À medida que a CPI da Covid se aproxima do fim, aumenta a inquietação sobre resultados práticos dos seis meses de depoimentos, recolhimento de provas, elaboração do relatório final. Não é desconfiança imotivada, dado o número de comissões parlamentares que deram em rigorosamente nada no país. Mas os quase 600 mil brasileiros mortos pelo coronavírus exigem articulações políticas e jurídicas, bem como mobilização da sociedade civil, para responsabilizar e punir os culpados pelo enfrentamento criminoso à pandemia.
Por encomenda do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), juristas liderados por Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça e professor de Direito Penal na USP, apontaram crimes do presidente da República e de integrantes do governo, incluindo Eduardo Pazuello e Elcio Franco, ex-titular e ex-secretário executivo do Ministério da Saúde. Para o grupo, Jair Bolsonaro cometeu crimes contra a humanidade e contra saúde, administração e paz pública, infringiu medidas sanitárias, praticou charlatanismo, incitação ao crime e prevaricação. Há violações comuns, previstas no Código Penal, e crime de responsabilidade, que levaria ao impeachment. O mandatário brasileiro também poderá ser levado ao Tribunal Penal Internacional, em Haia (Holanda). Denúncia contra ele já foi encaminhada por representantes dos povos indígenas.
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) avisou que usará o parecer no relatório final da CPI. A previsão é apresentá-lo no fim deste mês, se novas linhas de investigação não exigirem que os trabalhos invadam outubro. A partir daí, a responsabilização de Bolsonaro dependerá do procurador-geral da República e do presidente da Câmara dos Deputados. Como Augusto Aras e Arthur Lira são aliados do mandatário, o relator pretende recomendar que ambos tenham prazo para decidir sobre as acusações.
Na sabatina no Senado em que acabou aprovado para o segundo mandato na PGR, Aras informou que um grupo de procuradores já analisa o material probatório da CPI, para que ele possa emitir um parecer até 30 dias após a publicação do relatório de Renan Calheiros. Cabe ao procurador-geral buscar a responsabilização criminal dos que têm prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, incluindo presidente da República e ministros. A decisão de iniciar processo de impeachment é exclusiva do presidente da Câmara. Hoje Lira está sentado sobre 131 pedidos. Nem os discursos golpistas de Bolsonaro no Dia da Independência o fizeram mudar de posição.
Por tudo isso, a sociedade civil já se mobiliza por justiça. A Anistia Internacional Brasil e organizações como Oxfam, Inesc, Idec, Abrasco, Terra de Direitos, ONG Criola, MNDH, Observatório das Metrópoles e Justiça Global estão reunindo assinaturas para que o PGR dê prosseguimento às investigações iniciadas pela CPI da Covid. O pedido será encaminhado tanto a Augusto Aras quanto ao Ministério Público Federal. Daniel Sarmento, ex-MPF, hoje professor de Direito Constitucional da Uerj, critica a centralização: “É deficitário um desenho institucional em que todo o resultado da CPI para fins de responsabilização do presidente da República depende do PGR. Sobretudo numa investigação parlamentar, deveria haver possibilidade de revisão pelo Conselho Superior do Ministério Público”.
Terça-feira que vem, o Movimento Alerta (SBPC, CSDDH e Instituto Ethos, além de Anistia, Idec, Inesc e Oxfam) se reúne para traçar a estratégia pós-CPI. É do grupo o relatório Mortes Evitáveis, que a médica Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Brasil, apresentou aos senadores. Pesquisadores de UFRJ, Uerj e USP estimaram que, no primeiro ano da pandemia, 120 mil brasileiros vítimas da Covid-19 estariam vivos se o presidente e seu governo não tivessem sabotado medidas não farmacológicas, como uso de máscaras, distanciamento social e restrição de atividades. O epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, também na CPI, calculou que três de quatro mortes seriam evitadas com ações adequadas e vacinação acelerada.
Há um conjunto de atos e omissões, de motivação político-ideológica ou interesse financeiro, que não pode ficar impune. Daí a necessária pressão para responsabilizar e punir os culpados. O relatório da CPI não alcança autoridades estaduais e municipais que, a exemplo do presidente da República, boicotaram recomendações da ciência e puseram em risco a população que deveriam proteger. Não faltaram no Brasil da pandemia governadores, prefeitos e parlamentares igualmente negacionistas e irresponsáveis. As conclusões do Senado podem — e devem — servir de inspiração para investigações por assembleias legislativas, câmaras de vereadores e ministérios públicos locais. Para que o país não precise repetir o calvário que foi a pandemia da Covid-19.