Geledés Instituto da Mulher Negra é uma organização da sociedade civil que atua para que os sistemas de ensino sejam espaços comprometidos com a aprendizagem de todas as pessoas, em particular da população negra. Nos debates sobre o Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034, desde a CONAE, estamos mobilizadas por metas e estratégias que enfrentem as desigualdades de raça, gênero e socioeconômicas; promovam a qualidade educacional e a superação das assimetrias raciais por meio de financiamento adequado; e valorizem as/os profissionais da educação, entre outros temas. Como parte desses compromissos, apresentamos a presente análise.
Ao comparar os documentos elaborados para a consolidação do Plano Nacional de Educação (PNE 2024-2034), a saber, a) o Documento de Referência da CONAE 2024, b) o PL 26.142/24 enviado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo e c) o Parecer do Relator Deputado Moses Rodrigues da Câmara dos Deputados referente ao PL 26.142/24, revela-se uma tensão e uma disputa explícita sobre a centralidade e a forma como as questões de raça, gênero, sexualidade e diversidade devem ser tratadas na política educacional brasileira. O Documento de Referência da CONAE apresenta a abordagem mais abrangente e enfática sobre esses temas, que são significativamente diluídos no Projeto de Lei (PL 2614/2024) apresentado pelo Poder Executivo e, então, reintroduzidos e contestados em uma série de emendas no Relatório do Relator (PRL).
Um processo que não considera os resultados da participação da sociedade, como os da CONAE 2024, demonstra problemas éticos, técnicos e políticos, especialmente em um contexto democrático. Primeiramente, há uma questão de legitimidade e representatividade, já que a CONAE, por ser uma instância participativa com diversas vozes da sociedade, reflete um consenso construído coletivamente. Ignorar suas conclusões é desconsiderar a vontade e as necessidades expressas por diferentes grupos sociais, minando a legitimidade do processo decisório e a representatividade das políticas públicas resultantes.
Em segundo lugar, a diluição da intencionalidade política é um problema ético. Quando termos explícitos e sensíveis, como “gênero”, “orientação sexual” e “racismo”, são omitidos de propostas legislativas, a força e o propósito das políticas de diversidade e equidade são enfraquecidos. Isso pode levar à despriorização dessas agendas na alocação de recursos e na implementação de ações sistêmicas, resultando em uma falha técnica em combater desigualdades e opressões históricas.
Adicionalmente, a invisibilização de grupos e desafios específicos é uma consequência ética e política grave. A ausência de pautas como sexualidade e identidade de gênero em documentos oficiais invisibiliza os desafios enfrentados por estudantes LGBTQIA+, por exemplo, que sofrem preconceito e têm maior risco de evasão escolar. Não nomear discriminações específicas impede uma análise interseccional completa das desigualdades, o que é eticamente e tecnicamente questionável, pois falha em reconhecer e abordar as vulnerabilidades de parcelas da população.
Por fim, a despolitização e a evitação de confronto ideológico, ao remover termos explícitos para evitar embates legislativos, comprometem a capacidade de um plano como o PNE de enfrentar de forma robusta e explícita as desigualdades e opressões na educação. Politicamente, isso representa um recuo no compromisso com a justiça social e a equidade, priorizando a conveniência política em detrimento da efetividade das políticas educacionais para os grupos mais vulneráveis.
1. Documento de Referência da CONAE
O documento demonstra uma preocupação explícita com as questões étnico-raciais, de gênero e de sexualidade, inserindo-as no quadro mais amplo da garantia da educação como direito humano, com justiça social, inclusão, equidade e respeito às diversidades. Termos como “diversidades (étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de deficiência, de altas habilidades ou superdotação, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras)” são recorrentemente mencionados como elementos a serem promovidos, respeitados e valorizados no próximo Plano Nacional de Educação (PNE). A necessidade de enfrentar todas as formas de discriminação e violência nos ambientes educacionais é destacada como um pilar para a construção de uma cultura democrática.
A questão étnico-racial recebe atenção considerável e relativamente detalhada em várias seções. Há menções específicas à educação escolar indígena e quilombola, reconhecendo suas particularidades e a necessidade de políticas específicas, como a formalização de territórios etnoeducacionais e a valorização de suas línguas e culturas. O combate ao racismo e a promoção de uma educação antirracista são citados como imperativos, e a necessidade de igualar a escolaridade média entre negros e não negros é um objetivo explícito referenciado. As questões de gênero e sexualidade também são mencionadas, com o documento propondo o combate ao sexismo, à misoginia, à LGBTQIAPN+fobia e a promoção do respeito à diversidade de gênero e orientação sexual. A presença de entidades representativas desses grupos no Fórum Nacional de Educação (FNE) também é um indicativo da inclusão dessas pautas na construção do documento.
Apesar da listagem conjunta dessas diferentes dimensões da diversidade e opressão, o documento não utiliza explicitamente o termo “interseccionalidade” nem aprofunda uma análise que explore sistematicamente como essas categorias se cruzam e produzem experiências únicas de desigualdade. Embora reconheça a existência de múltiplas formas de discriminação, a abordagem tende a tratar as questões étnico-raciais, de gênero e de sexualidade de forma um tanto segmentada ou como itens dentro de uma lista mais ampla de diversidades a serem consideradas. Falta uma análise mais robusta sobre como, por exemplo, o racismo e o sexismo se combinam para afetar mulheres negras de maneira específica, ou como a experiência de pessoas LGBTQIAPN+ indígenas difere da de outros grupos. A abordagem parece mais aditiva (combater racismo e sexismo e LGBTQIAPN+fobia) do que propriamente interseccional.
As questões étnico-raciais, de gênero e de sexualidade aparecem de forma estruturante dentro do Eixo III, intitulado “Educação, Direitos Humanos, Inclusão e Diversidade: Equidade e Justiça Social…”. Este eixo dedica-se especificamente a esses temas, e suas proposições buscam traduzir essas preocupações em ações concretas, como a implementação de políticas antirracistas, anti-LGBTQIAPN+fobia, anticapacitistas e a garantia de respeito aos direitos humanos como premissa. Nos demais eixos, essas questões surgem mais como temas pontuais a serem considerados para garantir a universalidade e a equidade, por exemplo, ao analisar dados de acesso e desigualdade, ao tratar de modalidades específicas como a educação indígena e quilombola, ou ao reforçar a necessidade geral de combate à discriminação. Embora importantes, não constituem necessariamente o eixo central de análise ou proposição em todos os demais eixos temáticos, como financiamento (Eixo VI) ou a articulação do SNE (Eixo I), ainda que as proposições do Eixo III visem a permear o plano como um todo.
Educação para as relações étnico-raciais no documento da CONAE
Com base no Documento Referência da CONAE 2024, a abordagem da educação para as relações étnico-raciais, o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, a educação antirracista e a equidade racial apresenta avanços importantes em termos de reconhecimento, mas também suscita questionamentos críticos quanto à profundidade e transversalidade. O documento insere explicitamente a questão étnico-racial no quadro mais amplo dos direitos humanos, da justiça social, da inclusão e da diversidade, o que representa um marco positivo, especialmente no contexto de retomada democrática. Há um reconhecimento das desigualdades que afetam particularmente estudantes negros, indígenas e quilombolas, e a necessidade de combatê-las é mencionada em diversos eixos, com destaque para o Eixo III. Propostas específicas, como a implementação estrutural de uma política educacional antirracista e a revisão de diretrizes curriculares para atender à diversidade étnico-racial, sinalizam intenções de mudança.
No entanto, uma análise crítica revela que, embora o tema seja nomeado, a profundidade com que o racismo e suas manifestações no sistema educacional são analisados poderia ser maior. Frequentemente, a questão étnico-racial é listada junto a outras diversidades, o que, embora importante para uma visão abrangente, corre o risco de diluir a especificidade e a centralidade do racismo na estruturação das desigualdades educacionais brasileiras. A transversalidade também parece limitada; apesar de menções pontuais em outros eixos, como na formação de professores ou na necessidade de superar desigualdades no acesso e permanência, a concentração temática no Eixo III pode indicar uma abordagem ainda setorializada, em vez de uma integração plena em todos os aspectos da política educacional – financiamento, gestão, avaliação, currículo e formação.
A implementação da Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, é abordada como necessária, inclusive com estratégias que preveem sua inclusão em materiais didáticos. Contudo, o documento não aprofunda uma análise crítica sobre os entraves históricos para a efetivação dessa lei nas últimas duas décadas, nem detalha mecanismos robustos para garantir sua aplicação para além da menção em diretrizes ou materiais, como formação continuada específica e massiva, monitoramento da sua implementação nas escolas e a criação de indicadores para tal. As estratégias propostas, embora relevantes, por vezes carecem de maior especificidade sobre como serão operacionalizadas e monitoradas para garantir que se traduzam em mudanças concretas nas práticas pedagógicas e na cultura escolar.
Desta forma, o Documento Referência da CONAE 2024 demonstra um compromisso discursivo com a educação antirracista e a equidade racial, alinhando-se a um contexto político de reconstrução e valorização dos direitos humanos e da diversidade, assim como reconhece as desigualdades e propõe ações. No entanto, a crítica reside na necessidade de aprofundar a análise do racismo, garantir uma transversalidade mais efetiva do tema em todas as políticas e detalhar estratégias mais específicas e mecanismos de monitoramento robustos para assegurar que o compromisso se materialize em transformações estruturais e práticas pedagógicas cotidianas no sistema educacional brasileiro, superando abordagens que possam permanecer apenas no nível da retórica ou de ações pontuais.
Análise geral das questões de diversidade no documento da CONAE
O Documento de Referência da CONAE 2024 foi o mais avançado e explícito na articulação das questões de equidade, diversidade, raça, gênero e sexualidade, em relação ao PL enviado pelo executivo e ao parecer do relator.
- Centralidade e abrangência: O tema é um pilar estruturante. O Eixo III é inteiramente dedicado a “Educação, Direitos Humanos, Inclusão e Diversidade: equidade e justiça social na garantia do direito à educação para todos e combate às diferentes e novas formas de desigualdade, discriminação e violência”.
- Diversidade e marcadores sociais: A valorização da diversidade é explicitamente detalhada em múltiplos marcadores, incluindo: “diversidades (étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de deficiência, de altas habilidades ou superdotação, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras)”.
- Linguagem de enfrentamento: O documento propõe ativamente o combate a fenômenos estruturais.
- Racismo e LGBTQIAPN+fobia: Propõe a “implementação de políticas específicas… de combate ao racismo, ao sexismo, ao capacitismo, à LGBTQIAPN+fobia, à discriminação social, cultural, religiosa, à prática de bullying e a outras formas de discriminação e de violências”.
- Política estrutural: O documento chega a propor a “Implementar estruturalmente uma política educacional antirracista, anti-LGBTQIAPN+fobia e anticapacitista no SNE”4.
- Intencionalidade: Direto e progressista, visando a institucionalizar o enfrentamento das desigualdades e das opressões históricas por meio de políticas de Estado explícitas e estruturais.
2. Projeto de Lei nº 2.614/2024 (PL do Executivo)
Com base no texto do Projeto de Lei nº 2.614, de 2024, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2024-2034, é possível realizar uma análise crítica sobre o tratamento das questões étnico-raciais, de gênero, de sexualidade e diversidade, que são abordadas com níveis de profundidade e estruturação muito díspares. O Plano demonstra uma preocupação significativa com a pauta étnico-racial, tratando-a tanto de forma estrutural quanto como um marcador de vulnerabilidade. Por outro lado, a pauta de gênero é tratada de maneira pontual e restrita, enquanto a dimensão da sexualidade e identidade de gênero é completamente omitida no documento.
A abordagem étnico-racial é, sem dúvida, a mais desenvolvida dos três eixos. Ela aparece de forma estruturante, principalmente através do Objetivo 8, inteiramente dedicado a garantir acesso, qualidade e permanência na “Educação Escolar Indígena, na Educação do Campo e na Educação Escolar Quilombola”. Além disso, a proposta do PNE apresentada pelo poder executivo prevê a implementação curricular da “Educação para as Relações Étnico-Raciais”, em consonância com a Lei nº 10.639/2003, e a formação continuada de professores nessa área. Por fim, as populações “negras”, “indígenas” e “quilombolas” são mencionadas recorrentemente como público prioritário para diversas estratégias de redução de desigualdade, como no acesso à creche, na ampliação da jornada integral, na educação de jovens e adultos e na educação profissional.
Em contrapartida, a pauta de gênero recebe um tratamento significativamente mais limitado e pontual. O termo “sexo” é utilizado em metas de monitoramento para medir desigualdades na alfabetização (Meta 3.b) e na aprendizagem do ensino fundamental (Metas 5.c, 5.e), tratando o gênero mais como uma variável estatística do que como um eixo de política ativa. As únicas estratégias proativas explícitas voltadas para o gênero focam especificamente na “inclusão e a permanência de mulheres” na educação profissional e tecnológica (Estratégia 11.9) e no estímulo ao acesso de “mulheres” em cursos de graduação (Estratégia 13.6) e pós-graduação (Estratégia 15.6) nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Faltam, portanto, diretrizes estruturantes sobre equidade de gênero no currículo ou combate ao sexismo nas escolas, diferentemente do que ocorre com a pauta étnico-racial.
A omissão mais notável no PNE é a completa ausência das pautas de sexualidade e identidade de gênero. O documento não apresenta, em nenhum de seus objetivos, metas ou estratégias, menções a termos como “orientação sexual”, “identidade de gênero”, “LGBTQIA+”, “homofobia” ou “transfobia”. Embora um dos objetivos gerais do plano seja a “erradicação de todas as formas de preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade e de formas de discriminação” (Art. 4º, VI), a não nomeação das discriminações por orientação sexual e identidade de gênero representa uma lacuna crítica, invisibilizando os desafios específicos de permanência e evasão escolar enfrentados por estudantes LGBTQIA+ devido ao preconceito no ambiente educacional.
Quanto à interseccionalidade, o PNE a aplica de forma parcial. O plano reconhece a intersecção entre raça/etnia e classe, ao listar repetidamente “negros, indígenas, quilombolas” ao lado de “situação de vulnerabilidade socioeconômica” como público-alvo. As metas de redução de desigualdade também cruzam “raça, sexo, nível socioeconômico”, demonstrando uma compreensão da sobreposição de vulnerabilidades. Contudo, essa interseccionalidade é usada principalmente como um marcador para focalização de políticas, e não como um eixo analítico profundo para o desenho das estratégias. A exclusão total da dimensão da sexualidade impede uma análise interseccional mais completa das desigualdades na educação brasileira.
Educação para as relações étnico-raciais no PL do Executivo
A educação para as relações étnico-raciais e a promoção da equidade racial são componentes estruturais do Projeto de Lei nº 2.614, de 2024, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2024-2034. A abordagem do tema é transversal, aparecendo desde os objetivos gerais do plano até estratégias específicas de financiamento, currículo e formação de professores. O documento estabelece como um dos objetivos gerais da educação nacional “a superação das desigualdades educacionais e a erradicação de todas as formas de preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade e de formas de discriminação”. Esse compromisso é complementado pela diretriz que estabelece a “qualidade e a equidade como orientações” centrais para as políticas educacionais.
No âmbito curricular, o PNE é explícito quanto à implementação da legislação existente. O texto assegura a implementação das diretrizes curriculares de Educação para as Relações Étnico-Raciais , fazendo referência direta à Lei nº 10.639, de 2003. Além disso, uma estratégia específica garante a obrigatoriedade das temáticas da lei 11.645 de 2008, ou seja, “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nos currículos, com o objetivo de valorizar a “riqueza e a contribuição da diversidade negra, quilombola e indígena” para a história nacional. Essa orientação não se limita ao ensino fundamental e médio, sendo também incluída na educação infantil na educação integral em tempo integral e na formação inicial e continuada de professores. Embora o termo “educação antirracista” não seja utilizado textualmente, o plano menciona a “educação anticapacitista” em conjunto com a educação para as relações étnico-raciais em uma de suas estratégias.
O documento detalha a equidade racial por meio de metas mensuráveis e da identificação de públicos prioritários. O PNE estabelece metas explícitas para reduzir as desigualdades de aprendizagem entre grupos sociais definidos por “raça”, como na alfabetização (Meta 3.b), no ensino fundamental (Meta 5.c) e no ensino médio (Meta 5.e). Para monitorar esse avanço, estratégias determinam a divulgação de resultados educacionais contextualizados por indicadores como “raça”. As populações “negras” e “quilombolas” são sistematicamente citadas como foco prioritário para ações de apoio à permanência e de ampliação de acesso, abrangendo desde a creche e a educação em tempo integral até a Educação de Jovens e Adultos (EJA), a educação profissional e o acesso à graduação.
A educação escolar quilombola recebe atenção destacada, sendo tratada, juntamente com a indígena e a do campo, em um objetivo específico (Objetivo 8). Este capítulo inclui metas para a expansão de creches em territórios quilombolas (Meta 8.c) e a universalização do atendimento na pré-escola, ensino fundamental e médio (Meta 8.f). As estratégias preveem a implementação de currículos alinhados às diretrizes da educação escolar quilombola, a produção de materiais didáticos específicos, a realização de concursos públicos para profissionais quilombolas e a escuta dessas comunidades nos processos seletivos. Essa preocupação com a equidade se estende à pós-graduação, que visa ampliar a formação de mestres e doutores considerando as desigualdades “raciais” (Meta 15.a) e promovendo a equidade “étnico-racial”, inclusive por meio de ações afirmativas. A equidade racial é considerada até no financiamento, onde se prevê a distribuição de recursos adicionais com base em vulnerabilidades, incluindo a “racial”.
Análise geral das questões de diversidade no PL do Executivo
O texto original do Projeto de Lei enviado pelo Poder Executivo manteve os princípios amplos, mas demonstrou uma regressão significativa ao diluir ou remover a linguagem explícita e politicamente sensível presente no Documento de Referência da CONAE.
- Diluição do tema: O eixo temático sobre Direitos Humanos, Inclusão e Diversidade desaparece como um eixo isolado, e os temas são integrados, de forma mais genérica, nas Diretrizes e nos Objetivos Gerais.
- Linguagem genérica:
- A Diretriz X menciona a promoção dos direitos humanos, do respeito à diversidade e da sustentabilidade socioambiental.
- O Objetivo Geral VI fala em superação das desigualdades educacionais e a erradicação de todas as formas de preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade e de formas de discriminação.
- Omissão de termos específicos: Os termos “gênero” e “orientação sexual” (e o termo “LGBTQIAPN+”) são omitidos nas Diretrizes (Art. 3º) e nos Objetivos Gerais (Art. 4º), embora o termo “sexo” seja mantido como marcador de desigualdade. A proposta de política antirracista e anti-LGBTQIAPN+fobia não é incorporada no corpo legal.
- Raça e grupos tradicionais: A menção a desigualdades de raça, cor e grupos como negras, indígenas, quilombolas é mantida em Metas e Estratégias (priorização no acesso à creche/escola e incentivo a materiais específicos).
- Intencionalidade: A remoção dos termos mais explícitos (“gênero”, “orientação sexual”, “LGBTfobia”) sugere uma intencionalidade de despolitizar o texto e evitar o confronto ideológico com setores conservadores na fase de tramitação legislativa, mantendo apenas a linguagem mais genérica amparada constitucionalmente.
3. Parecer do Relator Legislativo (PRL) e Emendas
A análise do Parecer do Relator Legislativo do PL 2614/2024 (PNE 2024-2034) apresentado demonstra que as questões étnico-raciais, de gênero e de sexualidade são tratadas de forma proeminente e estrutural no texto consolidado, embora com diferentes níveis de tensão política visíveis no processo de debate. O documento, que detalha as audiências públicas, seminários estaduais e as 3.070 emendas apresentadas, revela um esforço significativo de diversos setores da sociedade para inserir essas pautas não como temas pontuais, mas como eixos centrais para a garantia do direito à educação.
As questões étnico-raciais são tratadas de forma explicitamente estruturante. Isso é evidenciado pela realização de audiências públicas dedicadas à “Educação escolar indígena, quilombola e do campo” (Objetivo 8) e pela participação ativa de representantes de movimentos negros, indígenas e quilombolas nos seminários estaduais. No texto do Substitutivo, que consolida as emendas aceitas, essa abordagem estrutural é confirmada pela inclusão de termos como “superação do racismo” e “educação antirracista” nas diretrizes gerais do PNE (Art. 3º e 4º). Além disso, o relatório mantém emendas que garantem a implementação das Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 (História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena) e definem metas específicas para a superação de desigualdades baseadas em “raça/etnia” e para populações específicas, como indígenas e quilombolas (Objetivo 8 e 9).
As pautas de gênero e sexualidade também se mantêm no Substitutivo, embora o relatório revele uma disputa política intensa sobre elas. Representantes da comunidade LGBTQIAPN+ e de movimentos de mulheres participaram dos debates. Diversas emendas mantidas (na forma do Substitutivo) inserem explicitamente os termos “gênero” , “orientação sexual” , “diversidade sexual” , “educação sexual integral” , “LGBTQIAPN+” , “mulheres” e “misoginia” nas diretrizes gerais (Art. 3º e 4º) e em estratégias transversais (como formação de professores , currículo e assistência estudantil ). É revelador que o Relator tenha rejeitado todas as emendas que buscavam proibir a chamada “ideologia de gênero” (ex: emendas 452, 1730, 2537, 2623, 2627). Contudo, na seção “Voto do Relator” (II.4 DO MÉRITO), o Deputado omite a menção direta a esses termos, preferindo destacar a inclusão de pautas como “articulação entre família e escola” e “liberdade de consciência”, o que demonstra uma tentativa de equilibrar as tensões políticas no seu parecer, embora o texto final do Substitutivo (baseado nas emendas mantidas) explicite de alguma forma a inclusão das pautas de gênero e sexualidade.
No voto do relator, o deputado tenta demonstrar certa tentativa de isenção com relação às temáticas ao afirmar que “mantivemos a orientação do Presidente da Casa, nobre Deputado Hugo Motta, de preservar o debate acerca do PNE – respeitadas as posições e convicções dos nobres Pares – de disputas ideológicas que desviassem o foco da garantia do direito à educação de qualidade” (P. 754).
As questões de diversidade aparecem de forma interseccionada. O próprio termo “interseccionalidade” ou “interseccionais” é adotado formalmente em diversas emendas mantidas que foram incorporadas ao Substitutivo, tanto nas diretrizes gerais (Art. 3º e 4º) quanto em estratégias específicas (por exemplo, nas Metas 5.c e 5.e sobre desigualdades de aprendizagem). Além disso, múltiplas estratégias (ex: 6.XX, 11.7, 11.9, 12.6, 13.6, 13.7, 15.6, 18.4, 18.xx) agrupam diversos marcadores de vulnerabilidade, citando conjuntamente “mulheres, populações LGBTQIAPN+, negras, indígenas, quilombolas, das populações de baixa renda e com deficiência”, indicando que o tratamento desses temas não é pontual, mas sim estrutural e focado no cruzamento das opressões.
Educação para as relações étnico-raciais no Parecer do Relator Legislativo
Uma análise crítica do Relatório do Projeto de Lei nº 2.614, de 2024, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2024-2034, revela que os temas da educação para as relações étnico-raciais, ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, educação antirracista e equidade racial são centrais e aparecem de forma transversal no documento devido às proposições do setor progressista. Esses conceitos não são tratados apenas superficialmente, mas estão integrados em diretrizes, objetivos gerais, metas específicas e, notavelmente, em múltiplas estratégias que abrangem diversas etapas e modalidades de ensino. O Voto do Relator destaca a intenção de estruturar o PNE para a “superação efetiva das desigualdades” e adota a nomenclatura “raça/cor” em referência às categorias do IBGE para fins de monitoramento.
A centralidade desses temas no relatório reflete uma participação social significativa durante as audiências públicas e seminários estaduais. O documento registra a presença e contribuição de representantes de entidades cruciais para essa pauta, como a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC), o Ministério da Igualdade Racial, a Frente Parlamentar Mista Antirracista, a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), a União de Núcleos de Educação Popular para Negros e Classe Trabalhadora (UNEAFRO) e o Fórum de Educação para as Relações Étnico-Raciais. Além disso, o Relator se reuniu com representantes de organizações que produziram o Caderno PNE Antirracista e a “equidade racial” foi também um dos temas abordados por parlamentares diretamente com o Ministro da Educação.
O ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, conforme determinado pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, é tratado de forma explícita. O Voto do Relator menciona a “consolidação da obrigatoriedade do cumprimento” dessas leis. Isso se materializa em diversas emendas (como as de números 672, 701, 1021, 1113, 2686, 2725, 2916) que propõem estratégias específicas (notadamente 5.3 e 8.2 do substitutivo) para “Assegurar a implementação” ou “Garantir o cumprimento” dessa legislação. Criticamente, as propostas vão além da simples inclusão curricular, exigindo “formação inicial e continuada de professores e gestores escolares para a efetivação dessas diretrizes”, e sugerindo sua abordagem desde a educação infantil (Estratégia 2.3 ) e no Plano Nacional do Livro e da Leitura (Estratégia 3.11 ).
A educação antirracista e a equidade racial são operacionalizadas como mecanismos para a redução das desigualdades. O documento registra propostas para instituir uma “gestão escolar democrática e antirracista” e para que a formação de professores tenha “ênfase na formação antirracista”. A equidade racial é um princípio reitor em metas de redução de desigualdade de aprendizagem (Metas 3.c, 5.c, 5.e), na priorização de acesso a políticas como educação em tempo integral (Estratégia 6.5 ) e na Educação Profissional e Tecnológica (Estratégia 12.8 ), e no acesso e permanência na educação superior, mencionando explicitamente “políticas afirmativas” e cotas. O Objetivo 9 é inteiramente dedicado à Educação Escolar Indígena, do Campo e Quilombola, detalhando ações para garantir currículos próprios, materiais didáticos específicos (incluindo saberes ancestrais) e concursos públicos específicos para esses profissionais, refletindo uma preocupação com a dívida histórica.
Contudo, uma análise crítica do documento completo, que inclui o registro de 3.070 emendas, revela que essa visão não é unânime. O próprio relatório lista o recebimento de um documento do “Observatório da Branquitude” intitulado “Emendas anti-equidade no novo Plano Nacional de Educação”. Essa tensão é visível em propostas de emendas que buscam diluir o foco racial, sugerindo a substituição de termos como “populações negra, indígena, quilombola” pelo termo genérico “para todos os necessitados” ou suprimindo essa priorização explícita em favor apenas da “vulnerabilidade socioeconômica”. Outras emendas propõem a “vedação de qualquer forma de doutrinação” ou “neutralidade ideológica”, termos frequentemente mobilizados em oposição à implementação de pautas de diversidade e educação antirracista. Apesar dessa disputa, o texto final do Substitutivo apresentado pelo Relator parece ter acolhido majoritariamente as propostas que fortalecem a equidade racial e o cumprimento das leis de educação étnico-racial.
Análise geral das questões de diversidade no Parecer do Relator Legislativo
O Relatório do Relator (PRL) é o palco da disputa política dentro do Congresso, onde as questões removidas ou diluídas são reintroduzidas ou explicitamente contestadas.
- Reintrodução de marcadores sociais (progressista): Emendas propostas por parlamentares de esquerda (como Tarcísio Motta/PSOL e Dandara/PT), baseadas nos princípios da CONAE, buscaram reintroduzir a linguagem explícita, frequentemente usando o conceito de interseccionalidade para combater as desigualdades.
- A Emenda 269 (Tarcísio Motta/PSOL) propõe incluir etnia, gênero e orientação sexual, consideradas as interseccionalidades no Objetivo VI (Superação das Desigualdades).
- A Emenda 487 (Tarcísio Motta/PSOL) reintroduz educação em gênero, educação sexual integral e educação anticapacitista.
- Estratégias de assistência estudantil e acesso ao ensino superior são propostas mencionando explicitamente negros, indígenas, quilombolas, LGBTQIAPN+, com deficiência, consideradas as interseccionalidades.
- Reação Conservadora (Contestação): Emendas de parlamentares conservadores (como Eli Borges/PL e Julia Zanatta/PL) visaram explicitamente minar as referências de gênero e sexualidade.
- Emendas (e.g., 452, 2537) propuseram vetar ou proibir a política de gênero ou doutrinação ideológica nas escolas.
- Emenda 1625 (Dr. Luiz Ovando/PP) tentou condicionar as diretrizes de diversidade/equidade à pluralidade de convicções morais, religiosas, filosóficas ou políticas das famílias, enfraquecendo a autonomia pedagógica e o tratamento das diversidades.
- Intencionalidade: O Parecer do Relator é um reflexo direto da disputa. As emendas progressistas buscam restaurar a visão da CONAE (política social de direitos e inclusão), enquanto as emendas conservadoras buscam garantir a primazia da família e da religião sobre a educação em diversidade e sexualidade. A prevalência ou não de certas emendas no texto final (Substitutivo) definirá se o PNE avança ou regride na pauta.
Conclusão sobre a relação entre os documentos:
Tema | Documento de Referência (CONAE) | Projeto de Lei (Executivo) 2614/2024 | Parecer do Relator (Emendas) |
Equidade e Desigualdades | Central e ampla. Eixo dedicado, foco em justiça social. | Presente, mas genérico. Mencionado como objetivo de superação das desigualdades e erradicação de preconceitos. | Fortemente reforçada/Contestada. Reintrodução do termo interseccionalidade e metas detalhadas para equidade racial, de gênero e de acesso a grupos vulneráveis. |
Raça/Racismo | Explícito. Menciona étnico-racial, propõe política antirracista. | Diluído/Implícito. Menciona raça, cor em Objetivo VI, mas sem o termo “racismo” no texto legal. | Reafirmado/Em Disputa. Tentativa de reintroduzir a política antirracista e incluir mais detalhamento para povos indígenas e quilombolas. |
Gênero/Sexualidade | Explícito e Focado. Menciona gênero, orientação sexual, LGBTQIAPN+fobia e sexismo. | Removido/Omitido. Apenas o termo sexo é mantido como marcador social. | Reintroduzido/Alto Conflito. Termos explícitos são resgatados via emendas progressistas, mas são alvos diretos de emendas de supressão/vedação por grupos conservadores. |
A intencionalidade do Documento de Referência da CONAE e dos parlamentares que propuseram as emendas de esquerda é de promover a inclusão e combater as opressões de forma estrutural. Já a intencionalidade do Projeto de Lei original parece ter sido a de desarmar a pauta das diversidades, tornando o PNE menos contestável politicamente. O Relatório do Relator, por sua vez, expõe essa disputa e a tentativa de forçar o Poder Legislativo a tomar uma posição explícita, seja mantendo a generalidade do Executivo, seja adotando a radicalidade da CONAE (progressista), ou a restrição de conteúdo (conservadora).
A regressão em pontos centrais da CONAE 2024, uma instância participativa com diversas vozes, na proposta apresentada pelo Poder Executivo e a ser votada no Congresso Nacional, apresenta os seguintes problemas, conforme a análise do documento:
- Diluição da intencionalidade política: A omissão de termos explícitos como “gênero”, “orientação sexual”, “LGBTQIAPN+”, “racismo” e “interseccionalidade” no Projeto de Lei do Executivo dilui a força e o propósito das políticas de diversidade e equidade. Isso as torna menos prioritárias para a alocação de recursos e para a implementação de ações sistêmicas, uma vez que a ausência de nomeação dos problemas específicos pode levar à falta de investimento direcionado.
- Perda de centralidade e abrangência: Na CONAE 2024, temas como Direitos Humanos, Inclusão e Diversidade eram pilares estruturantes, com um eixo temático dedicado. Ao serem integrados de forma mais genérica nas Diretrizes e nos Objetivos Gerais do PL do Executivo, esses temas perdem sua centralidade e podem ser tratados como menções pontuais, sem a garantia de orçamentos e estruturas específicas para sua execução.
- Invisibilização de grupos e desafios específicos: A completa ausência das pautas de sexualidade e identidade de gênero no PL do Executivo, por exemplo, invisibiliza os desafios específicos de permanência e evasão escolar enfrentados por estudantes LGBTQIA + devido ao preconceito no ambiente educacional. A não nomeação das discriminações específicas impede uma análise interseccional completa das desigualdades.
- Enfraquecimento do combate ativo às opressões: A CONAE propunha explicitamente políticas educacionais antirracistas, anti-sexistas, anti-misóginas e anti-LGBTQIAPN+fóbicas. A simples menção de “superação de preconceitos” sem nomear as formas específicas de discriminação, como no PL do Executivo, é insuficiente e pode resultar na falta de prioridade no investimento e na institucionalização dessas políticas no Sistema Nacional de Educação (SNE).
- Despolitização e evitação de confronto ideológico: A remoção dos termos mais explícitos no PL do Executivo sugere uma intencionalidade de despolitizar o texto e evitar o confronto ideológico com setores conservadores durante a tramitação legislativa. No entanto, isso compromete a capacidade do PNE de enfrentar de forma robusta e explícita as desigualdades e opressões históricas na educação brasileira.
- Perda da perspectiva interseccional: Embora o PL do Executivo aplique a interseccionalidade de forma parcial (cruzando raça/etnia e classe), a exclusão total da dimensão da sexualidade impede uma análise interseccional mais completa. A CONAE e as emendas progressistas no Relatório do Relator buscam adotar formalmente o termo “interseccionalidade” e agrupar diversos marcadores de vulnerabilidade para estratégias mais eficazes e direcionadas.
Neste sentido, a regressão nesses pontos compromete a capacidade do Plano Nacional de Educação de ser um instrumento eficaz para promover a inclusão, combater as opressões de forma estrutural e garantir a equidade e a justiça social na educação brasileira, conforme a visão mais progressista e participativa da CONAE 2024.
4. As disputas presentes no parecer do relator
Educação para as relações étnico-raciais
Uma análise do parecer do relator sobre o PNE 2024-2034, especialmente da seção que lista as 3.070 emendas apresentadas, revela disputas profundas e polarizadas em relação às temáticas étnico-raciais e de diversidade. Embora o Voto do Relator e o texto substitutivo final proponham a “superação efetiva das desigualdades” e o fortalecimento dessas pautas – acolhendo contribuições de entidades como o Ministério da Igualdade Racial, a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e o Fórum de Educação para as Relações Étnico-Raciais -, as emendas demonstram uma forte reação contrária. O próprio relatório registra o recebimento de um documento do “Observatório da Branquitude” intitulado “Emendas anti-equidade no novo Plano Nacional de Educação”, evidenciando o centro dessa disputa.
A principal disputa gira em torno do conceito de equidade racial. Diversas emendas buscaram ativamente diluir ou suprimir a priorização de grupos étnico-raciais específicos, substituindo-os por termos genéricos como “vulnerabilidade socioeconômica” ou “para todos os necessitados”. Por exemplo, a Emenda 132 (Nikolas Ferreira PL/MG) propôs substituir na Estratégia 11.7 (assistência estudantil) a menção a “populações negra, indígena, quilombola…” pela expressão “para todos os necessitados”. Na mesma linha, a Emenda 147 (Nikolas Ferreira PL/MG) sugeriu, na Estratégia 13.7, reestruturar políticas afirmativas priorizando “critérios socioeconômicos” e a Emenda 2561 (Julia Zanatta PL/SC) tentou remover os mesmos grupos específicos da priorização na Estratégia 1.7. Essa oposição direta à nomeação de grupos raciais específicos representa uma negação da necessidade de políticas focadas na equidade racial, tentando reduzi-la apenas à dimensão econômica.
O ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena (Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008) é outro ponto central do conflito. Enquanto o texto do relator acolheu propostas para “Assegurar a implementação” ou “Garantir o cumprimento” dessa legislação (como visto nas Emendas 672, 701, 1021, 1113, 2686 e 2916), emendas contrárias buscaram sua eliminação. A Emenda 196 (Nikolas Ferreira PL/MG) e a Emenda 1730 (Chris Tonietto PL/RJ), por exemplo, propuseram a “Supressão total” da Estratégia 5.3, que detalhou a implementação dessas leis e da educação para as relações étnico-raciais. A Emenda 213 (Nikolas Ferreira PL/MG) foi mais sutil, propondo substituir o texto da Estratégia 8.2 (que garantia o cumprimento das leis) por uma redação genérica sobre “outros povos de importância demográfica na região”, removendo a menção direta à história e cultura Afro-Brasileira e Indígena.
A educação antirracista, especificamente, foi alvo de uma disputa ideológica frontal. Propostas como a Emenda 2998 (Carol Dartora PT/PR) e a Emenda 2011 (Tarcísio Motta PSOL/RJ) buscaram instituir uma “gestão escolar democrática e antirracista” e uma “educação antirracista e decolonial”. Em oposição direta, um conjunto de emendas utilizou o argumento da “neutralidade” e “vedação à doutrinação” para barrar essa abordagem. A Emenda 452 (Eli Borges PL/TO) propôs vedar “política de gênero ou doutrinação ideológica”. A Emenda 1732 (Chris Tonietto PL/RJ) sugeriu a “promoção da neutralidade ideológica”, e a Emenda 3021 (Julia Zanatta PL/SC) defendeu a “vedação à doutrinação política, ideológica, identitária, de gênero ou religiosa”.
Por fim, a educação escolar indígena e quilombola também enfrentou resistência. Embora o relatório final tenha robustecido essas modalidades (agrupadas no Objetivo 9 do substitutivo), as emendas buscaram frear políticas de valorização profissional e priorização. A Emenda 2511 (Dr. Luiz Ovando PP/MS) propôs a “Supressão total” da Estratégia 8.16, que previa a realização de concursos públicos e planos de carreira específicos para profissionais indígenas, do campo e quilombolas. Similarmente, a Emenda 2566 (Julia Zanatta PL/SC) tentou alterar a Estratégia 15.1 (fomento à pós-graduação) para remover a priorização explícita a “pessoas negras, indígenas, quilombolas”, substituindo-a por um acesso genérico “a todos os brasileiros sem distinção de cor, raça, etnia e sexo”, alinhando-se à disputa principal contra a equidade racial.
Educação para a equidade de gênero
A análise revela uma intensa disputa em torno da temática de gênero e diversidade sexual. Essa controvérsia é evidenciada pelo grande número de emendas apresentadas por parlamentares com visões antagônicas sobre a inclusão ou exclusão de termos como “gênero”, “identidade de gênero”, “orientação sexual” e “educação sexual” no texto do plano.
Duas correntes principais se formaram. A primeira, composta majoritariamente por parlamentares do PSOL e PT, buscou a inclusão explícita desses termos para assegurar direitos e combater a discriminação. Exemplos notáveis são as emendas 269, 909, 1582, 1953, 2238 e 2976, que propuseram inserir “gênero” e “orientação sexual” nos objetivos gerais da educação nacional (Art. 4º). A Emenda 2003 (Tarcísio Motta PSOL/RJ) foi ainda mais específica, sugerindo um objetivo para promover a equidade de gênero e o respeito à diversidade sexual e de identidade de gênero, mencionando pessoas “trans e não binárias”. Na mesma linha, a Emenda 2007 (Tarcísio Motta PSOL/RJ) visava criar uma meta para reduzir a “violência de gênero” e a “LGBTfobia”. Outras emendas, como a 487 (Tarcísio Motta PSOL/RJ), 1062 (Pedro Uczai PT/SC) e 2698 (Professora Luciene Cavalcante PSOL/SP), buscaram incluir “educação em gênero” e “educação sexual integral” nos currículos da educação integral (Objetivo 6), enquanto as emendas 551 (Tarcísio Motta PSOL/RJ), 1303 (Sâmia Bomfim (PSOL/SP) e 2136 (Rogério Correia PT/MG) focaram na inclusão desses temas na formação de professores (Objetivo 16).
Em oposição direta, uma segunda corrente de parlamentares, majoritariamente do PL, apresentou emendas para proibir explicitamente o que denominam “ideologia de gênero” e “doutrinação”, ao mesmo tempo que defendiam o direito primário das famílias à orientação moral e sexual. A Emenda 452 (Eli Borges PL/TO), por exemplo, propôs adicionar ao Art. 3º a vedação expressa à “política de gênero ou doutrinação ideológica”. De forma semelhante, a Emenda 2537 (Julia Zanatta PL/SC) pedia a “vedação à inserção” de “Objetivos relativos à ideologia de gênero” , e a Emenda 2614 (Julia Zanatta PL/SC) reforçava o direito dos pais à “orientação moral e sexual dos filhos”, especialmente em “matérias de educação sexual”. Além das proibições diretas, houve tentativas de suprimir estratégias que poderiam abrigar essa pauta, como a Emenda 2623 (Julia Zanatta PL/SC), que pedia a supressão total da estratégia 6.7 (educação integral) , e a Emenda 2627 (Julia Zanatta PL/SC), que visava suprimir a estratégia 16.6 (formação de professores) – exatamente as estratégias que o outro grupo tentava modificar para incluir os termos.
Apesar de o relator, Deputado Moses Rodrigues, afirmar no parecer que buscou “preservar o debate acerca do PNE […] de disputas ideológicas”, na conclusão do voto (Seção II.5) rejeitou todas as emendas de exclusão, como as emendas 452, 2537, 2614, 2621, 2623 e 2627. Simultaneamente, o relator votou pela aprovação do vasto conjunto de emendas que inserem explicitamente os termos “gênero”, “orientação sexual”, “identidade de gênero”, “LGBTQIAPN+”, “LGBTfobia” e “educação sexual integral” em diversas diretrizes, metas e estratégias do PNE, incluindo, entre muitas outras, as emendas 269, 487, 551, 637, 762, 769, 771, 776, 784, 785, 909, 1062, 1080, 1303, 1306, 1330, 1372, 1373, 1378, 1379, 1380, 1436, 1437, 1439, 1582, 1705, 1808, 1953, 2003, 2007, 2136, 2238, 2241, 2362, 2370, 2386, 2443, 2446, 2452, 2573, 2579, 2647, 2653, 2682, 2684, 2686, 2698, 2704, 2710, 2888, 2898, 2901, 2904, 2916, 2975, 2976, 2984, 2999, 3003 e 3005.
Tensões e disputas
A análise das numerosas emendas rejeitadas (números 80, 145, 164, 226, 227, 547, 576, 577, 722, 875, 1079, 1091, 1095, 1132, 1272, 1298, 1319, 1324, 1336, 1337, 1341, 1349, 1463, 1466, 1473, 1510, 1538, 1588, 1596, 1617, 1636, 1660, 1696, 1790, 1792, 1805, 1838, 1848, 1857, 1873, 1877, 1914, 1922, 1936, 1946, 1979, 1988, 2088, 2102, 2110, 2134, 2153, 2168, 2170, 2189, 2203, 2219, 2223, 2259, 2271, 2379, 2450, 2462, 2533, 2544, 2640), contidas no relatório, evidencia um embate político-ideológico. Este extenso conjunto de proposições descartadas é predominantemente oriundo de um campo político conservador, frequentemente alinhado a pautas defendidas por setores mais à direita ou por grupos com visões restritivas sobre direitos humanos, grupos discriminados e o papel do Estado na proteção social. A rejeição sistemática dessas emendas sinaliza uma resistência do processo de consolidação do relatório final em aceitar tais desvios dos compromissos constitucionais.
O fio condutor temático que unifica a maioria dessas emendas rejeitadas é a resistência ou a tentativa de enfraquecimento de compromissos internacionais e nacionais relacionados a direitos humanos, com um foco especial em grupos historicamente vulneráveis. Observa-se a intenção de amenizar, distorcer ou, em alguns casos, remover as recomendações da Revisão Periódica Universal (RPU) que tratam de direitos sexuais e reprodutivos, direitos da população LGBTQIA+, direitos dos povos indígenas e quilombolas, direitos das mulheres e o combate ao racismo e à violência policial. Essa postura reflete uma oposição a uma agenda progressista de direitos humanos, buscando reinterpretar ou minimizar as obrigações do Estado brasileiro nessas áreas cruciais.
Detalhadamente, constata-se um esforço considerável para restringir os direitos sexuais e reprodutivos, com emendas que visam diluir ou reformular recomendações sobre acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o aborto legal, planejamento familiar e educação sexual abrangente. Tais proposições de cunho conservador procuram manter um controle social sobre os corpos e as escolhas individuais, alinhando-se a discursos que historicamente criminalizam ou dificultam o acesso a esses direitos fundamentais.
Outro ponto de intensa disputa são os direitos da população LGBTQIA+. Emendas que buscavam enfraquecer ou eliminar o reconhecimento e a proteção desses direitos foram consistentemente rejeitadas. Essa rejeição demonstra a intenção de setores conservadores de não acolher a diversidade sexual e de gênero, opondo-se à inclusão social e à proteção contra a discriminação e a violência que esses grupos ainda enfrentam. Adicionalmente, emendas que visavam deslegitimar direitos indígenas e quilombolas procuravam dificultar a demarcação de terras ou questionar os direitos territoriais e culturais desses povos, expondo um interesse em fragilizar a proteção ambiental e os direitos de autodeterminação dessas comunidades, frequentemente em aliança com pautas do agronegócio ou de setores com interesses exploratórios nessas áreas.
Ainda, houve tentativas de minimizar a gravidade da violência de gênero e do racismo. Propostas que procuravam atenuar a necessidade de políticas públicas robustas de combate à violência contra as mulheres e ao racismo, ou que questionavam a seriedade e a estruturalidade desses problemas no Brasil, também foram rejeitadas. Essa postura reflete uma visão que relativiza as profundas desigualdades estruturais presentes na sociedade brasileira e, consequentemente, a necessidade de ações afirmativas e de proteção específicas para as vítimas. Por fim, a crítica à atuação da segurança pública foi outro foco, com emendas que buscavam rejeitar recomendações por maior responsabilização e controle sobre a atuação policial e o combate à violência estatal, indicando uma resistência em submeter as forças de segurança a um escrutínio mais rigoroso e a reformas que visem a desmilitarização ou a redução da letalidade policial.
Neste sentido, o elevado volume e a natureza temática das emendas rejeitadas, focadas principalmente em atacar direitos sexuais e reprodutivos, direitos LGBTQIA+, direitos indígenas e quilombolas, combate à violência de gênero e racismo, e controle da segurança pública, apontam para um esforço coordenado de um campo político conservador no sentido de desviar, mitigar ou deslegitimar as obrigações e o compromisso do Brasil com as normas internacionais de direitos humanos. A efetiva rejeição dessas emendas, por outro lado, reflete a manutenção de um posicionamento que busca reafirmar, no contexto do relatório da RPU, a importância e a necessidade de se avançar na promoção e proteção desses direitos fundamentais.
Abaixo apresentamos os principais temas embates.
- Diluição de termos no PL do executivo x reintrodução no relatório do relator: A principal disputa reside na forma como os termos “gênero”, “orientação sexual”, “LGBTQIAPN+”, “racismo” e “interseccionalidade” são tratados. O Documento de Referência da CONAE os aborda de forma explícita e estruturante. O PL do Executivo, por sua vez, os dilui ou omite significativamente, utilizando uma linguagem mais genérica. No entanto, o Relatório do Relator, por meio da aprovação de diversas emendas progressistas, reintroduz muitos desses termos, gerando um contraste marcante com a proposta original do Executivo. Essa mudança reflete uma disputa política intensa, onde o texto final do PNE pode se inclinar para uma outra abordagem.
- “Neutralidade Ideológica” x “Educação Antirracista”: Há uma tensão ideológica explícita no Relatório do Relator. Enquanto algumas emendas buscam instituir uma “gestão escolar democrática e antirracista” e uma “educação antirracista e decolonial”, outras propõem a “vedação de qualquer forma de doutrinação” ou “neutralidade ideológica”. Essa oposição direta cria uma aparente incoerência na visão geral do documento, embora o relator tenha, em seu voto, rejeitado as emendas de exclusão das temáticas e aprovado as de reinclusão das temáticas.
- Focalização em “Vulnerabilidade Socioeconômica” x “Equidade Racial Específica”: Emendas conservadoras tentaram substituir a priorização de grupos étnico-raciais específicos (negros, indígenas, quilombolas) por termos genéricos como “para todos os necessitados” ou priorizando apenas “critérios socioeconômicos”. Isso cria uma tensão com a abordagem que defende a necessidade de políticas focadas na equidade racial específica, reconhecendo que a desigualdade não é apenas econômica, mas também racial.
5. Recomendações
Para avançar no processo de tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) com a inclusão intencional e explícita das questões étnico-raciais, combate ao racismo, equidade de gênero, sexualidade e interseccionalidade, assim como de valorização da diversidade e promoção da equidade, os seguintes pontos precisam ser considerados:
- Institucionalidade da educação para as relações étnico-raciais: Para integrar a educação para as relações étnico-raciais de forma explícita e intencional no PNE, é essencial fortalecer o marco legal, detalhando a implementação das leis e diretrizes (Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004), o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei n° 10.639/2003 (2010), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena (2012), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (2012) e as Diretrizes Operacionais para a implementação da História e das Culturas dos Povos Indígenas na Educação Básica, em conformidade com a Lei n° 11.645/2008 (2015).), e adotando a terminologia “educação antirracista” e a perspectiva interseccional. A formação inicial e continuada de todos os profissionais da educação deve ser obrigatória e incluir a temática em concursos, valorizando educadores quilombolas e indígenas. É crucial fomentar a pesquisa e garantir materiais didáticos qualificados, que incorporem saberes destes grupos. A gestão escolar deve ser democrática e antirracista, com participação comunitária e fortalecimento dos conselhos. Por fim, o PNE deve estabelecer indicadores de equidade racial para monitoramento e avaliação, prevendo alocação orçamentária específica e recursos adicionais para a implementação de ERER.
- Fortalecimento da linguagem explícita e estruturante: Ao reintroduzir termos como “gênero”, “orientação sexual”, “LGBTQIAPN+”, “racismo” e “interseccionalidade” nas diretrizes, objetivos e estratégias de um plano como o PNE, a política explicita sua intencionalidade (clara). A omissão desses termos, como observado no PL 26.142/24 do Executivo, dilui a força e o propósito da política, tornando-a menos prioritária para alocação de recursos.
- Criação de eixos temáticos dedicados: A existência de eixos temáticos específicos, como o Eixo III da CONAE (“Educação, Direitos Humanos, Inclusão e Diversidade: Equidade e Justiça Social…”), transforma essas pautas em pilares estruturantes do plano. Isso assegura que não sejam apenas menções pontuais, mas sim fundamentos que orientam a distribuição de recursos e a implementação de ações sistêmicas. Quando esses temas estão integrados em eixos mais abrangentes que já possuem orçamentos e estruturas definidas, eles recebem um investimento mais consistente e garantido.
- Adoção da perspectiva interseccional: Uma análise interseccional aprofundada, que reconhece como categorias como raça, gênero, sexualidade, deficiência e classe se cruzam para produzir experiências únicas de desigualdade, permite o desenvolvimento de estratégias mais eficazes e direcionadas. Ao agrupar diversos marcadores de vulnerabilidade em estratégias integradas, os recursos podem ser alocados de forma mais eficiente para atender às múltiplas necessidades de grupos específicos, como mulheres negras ou pessoas LGBTQIAPN+ indígenas.
- Nomeação dos problemas e combate ativo: Propor e implementar explicitamente políticas educacionais antirracistas, anti-sexistas, anti-misóginas e anti-LGBTQIAPN+fóbicas, conforme a linguagem assertiva da CONAE, é crucial. A simples menção de “superação de preconceitos” sem nomear as formas específicas de discriminação é insuficiente e pode levar à falta de prioridade no investimento. A institucionalização dessas políticas no Sistema Nacional de Educação (SNE) garante que o combate a essas opressões seja uma premissa estrutural do plano e, consequentemente, receba o financiamento necessário.
- Assegurar a transversalidade das pautas: Garantir que as questões de diversidade, equidade, raça, gênero e sexualidade permeiem todos os eixos temáticos do PNE (desde o financiamento até a formação de professores e a avaliação) como um princípio transversal, faz com que esses temas sejam considerados em todas as etapas e áreas do planejamento e execução, assegurando que os recursos sejam direcionados de forma abrangente para essas agendas.
Compreendemos que ao adotar essas recomendações, o processo de tramitação do PNE poderá avançar em direção a um plano mais antirracista, inclusivo, equitativo e que de fato enfrente o racismo e o sexismo, as desigualdades e opressões históricas da educação brasileira.