Aos 45 anos, ‘Cadernos Negros’ ainda é leitura obrigatória em meio à luta literária

Edição de nova série de poemas é parte do letramento racial e renovador

Acabo de ler “Cadernos Negros: Poemas Afro-Brasileiros”, volume 45, edição do coletivo Quilombhoje Literatura, publicação organizada com afinco pelos escritores Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa.

O número 45 não é referido aqui por acaso. Ele corresponde há quatro décadas e meia de luta e resistência pela literatura de autoria negra no Brasil.

Fundado em 1978, em São Paulo, no mesmo ano da criação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, hoje sob a sigla MNU, os “Cadernos Negros” representam uma trincheira editorial importante para o movimento social literário e se deve, particularmente, à determinação de um coletivo de intelectuais negros e negras que apostou em mudanças na ordem canônica estabelecida pelas academias e as igrejinhas das letras, onde o negro não tinha voz e era tratado de forma estereotipada.

Quando foi lançado, simbolicamente no mês de novembro, sob a iniciativa dos escritores Cuti (pseudônimo de Luiz Silva) e Hugo Ferreira, a publicação contou apenas com oito poetas participantes: Ângela Lopes Galvão, Celinha, Jamu Minka, Oswaldo de Camargo, Henrique Cunha Jr., Eduardo de Oliveira, além dos dois mentores da ideia.

O nome de batismo foi sugerido pelo poeta Ferreira e faz referência direta aos cadernos da escritora Carolina Maria de Jesus, festejada autora do livro “Quarto de Despejo”, morta um ano antes.

Como todo projeto da classe negra, seja proletária, seja intelectual, os “Cadernos Negros” apontavam para a cooperação mútua dos seus pares. Para tanto, foram agregando nomes de ativistas e aliados –alguns não negros, como o caso de Florestan Fernandes. Essa estratégia editorial serviu para aproximar da publicação ícones como Clóvis Moura e Lélia González, que prefaciariam a terceira e a quinta edição, respectivamente, publicadas em 1980 e 1982.

Lélia Gonzalez, feminista negra, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) – Foto: Januário Garcia

No cenário nacional, com o passar dos anos, os “Cadernos Negros” se fortaleceram e se consolidaram heroicamente como publicação independente, propondo também o resgate de figuras importantes no contexto da literatura negra do passado, incluindo nomes como os Cruz e Sousa, Luís Gama, Auta de Sousa e Lima Barreto, agora alçados à condição de mestres e precursores.

Com a publicação do número 45, percebemos que o formato ativista da edição cresceu e se fortaleceu. Com este novo volume, 56 poetas intercalam sentimentos em poemas que expressam o poder do chamado “lugar de fala” de cada um. Assim é que, em forma de protesto, Kasaburu se refere a “pretos encontros” no poema “Quilombo de palavras”: “Tecendo linhas,/ Enegrecendo trovas,/ Oralizando/ Pássaros,/ Corpos e cabeças,/ Sankofa e pretas/ Letras!”.

O mesmo se dá com Luciana Bento, que escreve porque vive “o cotidiano de criar e educar meninas-poesias”, se referindo às filhas. Em sua poesia “Quando você chegar”, diz: “Preto, quando você chegar/ Vou tomar um banho de flor/ Só pra você cheirar/ Vou trançar os cabelos daquele jeitinho/ Que dá pra puxar/ E fazer aquele feijão/ Que te faz delirar”.

Já Alessandra Martins, que se declara “poeta e ativista social”, recém-chegada aos “Cadernos Negros”, sentencia, numa homenagem a Jovelina Pérola Negra: “Era preta, bela, pele reluzente/ Samba de raiz, partido-alto/ Talento contundente”. Ou ainda: “Tinha o ‘Santo Forte’/ E a proteção do patuá / Nunca andou só,/ Era guiada pelos orixás”.

Detalhe de ilustração feita por Dalton Paulada para a capa do livro ‘Lima Barreto – Triste Visionário’, de Lilia Schwarcz – Companhia das Letras/Divulgação

Na mesma toada, Luís ‘Aseokaýnha’ celebra o marinheiro João Cândido em “Grota del Cane”: “João tomou,/ Cândido impeliu,/ Felisberto lavrou o termo/ – Acende o fogo, seu foguista!”.

A percepção que fica com a leitura desses autores e autoras é que os “Cadernos Negros” não perderam a essência do seu longínquo nascedouro. Suas raízes, germinadas das sementes lançadas pela geração de Solano Trindade, José Correia Leite, Abdias Nascimento e Ruth e Geni Guimarães, e frutificadas em Paulo Colina, Míriam Alves, Abelardo Rodrigues, Conceição Evaristo e o próprio Cuti, entre outros, são a base de um modelo ousado e renovador, que ainda propõe revoluções e mudanças.

Ressignificando o papel da literatura, sobretudo da produzida por negros, da cultura e da educação, a leitura desses “poemas afro-brasileiros” é parte do letramento racial que todos nós, enquanto sociedade brasileira de leitores, não podemos jamais deixar de consumir e absorver.

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