Entenda por que falamos que ‘vidas negras importam’ em vez de ‘todas as vidas importam’

Direto aos fatos: Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos, morreu após cair de uma altura de 35 metros, no Recife, ao sair para procurar a sua mãe, a faxineira Mirtes Renata Souza. Ela seguia trabalhando durante o isolamento social com a companhia de seu filho por não ter opção. Miguel sentiu falta da mãe, que naquele momento passeava com o cachorro de Sari Corte Real, e foi colocado pela patroa sozinho no elevador, saiu num andar sem proteção e não resistiu aos ferimentos da queda. O exemplo reflete o descaso que pessoas brancas têm pela vida de pessoas negras e reforça a pergunta: e se fosse o filho da patroa?

Todas as vidas importam, claro, mas se o exemplo acima não te convence de que olhar para a vida da população negra é urgente e sempre foi, você está colaborando com a manutenção do projeto de exterminação da população negra e também é culpado por todas as mortes de corpos inocentes. Se nem isso justifica, temos dados numéricos.

“O impacto do coronavírus entre a população negra é devastador.” Quem afirma é a ONU (Organização das Nações Unidas) que na terça-feira, dia 2, apontou o Brasil como um dos países mais críticos nos cuidados da doença olhando da perspectiva racial. “Expuseram desigualdades alarmantes em nossas sociedades. Em muitos outros lugares os dados por raça e etnia simplesmente não estão sendo nem coletados ou reportados”, disse Michelle Bachelet, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, em comunicado.

Getty Images/iStockphoto

Uma pesquisa da Agência Pública reforça a fala de Bachelet. A cada três brasileiros negros hospitalizados pelo vírus, um morre; enquanto a proporção para os brancos é de um óbito a cada 4,4 casos da doença. Os dados só passaram a ser separados por cor no dia 11 de abril, praticamente um mês e meio após a confirmação do primeiro caso no país. “A quantidade de notificação sem informação de cor só reforça o racismo institucional, que torna os negros invisíveis”, diz a médica Rita Helena Espirito Santo Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).

Você consegue entender quantas vidas negras nós perdemos para o desprezo das autoridades ou para a falta de acesso? Além disso, quantas vezes você já teve medo de ocupar determinados espaços ou foi seguido em uma loja só pelo fato da sua cor? Se você for branco e não estava agindo de forma imoral (e neste caso a branquitude, ainda assim, não é punida de acordo com a lei que colonialmente só vale para os negros), provavelmente vai dizer que “nunca”.

“Quantas vezes você já foi seguido em uma loja qualquer por causa da sua cor?”

Poderia parar por aqui, mas tenho outras situações que comprovam a urgência de focarmos na vida, inclusão e integridade da comunidade negra. Autores como Lélia Gonzales, Maria Aparecida Silva Bento e Sueli Carneiro falam sobre como o mundo foi criado para um corpo específico (branco) e que o poder de mudança está na decisão da branquitude de agir em prol do coletivo – ou ao menos tomar atitudes para ajudar, como pagar a inscrição de jovens negros que não conseguiram a isenção para o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) ou fazer doações em dinheiro às instituições que lutam pelos negros.

“O poder de mudança está na decisão da branquitude de agir em prol do coletivo”

Então, nada justifica trocar o “vida negras importam” por “todas as vidas importam”, afinal os números comprovam que a população negra no Brasil é desassistida em relação a saúde e segurança pública, além de ser minoria na hora de receber educação de qualidade e consequentemente entrar no mercado de trabalho e, também, é refém de tantas outras desvantagens na sociedade. Não somos iguais, é isso.

Minha última tentativa, agora, é ilustrar com a versão do jogo do privilégio branco produzida pelo ID BR:

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