Começo a escrever enquanto espero o início do quarto e último painel da terceira sessão do Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes, nesta semana na sede da ONU em Genebra (Suíça). A trilha que precede a reunião sobre a proclamação de uma segunda década afrodescendente é uma versão de “Zé do Caroço”, sucesso de Leci Brandão. Foi a canção que Teresa Cristina escolheu para abrir a cerimônia de abertura do Fórum. No corredor do Palácio das Nações, está a mostra “Atlântico negro”, com obras de duas dezenas de artistas brasileiros, a começar por Rosana Paulino, com a bandeira Pretuguês, homenagem à filósofa Lélia Gonzalez, autora do conceito. Yhuri Cruz enviou a icônica “Anastácia livre”, representação da escravizada sorrindo, sem mordaça. São indícios do protagonismo que o Brasil tenta recuperar como nação de maior população negra fora da África. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, formalizou a intenção de realizar no país — quem sabe no Rio de Janeiro — o próximo encontro.
A renovação por mais uma década, proposta que o Brasil defende, sugere que os primeiros dez anos não foram suficientes para alterar as condições de vida dos afrodescendentes mundo afora. Verdade. Mas é também sinal de interesse da comunidade internacional em, ao menos, se manter mobilizada sobre enfrentamento ao racismo, justiça reparatória e desenvolvimento sustentável. A agenda é interminável: da infância à produção de indicadores; do perfilamento racial por agentes da lei à educação inclusiva; da visibilidade de pessoas com deficiência e LGBTQIA+ às mudanças climáticas; da regulação da inteligência artificial à crise profunda do Haiti; da situação das mulheres ao acesso a serviços básicos; do cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ao combate à intolerância religiosa. Mãe Nilce de Iansã, do Ilê Omolu Oxum, lançou no evento a campanha Divulgue Axé, contra o racismo religioso.
No Fórum da ONU, não há assunto que deixe o Brasil de fora. Fui a Genebra para um evento paralelo, a convite de Geledés, organização fundada há mais de três décadas por Sueli Carneiro, filósofa, ativista, feminista negra, referência de todas nós. Fomos provocadas a tratar de estratégias para o empoderamento econômico da população afrodescendente, claramente insuficiente, com Independência, com Abolição, com tudo.
Sueli Carneiro reivindica um programa de desenvolvimento econômico para a população negra como medida de reparação histórica a um grupo historicamente excluído. “O Brasil tem uma longa experiência de mobilidade social de imigrantes europeus, com políticas subvencionadas pelo Estado”, sublinhou. A intenção é cobrar de organismos multilaterais de financiamento, bancos de desenvolvimento, caso do BNDES, e do setor privado ações para alavancar empreendimentos de pessoas negras, livrando-as da informalidade, da escassez de crédito, da precarização.
Não faltam diagnósticos a confirmar as barreiras para ascensão de afrodescendentes, sobretudo mulheres negras. O acesso por cotas às universidades públicas multiplicou o número de formados, mas não resolveu as assimetrias na ocupação.
Desigualdades de raça e gênero travam o desempenho econômico do Brasil. A presidente do Ipea, Luciana Servo, lembrou que a discriminação tira 14% do PIB potencial. Equidade, portanto, impulsiona, não afunda a atividade. Gaynel Curry, membro do Fórum Permanente, assinalou que ações de diversidade de gênero não garantiram a inclusão de todas as mulheres; as afrodescendentes avançaram menos. Kellie Ognimba, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, destacou a sobrerrepresentação das negras em trabalho doméstico e funções de cuidado, quase sempre informais.
Pude falar da predominância do precário em detrimento do próspero nas políticas sociais que alcançam a população negra. O Brasil sabe criar modelos de construção de riqueza tanto quanto insiste em manter certos grupos no limite da vulnerabilidade. O Plano Safra 2023/2024 destinou R$ 360 bilhões ao crédito agrícola, mais que o dobro do orçamento do Bolsa Família. Do total, 70% ficaram com soja e milho, lavouras de exportação; feijão, da agricultura familiar, levou 1%, calculou Arnoldo de Campos, especialista na área.
É o caso de pensar por que uns estão fadados à precariedade, e outros à prosperidade. E corrigir. Um país que é capaz de fazer busca ativa de miseráveis também há de saber identificar potências e apoiá-las com crédito, assistência técnica, acesso a mercados. Há um jeito de pensar um crescimento econômico redistributivo, sobretudo em tempos de urgência para proteção ambiental (povos indígenas e comunidades tradicionais), economia de cuidados (ocupação para mulheres) e combate à fome.
Faltou no Fórum ênfase ao debate sobre segurança alimentar. Enquanto o mundo debatia as condições de vida dos afrodescendentes, a ONG Public Eye, suíça, reportava ao mundo que a gigante Nestlé adicionou quantidades elevadas de açúcar em alimentos para bebês e crianças (Leite Ninho e Mucilon) vendidos em países de baixa e média rendas, Brasil entre eles. Na Europa, de regulação mais rígida, a prática não foi identificada. A OMS recomenda que crianças de até 2 anos não consumam açúcares livres.