Antirracismo é prática diária e exige revisão da nossa história

O apelo da ativista americana Angela Davis, ícone feminista e do movimento negro nos EUA, durante sua passagem no Brasil, em 2019, quando participou de eventos públicos e falou a plateias lotadas, foi para que os brasileiros lessem Lélia Gonzalez. Agora, depois de milhares terem se declarado antirracistas após os protestos dos últimos dias, é bem importante reforçar que Lélia, que morreu em 1994, aos 59 anos, é dessas protagonistas imprescindíveis de se conhecer para entender o que está na pauta política do país há 50 anos, mas até então na margem. Inclusive, se os livros de história lhe dessem o devido destaque, contribuiriam bastante para narrar de forma mais genuína e bem menos ‘embranquecida’ a resistência do movimento negro.

Quando se fala em branquitude, aliás, também é sobre tudo isso. “Branquitude” não é xingamento, é crítica à construção de mundo onde brancos impõem conceitos, valores, estéticas e narrativas, considerando-se “naturalmente mais aptos” do que outras raças para ocuparem os espaços de criação, conhecimento, poder e visibilidade, mas o fazem num Brasil permeado pela cultura negra, enraizada na nossa formação. Lélia, historiadora e filósofa, inclusive criou um conceito para falar sobre isso, a “neurose cultural brasileira”, que tem o racismo como sintoma – e a manutenção dos privilégios brancos como uma das consequências.

Nos anos 70, apesar de Lélia, de Abdias do Nascimento e outros intelectuais negros, o debate era menos sobre a branquitude e mais sobre como o movimento se articularia naquele momento político para se fortalecer e dar visibilidade às suas pautas. Ela, que seria naquela década uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, a organização referência da questão racial no país à época, ocupava também espaços no movimento feminista, e foi fundamental para formatar o discurso crítico ao feminismo brasileiro predominantemente branco.

Era plena ditadura militar, e pela sua atuação no movimento negro, foi fichada, como tantos outros ativistas, considerada subversiva. “Em tempos de ditadura, qualquer denúncia de racismo era recebida como tentativa de criar sentimentos antinacionais. Falar de racismo significava dar vida àquilo que ‘não existia’ na sociedade brasileira. Na visão oficial, não existiam grupos raciais, desigualdades entre negros e brancos e discriminação, tampouco preconceito. Para os generais que comandavam a nação, nada disso fazia parte da nossa realidade’. O trecho está no livro “Lélia Gonzalez”, dos autores de Alex Ratts e Flavia Rios, e faz parte da coleção Retratos do Brasil Negro.

A negação do racismo seguiu democracia adentro. Em 1988, um episódio do governo Sarney reitera a insistência na manutenção do mito da democracia racial. Como integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985 e vinculado ao Ministério da Justiça, González assistiu, junto às outras conselheiras, o levante conservador à proposta do CNDM de realizar, nos 100 anos Abolição da Escravatura, o “Tribunal Winnie Mandela”. Seria um evento para julgar simbolicamente a discriminação e o racismo contra a mulher negra no Brasil.

No livro “Explosão Feminista: arte, cultura, política e universidade”, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, Jacqueline Pitanguy, presidente do Conselho naquele momento, narra que foi chamada às pressas pelo então ministro Paulo Brossard, que lhe perguntou, aos gritos “Como você pode dizer que num país onde Machado de Assis era o presidente da Academia Brasileira de letras existe racismo?”. O evento aconteceu, mas um ano depois as mulheres renunciaram coletivamente ao Conselho pelas ofensivas que receberam.

A negação do racismo significa uma prática de dominação e é projeto de poder. Reconhecê-lo e assumir que sua manutenção é perversa é o primeiro passo para avançarmos numa sociedade que não assassine ou adoeça pessoas negras diariamente. Antirracismo, para os brancos, é prática diária de escuta, leitura, revisão da história e da linguagem de mundo. É leitura que vai de Lélia a autoras contemporâneas, como Bianca Santana, Djamila Ribeiro, Juliana Borges, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo e muitas outras. É escuta atenta. É assumir uma prática pessoal (que é política) de transformação, e não de benevolência.

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