Alvo de injúria racial e assédio, agente de viagens ouviu colega desejar volta da escravidão

Eunice de Oliveira, de 30 anos, se disse ‘paralisada’ e relata não ter recebido o suporte de chefes próprios; colega foi demitido

Por Johanns Eller, Do O Globo

Ilustração toda em azul de uma mulher, de lábios carnudos e cabelo black.
Agressor de Eunice lhe disse queria ‘a volta da escravidão’ (Foto: Ilustração Gabriel Benedito)

A agente de viagens Eunice Cides de Oliveira, de 30 anos, está na segunda licença médica desde que foi vítima de um episódio de injúria racial e assédio sexual no ambiente de trabalho, no dia 10 de setembro.

Segundo seu relato, um colega se aproximou dela durante o almoço, no escritório do resort Club Med , na Zona Sul do Rio, onde trabalham, dizendo desejar a volta da escravidão para que pudesse fazer “o que quisesse” com ela, simulando movimentos sexuais e chocando as testemunhas ao redor.

Diagnosticada com estresse pós-traumático, Eunice foi orientada a buscar uma psiquiatra e a tirar uma licença — ela deve retornar ao trabalho amanhã.

Ao avisar seu coordenador sobre o diagnóstico e a licença, recebeu, para seu espanto, mensagens ofensivas que teriam sido enviadas por engano para a própria funcionária, chamada por ele de “filha da puta” e “chata pra caralho”. O destinatário seria outro chefe.

Ao GLOBO, Eunice relatou omissão por parte da empresa. O último contato teria ocorrido no dia 19, quando ela descreveu o episódio ao setor de recursos humanos, depois de procurar seu coordenador e o supervisor.

Em nota, o Club Med afirmou que o assediador foi demitido no mesmo dia.

No comunicado, a empresa confirmou ainda o afastamento do coordenador que encaminhou as mensagens ofensivas e repudiou “de forma veemente o racismo, bem como qualquer ato de discriminação”, descrevendo o episódio de injúria racial como “lamentável”.

O agressor está sendo investigado na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância por injúria racial. Já o coordenador, por injúria simples.

Em que momento você foi alvo de assédio e injúria?

Na copa, durante o almoço. Ele chegou já pegando no meu braço, dizendo que eu teria que fazer o que ele quisesse, que “não ia ter conversa”, e que queria “a volta da escravidão”. Foi horrível. O tempo todo ele ria como se fosse normal.

Havia outras pessoas na copa? Como reagiram?

Sim. Elas ficaram em choque. Ele continuou falando que eu ia ter que fazer o que ele quisesse e saiu rindo do local. Logo depois, eu saí, e fiquei paralisada. Ele ria e continuava, como se não estivesse nem aí para o que eu estava pensando.

Como a chefia se posicionou?

Tentei voltar ao trabalho, mas não conseguia mais me sentar à mesa. Quando cheguei, fui tomada por um desespero, com muita vontade de chorar, e tremia muito. Chamei meu coordenador, e saímos para que eu não desabasse na frente de todo mundo. Ele chamou o supervisor, fomos a uma sala reservada, e ambos disseram que ele era muito brincalhão, que havia sido uma brincadeira de mau gosto. Em seguida, falaram que a gente teria que conversar com ele ( o assediador ), enquanto eu chorava, desesperada, na sala. Disse que não queria conversar com ele. Não sei nem como reagiria na frente dele, nem o que falar com ele.

Diante da sua negativa, o que foi feito?

Meus chefes disseram que falariam com ele. No dia seguinte, o coordenador disse que meus problemas pessoais não deveriam interferir no trabalho. Na quinta-feira ( dois dias após o episódio ), trabalhei normalmente, mas fui à psicóloga, emergencialmente, e fui orientada a não ir mais ao trabalho e a buscar uma psiquiatra. Ali foi constatado o estresse pós-traumático. Na sexta-feira, eu contei ao coordenador sobre minha ida à psicóloga, que estava com estresse pós-traumático e provavelmente iria tomar remédios e ficar em casa durante algum tempo. Assim que a gente terminou a ligação, ele mandou áudios para o meu celular ( via WhatsApp ) e uma mensagem escrita, “filha da puta, chata pra caralho”. Ele, na verdade, ia mandar para o meu supervisor. Nos áudios, ele dizia que não acreditava que eu estava com estresse pós-traumático, que estava enchendo o saco dele. Aquilo acabou comigo emocionalmente. Já estava abalada. Quando ouvi isso do meu coordenador, que eu achava estar ao meu lado, desabei.

Ao se dar conta do erro, ele apagou as mensagens?

Sim, mas deu tempo de registrar e mandar para o meu advogado. Depois ele apagou as mensagens e me ligou várias vezes. Fui orientada pela minha defesa a não atendê-lo.

Foi a primeira vez que o seu colega a assediou e ofendeu?

Em relação a mim, sim. Eu tenho pouco tempo de empresa. Entrei como temporária em outubro passado e fui efetivada em maio. Nos encontrávamos na copa, no corredor, na festa da empresa. Como ele é muito comunicativo, falava comigo tranquilamente sobre diversos assuntos. Nunca tinha chegado a esse ponto. Mas sei de funcionárias que não falavam com ele por conta de algum tipo de fala com intuitos sexuais.

Então os assédios já eram de ciência de outras pessoas?

Pelo menos quatro mulheres já haviam tomado a atitude de não falar com ele.

Como decidiu vir a público e denunciar?

A luta é diária para o negro e as mulheres negras. O que aconteceu comigo é uma situação de racismo, injúria racial e assédio. As mulheres negras sofrem principalmente por ter o corpo sensualizado e sexualizado por muitos. Algumas pessoas se sentem no direito de falar as coisas que esse cara falou para mim. Tenho um filho de 9 anos, também negro, e quero que ele cresça e aprenda que deve lutar e não deixar impunes situações como essa. Quero incentivar ( o ato de denunciar ) porque isso pode acontecer com outras pessoas. É o principal motivo pelo qual decidi lutar.

+ sobre o tema

Conectas cobra apuração rígida de mortes provocadas por ação da PM

Operação em Paraisópolis evidencia descaso da segurança pública com...

Pandemia amplia canais para denunciar violência doméstica e buscar ajuda

Entre as consequências mais graves do isolamento social, medida...

para lembrar

Intervir em briga de casal pode salvar vida, diz juíza

A advogada Tatiane Spitzner, 29, foi encontrada morta no...

Uma vida inteira pelo fim da violência contra a mulher: A luta de Jacira Melo

Diretora do Instituto Patrícia Galvão defende acesso à informação...

Projeto de hip-hop aborda violência contra mulher indígena

 Com a proposta de estimular discussão sobre temáticas socioculturais...
spot_imgspot_img

Coisa de mulherzinha

Uma sensação crescente de indignação sobre o significado de ser mulher num país como o nosso tomou conta de mim ao longo de março. No chamado "mês...

A Justiça tem nome de mulher?

Dez anos. Uma década. Esse foi o tempo que Ana Paula Oliveira esperou para testemunhar o julgamento sobre o assassinato de seu filho, o jovem Johnatha...

Dois terços das mulheres assassinadas com armas de fogo são negras

São negras 68,3% das mulheres assassinadas com armas de fogo no Brasil, segundo a pesquisa O Papel da Arma de Fogo na Violência Contra...
-+=