Anistia já! por Sueli Carneiro

Perdi o bonde das malas milionárias, dos cuecões de ouro, das quedas de cúpulas partidárias, da dança das cadeiras ministeriais e das novas celebridades e seus depoimentos nas comissões de inquérito. Então, vou ficar no fato mais recente que, afinal, conecta-se com todos o demais, nos quais se enredam as novas e velhas hegemonias. Falo da Daslu. O evento me lembrou a entrevista de Chico Buarque de Holanda (Folha de S. Paulo, dezembro de 2004) na qual ele descreve a nova feição das elites nacionais envolta segundo ele por toda essa indústria da glamourização, de quem pode, de quem ostenta, de quem torra dinheiro – enfim, ser reacionário se tornou de bom-tom.

Numa entrevista à revista Isto É, a escritora Lolita Pille, questionada sobre o sucesso de seu livro Hell, disse:

“O que talvez impressione as pessoas são as semelhanças das elites na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil”. A autora sintetiza, nas palavras da personagem do livro, a visão desse segmento: “Sou o mais puro produto da geração Think Pink; meu credo: seja bela e consumista (…) sou francesa e parisiense e estou me lixando para o resto; pertenço a uma única comunidade, a mui cosmopolita e controversa tribo Gucci Prada – a grife é meu distintivo”.

As nossas versões nativas dessa autodenominada Geração $ nos são apresentadas na matéria de Rodrigo Brancatelli no site da AOL. São todos filhos de empresários, políticos, banqueiros, cujo esporte predileto é torrar dinheiro. A reportagem da AOL apresenta-nos Nicole, uma jovem rica que declara: Tenho dinheiro suficiente para não me preocupar com você ou com mais ninguém. O dinheiro dos meus pais me possibilita curtir a vida sem preocupações e sem falsos moralismos. A minha felicidade está na minha conta bancária”. Conforme relatado na matéria, Nicole, atrasada para o encontro com os amigos, explica assim o atraso:

“Demorei porque a besta da empregada esqueceu de passar a minha calça Gucci (…) Definitivamente não dá para confiar em pessoas de cabelo pixaim”.

A reação de Fernanda, filha de banqueiro, amiga de balada de Nicole, é declarar do alto de seu modelito Alexandre Herchcovitch que “empregada é uma droga mesmo. Todas (…) são ignorantes. É por isso que elas têm de ganhar salário mínimo”. São algumas ilustrações do que rola por aí entre as elites que Chico descreve.

Sobre a prisão da dona da Daslu, Danusa Leão comentou que “as chiquérrimas estão sem rumo, e quase de luto: onde vão fazer suas compras, onde encontrar os modelitos Prada e Gucci, onde passar suas tardes, como ocupar seus pensamentos, se a razão de suas existências era a Daslu?” Várias delas se manifestaram indignadas, na imprensa, com a prisão da dona da Daslu. Mas os argumentos principais vieram de políticos e empresários condenando as operações ruidosas da Polícia Federal, alertando que elas podem “gerar uma crise econômica, afugentar investimentos internacionais do país. O empresário vai dizer: para que vou investir no Brasil, se posso ser preso?”

Definitivamente não entendi a lógica da equação. Pelo menos em tese, as pessoas são presas porque cometeram ato ilícito. E, até segundo aviso, investimento empresarial não guarda, necessariamente, nenhuma relação com ilicitudes. Então, por que os empresários seriam afugentados? Existiria alguma conexão necessária entre investimentos empresariais e suspeitas de sonegação fiscal, contrabando, formação de quadrilha e descaminho, alguns dos crimes em que se inscrevem as suspeitas em relação aos donos da Daslu?

Diz uma das socialites indignadas que o Brasil “é um país de altos impostos, e é impossível pagar todas as taxas”. Deveríamos entender então que, sem as ilicitudes de que são suspeitos os donos da Daslu, não é possível empreendedorismo no Brasil? Chocado com a prisão estrondosa da empresária das grifes famosas, um importante empresário nacional advertiu que “precisamos olhar isso com cuidado. Não podemos permitir violências desse tipo”.

Concordo. Por isso proponho anistia para todos, aos do “andar de cima”, enquanto o Banco Central não baixar as taxas de juros, que obrigam os empresários a praticar certas indignidades, e aos do “andar de baixo”, enquanto não mudar a política econômica que os leva a praticar delitos como o da empregada doméstica Maria Aparecida de Matos, que esteve presa por um ano por roubar um xampu, ou o do garoto de 19 anos, meu vizinho, que cumpriu cinco anos por roubar R$ 75 para comprar Citotec para livrar a namorada de uma gravidez indesejada. Dois de tantos outros casos em que as pessoas permanecem presas, enredados na parafernália jurídica porque não dispõem dos doutos advogados para garantir os habeas corpus preventivos, curativos, ou sei lá o quê. Essa anistia geral e irrestrita traria como bônus adicional o não acirramento da luta de classes, preocupação manifestada por outro político que identificou manipulação de ressentimentos de classe nessas ações policiais contra empresários. Então, anistia já, pois, do jeito que a coisa vai indo, ninguém sabe quem pode ser a próxima “vítima”. E, de resto, não há presídios suficientes no país.

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