“Aquelas negas” por Sueli Carneiro

Creio que das coisas que mais impressionam turistas brasileiros ao chegar em Havana, são as semelhanças étnicas e raciais do povo cubano com o brasileiro – negros, brancos e mestiços de vários cruzamentos – e as semelhanças geográficas com o nosso litoral.

Alguns recortes de praia, provocavam em mim segundos de confusão mental: estou em Havana ou em Salvador?

Um povo como nós, aberto e hospitaleiro e, sobretudo, orgulhoso e bravo diante às dificuldades que o país se encontra por tantos anos de embargo econômico.

A despeito dessas condições adversas, os cubanos, naquilo em que só dependem deles, conquistaram excelência, em vários campos, em especial nos esportes. O suficiente para frustar muitas expectativas de medalhas de ouro de outros países, como em nós brasileiros.

Então, no auge da euforia por ter derrotado a seleção de volei da Alemanha, a jogadora Virna, da seleção brasileira, disse às câmaras de televisão, “Agora vamos pegar as cubanas, aquelas negas, e vamos ganhar delas! Virna disse também sobre as cubanas: “Como elas são tão fortes, é sempre um desafio para nós”.

Torcedora e admiradora da trajetória da seleção feminina de volei vibrei com elas na brilhante vitória sobre a seleção alemã; compartilhando a emoção que cada uma demonstrava e, acima de tudo, esperando pela fala de Virna, a minha atacante predileta desde Atlanta.

Então aconteceu “aquelas negas” e algo gelou dentro de mim. Conheço esse filme! Já ouvi muitos “aquela nega” pela vida. Até tu Virna!
A necessidade de adjetivar racialmente a seleção cubana (aquelas negas) reflete que há um componente adicional para Virna, nessa disputa histórica entre as duas seleções. Até porque, ao término do jogo com a Alemanha, não lhe ocorreu dizer “ganhamos das alemãs, aquelas branquelas”. O que me deixaria no mesmo desconforto sendo eu negra, ou fosse eu branca.

Então começo a me perguntar: o que será que provoca mais ressentimento em Virna, ter sido derrotada (em Atlanta) por uma seleção que ela reconhece mais forte ou para “aquelas negas”? Ou será a combinação das duas coisas, negras e fortes?

Parece haver só um jeito negro de ser, suportável, para alguns brancos (e outros que assim se supõem); o negro, em quem se pode identificar, o fracasso, a vulnerabilidade, o servilismo, a dependência e a inferioridade introjetada. Negros e negras fortes, altivos e vencedores, parecem um insulto para esses brancos. Hitler nos mostrou o quanto diante de Jesse Owens.

Mas não há nesse assunto, nada de novo no front. É só mais um “ato falho” que assistimos ou sofremos, todo o tempo nessa sociedade. Em todos os conflitos ou disputas entre brancos e negros, os adjetivos nega, criolo, nega safada, macacos etc…. são usados para expressar o desprezo pela negritude e assim valorizar o oponente branco. A brancura funcionando como um elemento que sempre desempataria em favor do branco. Você é juíza más… é negra. Você é… más é negro!

Via de regra esses atos são minimizados pela opinião pública como uma frase infeliz, sem intenção discriminatória, de acordo com a nossa tradição de mascarar o racismo e o preconceito presentes na sociedade. Mais recentemente, se diz, que os negros brasileiros estão ficando muito melindrosos, e vendo racismo em tudo. Afinal sempre toleraram, sem problemas, “essas brincadeira”, que no máximo, podem ser consideradas de mau-gosto, jamais racistas. Atribui-se também esse melindre, á influência dos negros norte-americanos. Deve ser a globalização! Ou, talvez, simplesmente, a consciência negra sobre as variadas manifestações de racismo esteja aumentando no Brasil.

A lingüistica, através de sua Teoria dos Atos de Fala, vem decodificando os sentidos dessas frases supostamente inocentes, como pretende o senso comum. E demonstrando as diversas ações que se realizam através da linguagem, dentre elas, a produção e reprodução de estereótipos. Ou, analisando, os sentidos subjacentes em determinadas entonação (aquelas negas) de palavras ou frases. Batktin, o lingüista russo, nos alerta que “a linguagem é um fenômeno profundamente social e histórico e, por isso mesmo, ideológico.”

O racismo tem destinados aos negros, as tarefas consideradas diletantes ou periféricas da sociedade. Uma dessas é o esporte. E os negros tem abraçado essas oportunidades, com a garra e desespero que as chances “únicas” produzem nos excluídos e discriminados. E esses poucos espaços tem se constituído em instâncias de afirmação de uma humanidade e de uma igualdade, sistematicamente negadas pelo racismo. Por isso Pelé, Mohamed Ali, Marion Jones, Jesse Owen, Waldemar Ferreira da Silva, Magic Jonhson, João do Pulo, as irmãs Williams, Carl Lewis, Michael Jordan e tantos outros atletas negros.

A frase de Virna me deixou num dilema. E agora? Vou torcer pelas “negas” de cá, ou pelas “negas” de lá?

Antes que eu pudesse resolver esse dilema, “aquelas negas” cubanas, confirmaram, como em Atlanta, a sua superioridade diante da seleção brasileira feminina de volei! Depois, diante do mundo. Medalha de ouro nas Olimpíadas de Sidney. Tricampeãs mundial!

A seleção feminina de volei do Brasil, só perdeu para a seleção cubana.
Parabéns a Virna e a toda equipe. Graças a vocês, permanecemos entre as melhores do mundo nessa modalidade.

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