Amor e Luta: A mulher negra que sempre fui e não sabia

Quem me conhece sabe das minhas dificuldades em escrever. Meu negócio é falar. Sempre tive muito receio em escrever sobre minha própria história, mesmo não sabendo o motivo. Porém, Maria Carolina de Jesus tem soprado veementemente em meu ouvido que o fizesse. Não sei se ficará bom, mas, faço e publicizo.

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Vinha no ônibus lendo o livro da SPM\PR “Mulheres Negras Contam sua História” e o primeiro texto traz a redação de uma companheira que faz parte do sindicato das trabalhadoras domésticas da Bahia. E ela trazia que luta e escreve para que jovens tenham um futuro diferente e pautado na dignidade. Fechei o livro e caminhei sobre a linha da minha própria vida.

Sou baiana, de Eunapólis, todavia, cresci em Tailândia, no estado do PA. Tenho hoje 25 anos e tive todo o conforto que os meus pais podiam me ofertar na primeira infância. Meu pai, um homem branco de olhos claros e cabelos escorridos trabalhava como gerente de serraria e por isso, tínhamos uma vida confortável. Só que aos finais de semana sempre tinha um churrasco em casa e meus pais sempre terminavam brigando. Vi minha mãe lutando com o meu pai várias vezes e os gritos eram atordoantes. Não sei como, mas, o meu pai começou a frenquentar o AA, que momentos de alegria poderia ver em minha casa. Só que não! Foi ai que ele, o meu pai, descobriu os cabarés da cidade. E para encurtar a história, ele saiu de casa, minha mãe após 17 anos como dona de casa, foi trabalhar como doméstica. Foram as primeiras visitas das necessidades em nossa porta.

Viemos a primeira vez para o ES. Moramos em um barraco que quando ventava, balançava todo. Eu, minha mãe e meu irmão, nem dormíamos de medo. Como foram difíceis aqueles anos. Sobrevivemos na base de muito trabalho de minha mãe em um supermercado. Um dia o telefone toca na casa de uma tia. O meu pai depois de quase dois anos sente saudades e pede que voltássemos. Largamos o pouco que tínhamos e fomos estrada a fora de rodoviária em rodoviária até chegar ao Pará novamente.

Meu pai não morava mais em uma casa de uma vila de serraria. Agora ele tinha uma casa no melhor bairro da cidade. E como ela era linda e grande! Nada se parecia com o barraco que ameaçava cair no ES! Não durou uma semana para que o meu pai nos abandonasse com R$ 14, 00, um frango na geladeira e a promessa de voltar no fim de semana. Dia esse que após 13 anos não chegou… A partir daí vieram as complicações de fato. Minha mãe cai em depressão, temos todos os móveis levados pela loja que não foi paga, a ex que meu pai vivia e era a dona da casa, passa a nos ameaçar de despejo e o fazia com frequência com a presença da polícia e o advogado alegou a minha mãe que o macho dela só saiu de casa por incompetência dela e a fome fazia parte de todo esse cenário. Para aliviar as dores estomacais, cozinhávamos mamão verde com sal em um fogareiro caseiro para durar mais um dia. Minha mãe até tentou voltar trabalhar como doméstica, só que não tinha forças. Eu e meu irmão assumimos as rédeas. Ele com quinze anos e eu doze. Lembro de um dia que ele se escondeu debaixo da cama para não ir trabalhar durante a madrugada. Levou um tremenda surra. Ele ajudante de padeiro e eu ajudante de cozinha de beira de estrada de um posto de gasolina. Não podia mais freqüentar a escola. Por este trabalho receberia R$ 20,00 semanais, uma refeição diária (essa que era levada e partilhada com a família) e várias cantadas de homens nojentos. Às vezes a minha chefe me liberava mais cedo para eu acompanhar o grupo de evangelização da igreja que fazíamos parte e às vezes me deixava ir à escola. Como era triste essas idas a escola! Nessa época eu tinha SOMENTE um calçado cheio de prego e que me fazia andar quicando por conta disso. Isso quando não quebrava mais alguma parte dele no caminho. Para que este fato não acontecesse, ia descalça para a escola e no portão da escola o colocava e saia quicando pátio a fora. As roupas eram de doação, então, sempre maior do que meu número. Parecia que eu tinha uns 40 anos!

A casa foi tomada e precisamos nos mudar. Com a ajuda da família fomos morar com uma tia na Bahia. Que alivio! Minha mãe trabalhava em casa de família de segunda a segunda, dormindo no trampo por R$ 150, 00. Às vezes eu ia pra lá e pra ir aprendendo o ofício também. Eu e meu irmão já íamos pra escola novamente. Parti a vender bolo na rua com uma prima no horário vespertino. Nesse período o meu pai nos ligou uma única vez pra dizer que sentia saudades e nunca mais escutei a sua voz.

Como o dinheiro tava curto, mãe parte para a capital do ES para trabalhar na casa de família e logo depois caiu em depressão. Eu, com os meus quatorze anos, assumi a responsabilidade de tocar a história. Larguei os estudos, vim para cuidar dela e comecei a trabalhar como babá nos fins de semana. Depois fui contratada para ficar integralmente. Eu e minha patroa realizamos o acordo de me liberar para estudar em algum turno. No ano seguinte, após entrar em um projeto de indicação para uma escola da Prefeitura, pois, a escola pública do bairro nobre não me aceitou por alegar que eu era muito velha para a série e ainda queria estudar no turno diurno! Eu já tinha 15 anos e estava na 6ª serie. Ainda bem que não fui para essa escola. Fui para uma outra, onde os professores, logo no fim do primeiro bimestre me indicaram para um provão e adiantei uma série. Nem sabia o que estava acontecendo. Mas, o melhor ainda estar por vir. No último ano do fundamental realizei várias provas para escolas particulares. Sugestão de uma das professoras! Passei com louvor e bolsa em várias nas melhores escolas de Vitória. Pude escolher para onde queria ir e partir. Estudei e fui preparada para o vestibular. Mesmo sem saber para quê era isso. Continuava como babá e governanta de um apartamento e no início, com uma folga mensal.

Não me divertia, namorava ou qualquer coisa usual de uma jovem. Aliás, eu nem sabia o que era ser jovem. Não me sentia, não agia e nem imagina o que era ser isso na vida. Sempre saia com meus patrões para onde quer que fossem. Algumas vezes, as colegas de sala do fundamental me carregavam e como eu me sentia estranha perto delas. Elas tão vivas e intensas e eu assustada com o mundo. Um dia na escola de ensino médio uma garota perguntou se era verdade que eu trabalhava como babá e após confirmar, nunca mais falou comigo.

O meu cabelo vivia alisado e preso. Os meus cachos eram vergonha para mim… Era uma carga muito pesada. Em nada eu parecia com as meninas da escola. Sempre fiz amizade fácil e tava rodeada de gente, só que o meu forte era jogar com os meninos qualquer esporte que me colocasse a frente. Eu não me sentia pertencente a nada. Me sentia flutuante. Sem um espelho social para olhar e me enxergar.

Aos 20 anos no 3º ano do ensino médio, eu era a mais velha da turma. Vi uma matéria na TV com um grupo de assistentes sociais, pesquisei e realizei metade das provas nas faculdades particulares para tal profissão. Que fracasso! Até como suplente eu ficava ruim na classificação. Sai das cadeiras da frente e fui para a turma do fundão.

Minha rotina diária era trabalho e escola. Só! Mais nada! Da escola para o trabalho e do trabalho para a escola. Se me atrasava um pouco, o celular que ganhei para o trabalho, logo tocava. E mesmo com minha auto estima lá embaixo, passei no vestibular da Federal! Que dia mais feliz! A irmã de uma amiga ligou e eu sai atordoada pela rua tentado pegar um ônibus ou uma lan house para ver o meu nome classificado. Minha família fez tanta festa. Sem sabermos o que isso poderia significar, comemoramos!

UFES… o grande machado! Foi após romper com o espaço da universidade que as correntes foram cortadas. Depois de dois anos, num período que sai da casa que trabalhava e fui me sustentar sendo garçonete e voltar a casa da família, larguei o ofício de empregada doméstica e passei a ser bolsista de Extensão Universitária para receber R$ 360,00! Aos longos dos meus 22 anos eu pude me sentir jovem! Tinha tempo para pintar a universidade de povo. Logo fui fisgada pelo Movimento Negro e pude perceber o que era ser jovem, mulher e negra. Tomei consciência do que aconteceu e ocorre com os meus irmãos. Que quantas Neirieles estão limpando bunda de neném ou servindo mesas por ai sem perspectiva nenhuma de futuro. Que meu cabelo crespo é lindo e é como a música que gosto. Só serve com o volume alto! Foram 4 anos de muita peleja e aperto e diante disso, como ter outras mulheres negras, na mesma condição que você, faz com que o caminho fique mais suave. Compartilhamos as dores e alegrias daquela instituição. Individualmente a minha história poderia ser mais uma, porém, ela é o resultado do fruto de anos e anos da luta de meu povo. Devo isso a Aqualtune, a Carolina de Jesus, as Célias, Ivalnis, Zélias e Marias.

Hoje, fazendo parte do Fórum Estadual e Nacional da Juventude Negra e diante de toda a mobilização para o II ENJUNE, percebo que nós mulheres negras precisamos falar e escrever sobre a sua história para que outras jovens e mulheres se percebam como tais e se juntem a nós pelo fim das opressões.

Fonte:Blogueiras Negras

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