Após Mandela, quem será a ‘autoridade moral’ do mundo?

A lista de assuntos globais de alguma forma tratados por Mandela é longa: crises em países como Burundi, República Democrática do Congo, Indonésia, Israel-Palestina, Caxemira, o atentado de Lockerbie (que derrubou um avião sobre a Escócia em 1988, matando cerca de 260 pessoas), temas como conscientização sobre a aids e Copa do Mundo.

Em algumas disputas, como o longo conflito em Burundi, ele foi mediador. Em outros, como o estigma relacionado ao HIV, ele foi ativista.

Mas nem todas as suas contribuições foram bem-sucedidas ou bem-recebidas globalmente. Mandela se opôs à intervenção em Kosovo, em 1999, e muitas vezes criticou a política externa americana – ao mesmo tempo em que despertou críticas sua relação estreita com figuras polêmicas, como o líbio Muamar Khadafi e o indonésio Suharto. Para muitos, ele também demorou demais para lidar com a epidemia de aids na África.

Mas mesmo seus críticos concordam que ele alçou status inigualável no cenário internacional.

Mandela tinha a capacidade de mediar situações nas quais outras pessoas provavelmente fracassariam, aponta Christopher Alden, da London School of Economics – citando como exemplo a Indonésia.

Em 1997, a visita de Mandela em Jacarta ao prisioneiro Xanana Gusmão, de Timor Leste, contra a vontade de Suharto, abriu caminho para um referendo e para a libertação de Gusmão, dois anos depois.

“(Mandela) tinha autoridade moral que transcendia a política comum que guia as piores condutas dos atores políticos”, diz Alden, citando a natureza “globalizada” da luta anti-apartheid da qual o sul-africano se tornou símbolo.

Qualidades

Ele lembra que o mundo teve outras figuras de destaque em anos recentes, mas em geral elas se focaram em políticas internas de seus países ou agem em nome de um Estado.

“(O ex-presidente dos EUA) Jimmy Carter foi à Coreia do Norte para discutir temas sensíveis e teve um papel importante em esforços de democratização na África, por meio de monitoramento eleitoral, mas ele não tem o poder emocional de Mandela”, segue Alden. “O envolvimento do (ex-premiê britânico Tony) Blair no Oriente Médio foi uma tentativa, imagino, de fazer algo assim – e de polir sua imagem após a Guerra do Iraque -, mas fracassou.”
Talvez a intervenção mais notável de Mandela tenha ocorrido em 2005, após a morte de seu filho, Makgatho, de aids. Num momento em que a doença ainda era tabu na África, Mandela instou os sul-africanos a serem mais abertos a respeito da epidemia.

O biógrafo David James Smith acha que a personalidade de Mandela foi um fator-chave em sua ascensão como figura paterna internacional – uma qualidade rara.

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Grupo The Elders, formado por Mandela em 2007, inclui Martti Ahtisaari, Kofi Annan, Ela Bhatt, Lakhdar Brahimi, Gro Harlem Brundtland, Fernando Henrique Cardoso, Jimmy Carter, Hina Jilani, Graça Machel, Mary Robinson, Ernesto Zedillo e Desmond Tutu (Imagem: Reprodução/BBC)

“Ele falava com reis e populares do mesmo jeito. Todos adoravam o fato de ele se lembrar de nomes e dar-se ao trabalho de falar com todo mundo. Ele tinha essas grandes qualidades humanas que as pessoas admiram”, diz.

“Não consigo pensar em ninguém que seja igual. (A política birmanesa) Aung San Suu Kyi incorpora alguns dos mesmos valores, mas não se pode dizer que ela seria reconhecida da mesma forma.”

Ex-prisioneira política, ela é uma figura muito interessante, diz Simon Marks, correspondente da agência Feature Story News em Washington. Ele diz que ela tem autoridade moral, mas resta esperar os desfechos de sua trajetória política neste período de abertura em Mianmar.

“Será que ela poderia (substituir Mandela)? Talvez, mas não sabemos o que será de sua história política.”

Gandhi

Gandhi, Mandela e Suu Kyi foram todos prisioneiros políticos, e esse sacrifício pessoal é uma parte importante de seu papel, afirma Marks. Mas há outros prisioneiros de consciência, em lugares como China e Coreia do Norte, que são desconhecidos.

“Em algum momento, eles podem emergir como agentes de mudança nesses países. Isso requer uma combinação de sacrifício pessoal – ainda que isso seja cínico -, no momento certo, em que possam capitalizar sobre esse sacrifício para ter mais chance de realizar mudanças.”

Mas talvez figuras extraordinárias como Mandela só apareçam de tempos em tempos, pondera Marks. Nesta era de mídias sociais, talvez seja mais difícil estabelecer uma reputação de longo prazo, uma vez que reputações são construídas e derrubadas com tanta rapidez.

Em seu 89º aniversário, Mandela formou o grupo The Elders (“Os Anciões”, em tradução livre), com outras figuras mundiais (incluindo Fernando Henrique Cardoso), para oferecer expertise “sobre alguns dos mais difíceis problemas globais”, diz o site do grupo.

“Ainda esperamos para ver se uma organização de líderes conseguirá fazer o mesmo que um indivíduo (como Mandela)”, afirma Alden.

“É uma pessoa que só aparece uma vez a cada geração. A humanidade precisa desse tipo de pessoa. Sem elas, se acentua a possibilidade de cairmos no tipo de confronto selvagem de que somos capazes. Espero que seja a hora delas, mas no panorama não vejo ninguém como ele.”

Foto em destaque: Reprodução BBC News 

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