Quando vimos “Atlanta” pela última vez foi há quase quatro anos, mas parece mil anos atrás e também só um momento atrás. A segunda temporada da série terminou em 2018, na rede FX. Estamos falando de um hiato longo, mesmo para uma série que sempre manteve um senso de tempo muito próprio e fluido.
De lá para cá tivemos (para começar), uma pandemia, um ataque ao Congresso e o acerto de contas racial surgido depois do assassinato de George Floyd, que ecoa como um dos temas dessa série ricamente desenhada: que cara a vida tem para negros americanos como os personagens da série, cujas situações estão sempre sujeitas a mudar a qualquer momento?
Se sempre foi difícil classificar “Atlanta” –é uma comédia, exceto quando é um drama, exceto quando se torna um filme de terror–, isso pode se dever ao fato de que a série trata de pessoas complicadas, cujas circunstâncias estão permanentemente a um passo de qualquer desses três registros.
E os dois episódios iniciais da terceira temporada de “Atlanta”, que estreou 24 de março, nos Estados Unidos, mostram o programa em sua melhor forma, indo a lugares novos e ao mesmo tempo mantendo aquela sensação perturbadora de que o terreno pode mudar sob os pés de todos os personagens, a qualquer momento. Ainda não há data de estreia no Brasil —as duas primeiras temporadas estão disponíveis na Netflix e no Star+.
Quando reencontramos Alfred (Brian Tyree Henry), que como rapper usa o pseudônimo Paper Boi, seu primo e empresário Earn (Donald Glover), e seus amigos Darius (LaKeith Stanfield) e Van (Zazie Beetz), a vida parece ter melhorado, pelo menos em termos materiais.
Alfred está em turnê pela Europa, mas não se trata da turnê que ele estava iniciando no final da temporada dois, quando ainda era um artista aspirante que vivia um momento decisivo em sua carreira.
Enquanto isso, Alfred se prepara para subir ao palco em um show em Amsterdã, e descobrimos que ele voltou à Europa mas dessa vez como astro. Ele tem o direito de pedir um adiantamento de 20 mil euros (R$ 100 mil) sobre seu cachê, recebe o dinheiro sem discussão, e joga dinheiro para os fãs que o cercam na rua. Há motoristas, há hotéis de luxo, há noitadas de sexo casual nesses hotéis de luxo.
Os personagens estão em um lugar diferente, agora, e essa diferença é perceptível de muitas maneiras. O salto temporal consegue a um só tempo retomar a série de onde ela parou e levar a história adiante.
Mas antes que possamos chegar a esse ponto, acontece um desvio. O espetacular e perturbador primeiro episódio mostra um barco, em algum lugar da Geórgia, longe de qualquer dos personagens principais. Somos informados de que o lago onde o barco está recobre as ruínas de uma cidade negra autossuficiente que foi encoberta pelas águas depois da construção de uma represa.
(Existe um histórico vergonhoso de comunidades como essa sendo erradicadas para facilitar a criação de represas, lagos, e até mesmo do Central Park.) Sob a superfície lodosa, a história explica, fantasmas vingativos esperam pela oportunidade de uma revanche.
E em seguida a história muda para Loquareeous (Christopher Farrar), um menino negro problemático forçado a viver com duas mulheres brancas depois que um funcionário de escola testemunha uma cena de castigo corporal e telefona para o serviço de proteção à criança. A premissa também toma de empréstimo elementos de uma história real perturbadora, de homicídios seguidos por suicídio envolvendo duas mulheres e seis filhos adotivos.
As novas mães meio hippies de Loquareeous encurtam seu nome para “Larry” e o ensinam que “os alimentos que você está costumado a comer” não são saudáveis. Mostrando completa falta de noção, elas encorajam os filhos a cantar canções de trabalho enquanto as ajudam em seu jardim orgânico. A casa é precária, a comida é escassa, e Loquareeous se lembra do aviso de sua mãe biológica: “Essas pessoas brancas vão matar você”.
Porque estamos falando de “Atlanta”, a história passa por diversas viradas surreais e inesperadas. Em seguida, ela nos conduz a um quarto de hotel na Europa. “Atlanta” sempre foi uma série repleta de digressões, que chega ao ponto a que deseja ir por meio de desvios. Mas o que uma história tem a ver com a outra? Diretamente, não muito. Tematicamente, tudo.
Para Alfred, Amsterdã parece o oposto de uma história de terror. Quando o encontramos no segundo episódio, ele foi preso, o que traz à memória o momento em que ele e Earn são presos no começo de “Atlanta”. Mas em Amsterdã, a polícia é solícita. Alfred recebe uma refeição de gastrônomo em sua cela confortável, e não demora a ser libertado. Na Europa, como Paper Boi, ele é bem-vindo, respeitado e bajulado.
Mas calma lá –é dezembro na Holanda, a temporada natalina, do “Zwarte Piet”, o ajudante negro de Sinterklaas (Papai Noel), um personagem tradicionalmente retratado com o rosto pintado de negro. Aqui, acolá, em toda parte, há macroagressões por pessoas de rosto pintado –uma criança de bicicleta, o porteiro do hotel–, que os holandeses minimizam e entendem como diversão inócua.
A exaustão de Alfred –Henry tem a capacidade de demonstrar cansaço com mil inflexões diferentes– diz tudo. De repente estamos de volta ao lago, onde não importa o quanto você ache estar seguro, fantasmas da história se erguem para arrastá-lo às profundezas. Vivemos um tipo diferente de história de terror, onde a falta de noção inconteste de pessoas supostamente tolerantes pode magoar tanto quanto a hostilidade escancarada.
Meu colega Wesley Morris escreveu na semana passada sobre o momento em uma cerimônia de premiação no qual as estrelas negras do tênis Venus e Serena Williams terminaram como vítimas colaterais de um insulto casual da cineasta Jane Campion.
“Elas eram convidadas mas repentinamente se tornaram intrusas”, ele escreveu. “Em um momento estavam lá como apresentadoras, no seguinte pareciam ter sido derrubadas de um alçapão”. O trecho poderia servir como uma descrição presciente da experiência de Alfred nesse episódio de “Atlanta”. Você pode ter fama, realizações, ingressos VIP. Mas até as velhas ruas calçadas de pedra em Amsterdã escondem alçapões.
De acordo com a rede FX, a maior parte da temporada três se passará na Europa, o que desperta algumas questões. Como é que “Atlanta” funciona sem Atlanta? E o que a cidade natal deles representa, para os personagens centrais? É um lugar de onde eles podem sair ou uma história que sempre carregam com eles como bagagem?
Os dois primeiros episódios, desorientadores como sempre e gravados com elegância notável por Hiro Murai, o diretor da série, sugerem uma resposta. Atlanta é o lugar onde esses personagens estão, quando saem em busca de contentamento, propósito e equilíbrio.
Os dois episódios enviados aos críticos para resenha são apenas um vislumbre, mas não oferecem qualquer indicação de que a série tenha perdido o passo apesar da ausência de quatro anos. Talvez a pausa só tenha servido para permitir que o futuro tivesse tempo de recuperar o atraso.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci