De acordo com a visão implementada pelo quadrinista paulista Marcelo D’Salete em seu novo romance gráfico, “Angola Janga”, o lendário Zumbi dos Palmares seria filho de um casal que habitava o mocambo do Macaco, capital do maior quilombo da história do Brasil.
Por Ciro Marcondes Do Metrópoles
Após ter os pais assassinados por colonos luso-brasileiros, o bebê que iria se tornar o grande líder acabou passando sua primeira infância em liberdade e sob criação de um padre (Melo) e uma mulher escravizada (Madalena).
Na narrativa de D’Salete, o fato de Zumbi ter crescido “livre” (dentro das circunstâncias coloniais) foi fundamental para que ele aspirasse e servisse de inspiração à libertação de milhões de homens e mulheres escravizados no Brasil entre os séculos 16 e 19.
A passagem de “Francisco” (seu “nome cristão”) para Zumbi é um dos pontos-chave para se compreender a complexa teia de relações que constituem a história de Palmares e suas implicações.
D’Salete passou 11 anos pesquisando os contextos político, social e histórico de “Angola Janga” (“Pequena Angola” na língua banto quimbundo, nome original de Palmares) para soltar, finalmente, pela editora Veneta, um robusto romance gráfico com mais de 400 páginas que definitivamente marca a história das HQs brasileiras.
A pesquisa incluiu diversas fontes primárias (como visitas ao Memorial de Palmares, em Alagoas) e inúmeros estudos acadêmicos históricos e sociológicos, além de registros da época, para fomentar sua ficção com precisa referencialidade. O resultado é nada menos que acachapante.
Os premiados quadrinhos de D’Salete estiveram desde sempre engajados em propor uma abordagem da cultura e das condições de vida dos afro-descendentes no Brasil, seja em grandes metrópoles contemporâneas ou no passado colonial.
Logicamente, sua publicação não se trata de mera ação afirmativa, mas sim de uma sólida visão artística de intensa e inteligentíssima problematização das difíceis questões envolvendo racismo, sociedade e poder. “Angola Janga” é sua obra-prima e chega para consolidar sua estética e olhar.
Teia de complexidades narrativas e temáticas
A teia é um dos signos ancestrais africanos (de origem ganense) utilizados pelo autor para mapear simbolicamente sua complexa narrativa que trilha a trajetória das últimas décadas de Palmares, um quilombo situado entre Pernambuco e Alagoas.
D’Salete não utiliza letreiros para narrar os entrelaçados plots que envolvem dezenas de personagens nas diversas investidas do governo contra o quilombo e suas lideranças. Tampouco é fácil compreender as relações dos inúmeros flashbacks e o vai e vem narrativo plasmado em ilustrações sólidas, minuciosamente detalhadas para acompanhar o sofisticado panorama político-social da época. “Angola Janga” só pode ser lida como uma obra de profunda imersão.
Sabendo disso, o autor “recheou” o livro com textos explicativos, mapas e ilustrações, fazendo da leitura igualmente um ato de pesquisa por parte do público. Isso não quer dizer que D’Salete facilita, mas expande a experiência de fruição da obra. Dentre seus diversos recursos para contar a história, incluem-se o zoom, a alternância de pontos de vista, a fuga à abstração e os respiros poéticos.
Porém, à parte o requintado acabamento e o delineamento artístico de “Angola Janga”, é a flagrante humanidade da obra que verdadeiramente comove. O protagonismo é de negros e negras em um sistema social horrível demais para ser traduzido em palavras. Os personagens são ricos em nuances e alma, nunca planos ou estereotipados.
Comove, por exemplo, o trágico papel do “mulato Soares”, braço-direito de Zumbi. Ou do líder anterior de Palmares, Ganga Zumba, vítima de uma guerra civil entre quilombos. Ou Zona, aspirante ao posto mais alto, e seu pacto com o governo de Pernambuco para assumir Angola Janga.
O papel dos brancos também é desenhado com sofisticação e ambiguidade, como ocorre no caso do menino Joaquim, que acaba se tornando palmarista. Mesmo os sanguinários bandeirantes possuem suas falhas trágicas, como narrado na história do monstruoso Domingos Jorge Velho.
A ligação direta da realidade colonial com nosso triste e segregado mundo atual, no entanto, reside mesmo na pequena sobrevivente Dara, figura feminina que acaba simbolizando, ao mesmo tempo, fertilidade, resistência e continuidade. Esperança, enfim.
“Angola Janga” possui inúmeros méritos artísticos. É a mais extensa publicação em quadrinhos já produzida no Brasil. Certamente figurará em posições altas nas listas de melhores de 2017. É uma obra grandiosa e meticulosa. Porém, nada disso se equipara à sua importância social. Esta é simplesmente incalculável.