Ambulante foi preso após reconhecimento irregular por WhatsApp

Em depoimento, investigador da Polícia Civil que o prendeu disse que mandou foto através do aplicativo para a esposa, vítima de um assalto em agosto de 2016. Procedimento é irregular, dizem especialistas

por Kaique Dalapola no Ponte Jornalismo

Em depoimento à Polícia Civil, o investigador de polícia Carlos Antônio Correia Filho declarou que o reconhecimento do vendedor ambulante Wilson Alberto Rosa, de 32 anos, preso em 13 de janeiro, foi feito por meio de uma foto enviada pelo WhatsApp à esposa, vítima de um assalto em agosto de 2016.

O investigador, que atua no 100º DP (Distrito policial), no Jardim Herculano, Zona Sul de São Paulo, contou à Polícia Civil que “logrou êxito em localizar um indivíduo com as mesmas características” descritas pela sua esposa como o autor do crime. Correia disse ainda que abordou Wilson e, “sem o conhecimento do suspeito, enviou uma foto para a vítima, sendo que a mesma o reconheceu”. O investigador, então, levou o ambulante ao DP onde atua para que a esposa fizesse o reconhecimento formal. Em seguida, Wilson foi preso.

De acordo com o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos), o reconhecimento de Wilson foi ilegal, porque o envio da imagem para a esposa “acabou viciando” o procedimento. “O fato de o policial ter enviado uma foto à esposa foi um induzimento para que ela reconhecesse. Isso contraria o artigo 226 do Código de Processo Penal, que trata do procedimento para o reconhecimento”, conta Ariel. “Primeiro a vítima na delegacia deve descrever quem é o suspeito. Depois, ocorre o processo de reconhecimento, colocando o suspeito no meio de mais dois ou três que não sejam suspeitos. Mas, como já havia mandado uma foto, o processo ficou viciado. Descumpriu-se a lei”, explica.

O advogado criminalista José Roberto Leal também vê ilegalidade no processo, no entanto, diz que reconhecimentos feitos de forma irregular são comuns em São Paulo. “Eu não conheço nenhuma delegacia em São Paulo que faça como a lei manda. É muito comum ter esse tipo de reconhecimento, que não é previsto em lei”, conta.

Ariel destaca, ainda, que “é bastante suspeito um policial atuar na apuração de um caso que envolve alguém da família“. O membro do Condepe diz que o policial deveria se isentar de participar da investigação do caso de assalto à sua esposa, por estar envolvido emocionalmente com o caso. “Deve-se se buscar por justiça, não por vingança.”

Wilson vendia bala no cruzamento da avenida Ibirapuera com a rua Pedro de Toledo. Foto: Reprodução/Google Maps

Residência fixa

A prisão preventiva do vendedor ambulante Wilson foi decretada com base no Inquérito Policial (IP) assinado pelo delegado Alfredo Pinto de Souza, no dia 16 de janeiro. O documento destaca principalmente que o ambulante não possui residência fixa e é “desconhecido no local” onde mora. Por isso, “poderá fugir prejudicando a instrução criminal e aplicação da lei penal”.

As informações foram fornecidas pelo carcereiro policial Igor André Santos Machado, do 100º DP, que disse ter ido onde Wilson afirmou que reside, no Jardim Iporã, bairro próximo ao Jardim Herplin, extremo da Zona Sul de São Paulo. O policial contou que constatou, após entrevistas, que Wilson é desconhecido no local.

O policial Machado é parceiro do investigador Correia, marido da vítima do roubo. Em suas declarações à Polícia Civil, os dois disseram que estavam juntos quando abordaram o vendedor ambulante na avenida Ibirapuera.

No dia 27 de janeiro, a reportagem esteve na Viela das Flores, uma entrada da rua Forte de Trindade, no Jardim Iporã, onde o ambulante reside, e conversou com alguns moradores do bairro. Eles disseram conhecer Wilson e confirmaram que ele mora na mesma casa, no final da viela, “há alguns anos”.

No inquérito, o policial Machado afirmou que esteve na casa 1 da viela, pois seria onde Wilson informou que morava, e falou com outra pessoa, que teria afirmado ser moradora do local há dois anos e desconhecer o ambulante. A reportagem foi nessa mesma residência, mas não localizou ninguém.

A esposa do vendedor ambulante, Leandra da Silva, explicou que eles não moram na casa 1, e sim em uma residência sem número, no fundo da Viela das Flores. Os moradores do local não se importam com a numeração das casas, pois todas correspondências chegam em uma mercearia que fica a alguns metros da entrada da viela.

Wilson mora em um barraco no extremo da Zona Sul de São Paulo. Foto: Kaique Dalapola/Ponte Jornalismo

 

Na casa onde Wilson mora, construída com tijolos à vista e madeirite, a água e a energia elétrica chegam de forma clandestina. Os três cômodos improvisados acolhem Wilson, Leandra e as três crianças filhas do casal – a do meio, de 11 anos, é autista.

Uma moradora da rua Forte de Trindade, que não quis se identificar, contou que viu o momento em que policiais civis procuraram por Wilson, e tentou, juntamente com o marido, levar as autoridades à casa do ambulante, mas eles recusaram. “Os policiais vieram aqui, ficaram alguns minutos procurando pelo Wilson. Eu falei que conhecia e podia levar lá na casa dele. Mas eles [policiais] disseram que não precisava, e foram embora.”

Rosemeire Rodrigues, de 36 anos, dona da mercearia ponto de referência do local, onde chegam as correspondências das casas da Viela das Flores, disse não ter visto nenhum policial pelo bairro e afirmou desconhecer as duas pessoas citadas no inquérito como moradoras do bairro. Em 10 minutos que a reportagem estava na mercearia, pelo menos três pessoas perguntaram à Leandra sobre a situação do ambulante.

A reportagem também esteve, na última quinta-feira (2/2), no cruzamento da avenida Ibirapuera com a rua Pedro de Toledo, e conversou com um funcionário de um estacionamento no local, que afirmou que o ambulante trabalhava há anos no mesmo ponto e nunca deixou de ir. “Ele estava aí todo dia. Chegava cedinho. Passava nos carros oferecendo bala e sempre pedia para eu deixar um real.”

Família diz que ambulante trabalhava há quatro anos no mesmo ponto. Foto: Reprodução/Facebook

Outro lado

Em contato telefônico, a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), administrada pela empresa CDN Comunicação, disse que “não há nada de ilegal em enviar fotos pelo WhatsApp. Ele [o Wilson] não foi exposto. Foi só um recurso encontrado pelos policiais no momento“. A pasta disse que não vai emitir uma nota oficial sobre os questionamentos da reportagem acerca da visita dos policiais ao bairro onde Wilson mora e da foto tirada do ambulante. A assessoria informou que mantém a seguinte nota, enviada em 23 de janeiro:

“A Polícia Civil informa que Wilson Alberto Rosa foi preso após cumprimento de prisão temporária por investigação feita pela equipe do 100º DP. A equipe localizou o homem, que cometeu um roubo na Av. Ibirapuera em agosto do ano passado. A Seccional da área afirma que o procurado foi algemado enquanto aguardava a chegada da viatura, mas não foi preso à grade da avenida. Na delegacia, ele foi reconhecido pela vítima. Wilson foi encaminhado à carceragem do 77º DP. O inquérito foi encaminhado à Justiça, que acatou o pedido de conversão em prisão preventiva.”

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