CEU: esperança de cidadania

Dentre as muitas humilhações que a pobreza gera, a maior é o paradigma que sobre ela se instituiu segundo o qual, em sendo para pobre, qualquer coisa serve. Argumentos aparentemente racionais prestam-se a justificar essa máxima e, dentre eles, a escassez de recursos, sobretudo no âmbito do poder público, para a implementação das políticas públicas de corte social.

Tais argumentos eternizam a concepção de que os seres humanos empobrecidos devem se satisfazer com serviços e bens de péssima qualidade, como se fosse um atavismo inerente à pobreza. Talvez de todas as conquistas que esse povo humilhado pode alcançar, seja a mais importante delas o direito à qualidade no que lhe seja ofertado, em especial pelo poder público; o direito a ter mais e melhor do que apenas as cestas básicas da solidariedade.

A cena mais emocionante da campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva continua sendo para mim a propaganda eleitoral em que um jovem reiterava o seu amor pelo país, e expressava que os sonhos que povoam o imaginário dos jovens brasileiros das classes populares são os mesmos sonhos e desejos dos jovens das classes sociais abastadas; senão por outras razões, pelo fato de que todos estão igualmente expostos aos apelos consumistas inerentes às propagandas fartamente veiculadas nos meios de comunicação de massa. Como ele dizia, todos sonham em ter um tênis ou uma camiseta de marca e outros sonhos eternamente frustrados: entrar na universidade; serviço de saúde de qualidade para escapar do Vietnã que é o nome que se dá hoje em São Paulo aos hospitais públicos; boa educação, professores bem formados e atentos às necessidades de seus alunos, lazer e cultura.

É a renovação dessa esperança de uma cidadania enfim vindoura que desperta nas populações despossuídas da cidade de São Paulo a criação do Centro Educacional Unificado (CEU) pela prefeitura de São Paulo. Um equipamento educacional que concentra múltiplas atividades: sala de computação, teatro, quadras poliesportivas, piscinas, oficina de artesanato, contadores de história, exposição de fotos, shows com bandas locais e apresentação de capoeira, quadra coberta e biblioteca.

Segundo a prefeitura, essas atividades esportivas e culturais poderão abranger todos os moradores da região, alunos ou não, incluindo pessoas da terceira idade. Bairros pobres, periféricos e geralmente violentos, como Guaianazes e Sapopemba, são o perfil para a localização desses Centros, com capacidade para atender cada um a 21.400 alunos.

A ousadia da proposta já atrai o engajamento de empresas e cidadãos. O apoio empresarial e crescente voluntariado podem contribuir para assegurar a sustentabilidade, expansão e sucesso dessa iniciativa. Nessa direção a Valisére doou 5 mil calções de banho para cada CEU; o Hospital Albert Einstein cederá profissionais para exames gratuitos para a população poder usar piscinas, etc.

Os riscos são grandes: a presença do narcotráfico no controle dessas regiões; a incerteza de recursos públicos suficientes para manter essas estruturas; os riscos de depredação, invasão pela marginalidade local; a precariedade do policiamento… Porém, é louvável que a resposta do poder público em condições tão adversas não seja a habitual solução de mais repressão no lugar de mais atenção social, mas, ao contrário, levar serviços de qualidade a áreas onde o que há historicamente é desesperança e abandono.

É nessa mudança de concepção sobre o atendimento a ser dado a essas populações que reside o aspecto mais relevante do projeto. No artigo ‘‘Ética e Desenvolvimento” (13/8), Eliane Cantanhêde relata a visão do diretor do BID Bernardo Kliksberg sobre as razões pelas quais a Costa Rica e o Uruguai são os países com menos desigualdade em nosso continente.

Segundo ele, ‘‘porque a Costa Rica tem um projeto histórico, desde 1948, de investir muito fortemente nas pessoas. É um país pobre, sem muitos recursos naturais, sem petróleo, mas que investe tudo o que pode em gente, em educação e saúde. Ou seja, que mobiliza seu capital para o desenvolvimento humano. No Uruguai, há políticas públicas muito ativas voltadas para as pessoas, com uma sociedade civil muito mobilizada”. É, ainda segundo ele, a ausência dessa concepção de desenvolvimento que articula ética e economia que determina a amplitude da indigência humana na maioria dos países da região.

Provavelmente, com o custo desse equipamento inaugurado pela prefeitura paulistana seria possível construir centenas de escolas de lata como as tantas que existem em São Paulo, e atender a um número muito maior de crianças com a qualidade que se conhece, em que no calor as crianças sufocam e no inverno quase morrem de frio. Porém, milhares de escolas de lata ou assemelhadas não são capazes de gerar o sentimento de dignidade humana resgatada que um único CEU produz e estabelecer o novo paradigma de política pública a ser exigido por todos os que padecem de privação social. Quando um CEU é possível, o céu pode se tornar o limite.

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