Das tranças nagôs aos coquinhos, a pesquisadora Mari Santos, 41, abusava dos penteados quando era pequena. Porém, depois de férias na casa de uma tia, voltou com os cabelos curtos e alisados. “Ela não conseguia lidar com meu cabelo”, conta. Por sua vez, a redatora Joana Mendes, 36, também passou por esse processo de alisamento bem cedo: começou aos 9 anos e não parou até os 22.
Juntas, Mari e Joana escreveram o “Manual de Penteados para Crianças Negras” (ed. Companhia das Letrinhas), um livro que reúne penteados para o público infantil e a história de cada um deles. O lançamento será no sábado (9), na Bienal do Livro de São Paulo, e, livrarias, a obra, publicada pelo selo infantil da Companhia das Letras, poderá ser encontrada a partir do dia 21 de julho.
“Esse livro representa o resgate da liberdade que eu tinha na infância. Entramos em um sistema de se encaixar em um padrão, de ter que domar o cabelo, de alisar”, afirma Mari.
“Quando eu era criança, teve um corte que ficou bastante famoso chamado asa-delta, que todos os menininhos usavam por causa da Malhação. Mas você não via as crianças pretas usando porque é um outro formato de cabelo, é outra forma. E não existiam referências para elas. A ideia deste livro partiu desse questionamento”, diz.
As autoras se conheceram, lembra Joana, em uma agência de publicidade em que ambas trabalhavam como diretoras criativas. “Uma pessoa conhecida em comum nos apresentou, já que são poucas as pessoas negras em ambientes corporativos como aquele. Nos sentamos em um café, e a Mari já me contou que tinha vontade de fazer um projeto como esse”, conta a redatora.
O projeto não encontrou dificuldades para se viabilizar —pelo contrário, foi aprovado na primeira editora em que as autoras apresentaram a ideia em 2019. O que demonstra, diz Mari, o interesse pelo tema e uma geração mais nova e mais preparada para lidar com esses assuntos.
“Tenho muitas crianças pretas no meu convívio, sobrinha, filhos dos meus primos, de amigos. Vejo uma geração que é um reflexo dos pais, que estavam na mesma busca de encontrar suas raízes, saber de onde vem, encontrar sua negritude. Estamos buscando, aos tropeções, saber onde está a nossa história. E tudo está muito baseado na oralidade. Então a ideia deste livro é trazer mais inclusão, impulsionar essa geração que está vindo mais questionadora, que sabe da sua negritude.”
para os pais e cuidadores dessas crianças. Para interromper um ciclo de estupidez que cometeram, como alisar o cabelo porque não sabiam lidar com eles. Se essa informação tivesse sido difundida, talvez não teríamos os problemas de autoestima que temos hoje”, afirma Mari.
“Criamos um projeto para as crianças. E, de certa forma, estamos compensando também as crianças que fomos.”
“Se minha mãe tivesse um manual como esse, talvez ela tivesse tido recursos para lidar com o dia que cheguei da escola triste dizendo que o cabelo das meninas chegava até a bunda e o meu não”, relembra Joana. “Talvez ela respondesse: ‘Vou te levar para trançar o cabelo e o seu vai chegar nesse comprimento também'”, diz a autora.
Um mundo para novas texturas e cores –e sem gênero
Assim que parou de alisar os cabelos, Joana se jogou em um mundo de novas cores, texturas e formas de lidar com os fios que até então ela desconhecia.
“É um processo muito difícil porque, quando você para de alisar o cabelo, não sabe como ele é e não acha cabeleireiro que corte do jeito que acha legal. Então fiz muitas experimentações: pintei de várias cores, fiquei careca, fiz tranças. Não passava muito tempo com o mesmo cabelo. Descobri que tem muitas, muitas perspectivas de um cabelo que está vivo”, conta.
Essas experiências pessoais ajudaram na concepção do livro. Mas o conteúdo, contam as autoras, veio de muito estudo. Desde que apresentaram o tema até a publicação, foi um ano e meio de pesquisa sobre penteados de diferentes países, informações em livros, em português e inglês, e de cursos com cabeleireiras.
A obra traz penteados que podem ser usados independentemente do gênero da criança. “Tivemos uma preocupação grande com isso”, conta Mari.
Por isso, foi importante trazer ilustrações —feitas pela designer Flávia Borges— com representação de garotos nos desenhos.
“Geralmente, a opção que meninos negros tinham era o cabelo raspado, durante muitos anos foi e ainda é assim”, aponta Joana.
“Filmes como ‘Pantera Negra’ mudaram essa representação e trouxeram mais possibilidades. Então também tem, no livro, esse convite para que pais e cuidadores pensem que existem mais opções do que o cabelo raspado —que é, de certo modo, uma forma de apagamento da nossa história”.