Isso é o aquilombar-se que a narrativa nos traz. E, ao me transportar para o mundo distópico da Medida Provisória 1888, penso: impossível essa galera ser deportada.

Brincadeiras à parte, o filme nos traz boas questões e analogias: o artigo 150 do Código Penal que resguarda a inviolabilidade de domicílio na aplicação da medida e que só funciona em bairro de classe média alta, a simbologia óbvia do 1888, a personagem da Adriana Esteves se chamar Isabel, a lógica infundada de reparação a partir do argumento de que o Brasil não é o lugar de negros, e até que ponto nossos aliados antirracistas de melanina não acentuada estão dispostos a estar na linha de frente para garantir justiça racial.

Um jornalista que tenta noticiar os fatos, em seu blog, mostra também a fragilidade de um país que tem na mídia independente um pouco de respiro e espaço de garantia da memória por outras perspectivas. E tudo se mistura, real e ficcional. Viver no Brasil segue desafiante para os não brancos. O filme nos apresenta que mesmo quando negros alcançam posições sociais elevadas, a “melanina acentuada” chega primeiro. E parafraseando o filme: “Como é que há gente que ri disso? Como é que ainda seguimos neste ponto?”

Ponto positivo para a não representação da favela. Causa estranheza, mas é importante para não apresentar mais uma vez as narrativas sobre as violências que ceifam corpos negros pela justificativa da criminalização nestes territórios. Afinal, preto, em comunidade, sendo agredido numa sociedade como a nossa, acaba por ser banalizado. Mas e a preta doutora que mora em bairro de bacana? E o preto advogado? E o preto jornalista? Profissões estas dos personagens principais Capitu, Antonio e André (este último interpretado por Seu Jorge).

Outro ponto importante do filme é a luta pelo direito à educação. Estamos em ano de debate e revisão da lei 12.711/2012, que instituiu a adoção de ações afirmativas para ingresso nas universidades federais. Neste ano em que celebramos os dez anos dessa política fundamental para o acesso da população negra aos espaços de educação, precisamos estar ainda mais vigilantes por conta dos parlamentares aliados ao atual governo no Congresso Nacional e que consideram as cotas sociais como caminho e desconsideram o processo de, aí sim, reparação histórica, das cotas raciais.

Filme para pensarmos as eleições e a atenção aos absurdos. Seria tão utópico no Brasil de hoje, existir o Ministério da Devolução, com objetivo de deportar todas as pessoas negras, de melanina acentuada, para o continente africano? Talvez esse extremo não seja possível, mas, o que dizer sobre o cerceamento do nosso direito de ir e vir sem carteira de identidade ou a legitimação do Estado em monitorar nossas vidas? O desejo de Capitu de voltar em segurança para casa e unir a sua família e, ao mesmo tempo, o medo de Antonio, ao sair do prédio, sofrer violência e perder a chance de reencontrar a amada soa familiar?

Medida Provisória é um presente que reúne pessoas que ajudam a construir a historiografia negra contemporânea: Emicida, que nos mobiliza com suas canções e ousadia inventiva na Lab Fantasma, Maíra Azevedo, a Tia Má, que ocupa a internet e a TV com sua comunicação antirracista, Conceição Evaristo, que, pela escrita, inspira as mulheres negras a serem insubmissas. E, também, Hilton Cobra, gênio da arte, que em seu recente “Traga-me a cabeça de Lima Barreto” expôs a importância do debate sobre saúde mental da população negra e da nossa memória, maior tesouro e maior ferida do nosso povo.

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