Após 34 anos, Brasil volta a ter diretora negra em cartaz

Documentário “O Caso do Homem Errado”, de Camila de Moraes, é segundo longa-metragem dirigido por uma mulher negra exibido comercialmente no país. Filme aborda violência policial contra negros.

Por Renata Galf Do DW

Camila de Moraes segura cartaz de seu filme em manifestação contra violência policial contra negros, em Porto Alegre (Foto: Marcos Vinicius)

Pela segunda vez na história do cinema brasileiro, um longa-metragem dirigido exclusivamente por uma mulher negra chega ao circuito comercial. O Caso do Homem Errado, da diretora Camila de Moraes, entra em cartaz no dia 22 de março em Porto Alegre.

O longa documentário aborda a violência policial contra a juventude negra. Ele foi selecionado em 2017 para o Festival de Cinema de Gramado e ganhou o prêmio de melhor longa-metragem no 9º Festival Internacional de Cine Latino – Latinuy.

A última vez que um longa dirigido por uma negra chegou ao circuito comercial foi em 1984, com o filme de ficção Amor Maldito (1984), de Adélia Sampaio, a primeira cineasta negra do Brasil.

De acordo com levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (GEMAA-UERJ), a participação das mulheres em cargos de direção em filmes brasileiros aumentou nas últimas décadas, passando de 3% nos anos 1980 para 10% em 2016. Mas isso não inclui mulheres negras.

Segundo dados da Ancine, dos 142 longas-metragens brasileiros lançados nos cinemas em 2016, 75,4% dos diretores são homens brancos, e 19,7%, mulheres brancas, enquanto homens negros representam apenas 2,1%, e mulheres negras não assinaram nenhuma produção.

Essa ausência nas salas de cinema, no entanto, não condiz com o atual cenário de profissionais e cineastas negros no Brasil. Exemplo disso é o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe, que em 2017 chegou à sua décima edição contando com 66 produções nacionais.

Para Renato Cândido, vice-presidente da Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), a ausência de diretoras negras em cartaz ao longo de 34 anos mostra uma estrutura racista institucionalizada.

“Se os cargos de decisão estão nas mãos de homens brancos. as narrativas dessa branquitude também serão preponderantes”, afirma ele.

O Caso do Homem Errado conta a história de Júlio Cesar de Melo Pinto, homem negro que foi executado pela polícia de Porto Alegre em 1987.

Detido como sendo um dos assaltantes de um supermercado, o operário tinha saído de casa sem RG e sofreu um ataque epilético antes de ser preso erroneamente pela Brigada Militar. Júlio César foi fotografado sendo colocado com vida na viatura, mas meia hora depois chegou ao pronto socorro morto, baleado por dois tiros.

Embora tenha acontecido há mais de 30 anos, o episódio continua atual. Segundo o Mapa da Violência divulgado em 2017 pelo escritório brasileiro da ONU, a cada dez pessoas assassinadas no Brasil, sete são negras. Negros têm 12 vezes mais chances de serem assassinados no Brasil do que não negros. E, dos jovens de 15 a 29 anos, um negro é morto a cada 23 minutos.

Longa conta a história do operário negro Júlio Cesar de Melo Pinto, que foi executado pela polícia de Porto Alegre em 1987

Os percalços até a sala de cinema

Entre os entraves para chegar à exibição comercial, Moraes aponta tanto a dificuldade para obter financiamento quanto o racismo institucional.

Ela conta que o processo para viabilizar O Caso do Homem Errado começou em 2010 e, apesar da parceria com uma produtora de cinema, só se concretizou a partir do apoio financeiro da comunidade negra de Porto Alegre.

A cineasta conta emocionada que está desde maio procurando uma distribuidora, mas nenhuma se interessou. Para Moraes, isso acontece porque muitos não consideram o tema do racismo relevante.

“Em uma delas, a pessoa me falou que o nosso filme não tinha o perfil. Mas não é a família dela que está sendo morta. Enquanto a sociedade brasileira não entender que a população negra está sendo morta, nosso filme nunca vai ter o perfil”, afirma.

Sem distribuidora, o trabalho de regulamentar o filme e de negociar com as salas de exibição está sendo feito por ela e por Mariani Ferreira, que também é negra e assina a produção executiva do filme.

“Estamos negociando com salas de outras cinco capitais [além de Porto Alegre], é um processo de formiguinha”, explica Moraes.

Segundo Cândido, parte dos filmes produzidos por cineastas negros tem melhor repercussão no exterior do que nacionalmente. “É difícil dialogar com o mercado. Ele quase nunca nos enxerga como consumidor, como narrativa que possa vender, temos que criar nossas distribuidoras e parques de exibição. Mas ao mesmo tempo estamos tentando construir diálogos.”

Enquanto isso, apesar de o documentário de Moraes alcançar o feito de ser o segundo longa-metragem de uma diretora negra a ser exibido comercialmente no Brasil, Adélia Sampaio continua sendo a última e única a ocupar o posto quando se trata de um longa de ficção, com seu filme de 1984.

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