Bené, por Sueli Carneiro

Combinar os critérios de qualificação técnica com recorte de gênero e de raça é um risco e um desafio que, até o momento, apenas essa mulher, negra e ex-favelada, se dispõe a enfrentar. Coragem típica de quem teve que reescrever com dor e lágrimas o próprio destino.

Mulher, negra, ex-favelada assume pela primeira vez o governo do Rio de Janeiro. Essa foi a tônica das manchetes sobre a ascensão de Benedita da Silva ao governo do Rio. As ênfases na condição de raça, gênero e de classe da governadora é, por si só, exemplar do ineditismo de que o fato se reveste.

Para Millôr Fernandes, é preciso acabar com essa demagogia porque a favela do Chapéu Mangueira é favela de grã-fino, o slogan black is beautiful já superou a identificação entre negro e pobre e, a não ser como piada, ele nunca ouviu alguém ser contra mulher. Poderia e deveria ser simples assim, mas não é.

Na favela de grã-fino onde nasceu Benedita, as mulheres são estupradas aos 7 anos, perdem filhos por doenças evitáveis, abortam em condições subumanas e a fome é a rotina do cotidiano. Essa é a história de Benedita da Silva, que, segundo a deputada Heloneida Stuardt, ‘‘conseguiu ser mais forte que o seu destino”.

Um destino que condena a maioria daqueles que nascem e vivem sob essas condições à marginalidade, prostituição e toda sorte de degradação humana. Bené, como toda exceção, confirma a regra.

Diz Roberto da Matta que uma das características do sistema racial brasileiro é que ‘‘cada categoria racial conhece o seu lugar em uma hierarquia”. É essa ‘‘sabedoria”, aprendida em séculos de racismo e discriminação, que determina outras manchetes sobre o caso. Diz uma delas: ‘‘Nova governadora do Rio se transfere com o marido-ator para o endereço símbolo da riqueza carioca”.

Ou ‘‘primeira negra… se muda com o marido, o ator Antônio Pitanga, para o palácio construído no século passado pela família Guinle, a mais tradicional representante da elite carioca”. Sem dúvida, Benedita está ‘‘fora do seu lugar”.

Mais expressivas ainda são as reações em relação à montagem da equipe de governo. Dizem as manchetes: ‘‘Governadora coloca sete negros no primeiro escalão”. Outra diz: ‘‘Priorização da escolha pela raça”. São apenas sete negros nomeados num conjunto de 33 secretarias, mas parece já estar sendo considerado demais.

As reações foram imediatas: um dos leitores do jornal O Globo exige explicações sobre o critério ‘‘cor negra da pele” adotado pela governadora para a escolha de seu secretariado. E acrescenta: ‘‘Certamente se alguém afirmasse ter feito semelhante escolha priorizando ‘‘a cor branca da pele” já teria sofrido toda sorte de retaliações…”

O racismo é cruel. Ao instituir a superioridade de um grupo racial e a inferioridade de outro, gera diversas perversidades: a excelência e a competência passam a ser percebidas como atributos naturais do grupo racialmente dominante, o que naturaliza sua hegemonia em posto de mando e de poder.

Nunca ouvimos alguém se levantar – além da minoria de mulheres feministas ou militantes negros -, quando um secretariado é composto em sua totalidade por homens brancos. Encara-se como normal.

Não se coloca em questão se a competência ou a qualificação técnica foram devidamente contempladas nas nomeações. Menos ainda nos assustamos quando um engenheiro assume uma pasta da Cultura ou da Saúde. Entende-se que isso se deva às composições partidárias necessárias à governança. Ou, pior, em geral esses ‘‘seres superiores” são considerados ‘‘naturalmente” aptos, a despeito de sua formação ou trajetória profissional, para assumir qualquer cargo de poder.

O estranhamento se dá quando esse mundo inteligível ao qual nos habituamos sofre alguma alteração. E sobretudo quando ele muda por ações intencionais ditadas pelo princípio democrático de respeito à diversidade.

Os critérios adotados na montagem do secretariado foram, segundo Bené, ‘‘a experiência, a competência, a valorização do servidor de carreira, a inclusão de representantes da sociedade civil, e que todas essas questões tivessem um recorte de gênero e etnia, como foi um compromisso assumido pelo PT…”

Somente quem pertence a grupos historicamente discriminados sabe dos inúmeros negros, as incontáveis mulheres e homossexuais que deixam de ser lembrados para ocupar posições nas estruturas de poder por essa lógica de exclusão que o racismo e a discriminação determinam.

Combinar os critérios de qualificação técnica com recorte de gênero e de raça é a única maneira de romper com a lógica excludente que historicamente norteia as estruturas de poder do país e, sobretudo, é requisito para o aprofundamento e radicalização de uma perspectiva democrática no Brasil.

Um risco e um desafio que, até o momento, apenas essa mulher, negra e ex-favelada, se dispõe a enfrentar. Coragem típica de quem teve que reescrever com dor e lágrimas o próprio destino. Certamente ela pagará um alto preço pela ousadia. Que Deus a proteja porque os homens não terão complacência!

+ sobre o tema

Meu irmão, meu limoeiro, por Sueli Carneiro

Ele era o príncipe encantado das jovens negras de...

Medo

Eles, os terroristas, estão nos vencendo! Por Sueli Carneiro O crescimento...

Pesos e Medidas por Sueli Carneiro

Não, não haverá racismo na demissão de uma gestora...

para lembrar

Antônio Pitanga comenta relação com Benedita da Silva: ‘eu bato cabeça’

O ator e diretor Antônio Pitanga é o convidado...

A Invenção de Zumbi – por Sueli Carneiro

Bendito vidro moído nos bofes do Senhor bendita a...

CEU: esperança de cidadania

Dentre as muitas humilhações que a pobreza gera, a...

Brasil, EUA e África do Sul, por Sueli Carneiro

Aconteceu de 29 de maio a 1º de junho...
spot_imgspot_img

O precário e o próspero nas políticas sociais que alcançam a população negra

Começo a escrever enquanto espero o início do quarto e último painel da terceira sessão do Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes, nesta semana na...

Fórum da ONU em Genebra discute desenvolvimento econômico dos negros

No terceiro dia do 3º Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes, promovido pela ONU, em Genebra, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, destacou a importância...

Instituto Geledés promove evento sobre empoderamento econômico para população negra

O Geledés – Instituto da Mulher Negra realizou nesta quarta-feira (17) evento paralelo ao Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes que acontece na sede das Nações...
-+=