Após vencer racismo e gordofobia com arte, ela transformou poemas em disco

Enviado por / FonteEcoa, por Fred Di Giacomo

Então o poema começa, meus amigos e amigas. Sim, o poema começa quando o batuque eletrônico do pop se encontra com os tambores ancestrais e monta a cama para a voz da pernambucana Luna Vitrolira. “Voz é vontade de existência”, diz Luna. O poema começa e exorciza demônios para nos levar aos céus. O poema começa e o que ouvimos são tristezas que precisam ser expurgadas para que a beleza, enfim, emane.

Luna, 28, é poeta. Seu livro de estreia “Aquenda – o amor às vezes é isso” foi finalista do Prêmio Jabuti 2019, o mais importante do país. Mas a pernambucana não é dessas poetas que se escondem em torres de marfim, escrevendo versos ocos que jamais serão lidos. Sua principal influência é a poesia oral do Vale do Pajeú, interior de Pernambuco: “Para mim a linguagem é impensável sem a voz!”, diz Vitrolira.

O Pajeú é uma região formada por 17 cidades, onde a poesia popular floresce na terra seca. “O lugar do Rio Pajeú é onde Luna tem o início dessa coisa da poesia. Lá tem essa tradição que diz que quando alguém bebe água do rio Pajeú, imediatamente vira poeta.”, diz Amaro Freitas, produtor musical do disco de Luna e companheiro da artista.

Quando lançou seu livro “Aquenda”, a jovem multiartista já tinha dez anos de caminhada. Mas transubstanciar sua fala poética em tinta que rasga o papel acabou colocando-a em outro lugar.

O poema começa quando pulo da ponte e deixo no asfalto/ as minhas sandálias pra morrer descalça sufocada num verso
Luna Vitrolira

Free jazz com palavras

“Sempre que eu toco nesse lugar da memória da infância vem sempre a imagem de momentos de dor, infelizmente.” Ter sofrido gordofobia e racismo na infância, deixou Luna insegura e com dificuldade de estabelecer vínculos.

Sua ponte com o mundo acabou sendo a escrita: “Uma memória muito forte que vem para mim, sou eu no quarto da minha mãe [de noite], sentada em frente ao banheiro, aproveitando uma frestinha de luz que saía de lá, escrevendo”.

Luna Vitrolira: “Isso me fez criar um altar de proteção pra minha criança. Que foi justamente o altar que eu levei pra o filme” (Foto: Reprodução/Aquende/YouTube)

A pequena Luna escrevia para respirar, mas como nasceu o amor de Luna pelas palavras? “Começou com diários, com tentativas de letras de música e isso se potencializa com uma banda do sertão de Pernambuco, uma banda chamada Cordel do Fogo Encantado da qual eu me tornei fã aos nove, dez anos de idade.” Lirinha, vocalista e letrista do Cordel, banda que nasceu em Arcoverde (PE), é um dos artistas que fazem participações especiais no disco de Luna.

Além dele, estão na obra as poetas Roberta Estrela D’Alva, Mel Duarte, Cristal, Tatiana Nascimento, Bell Puã e Bione; a cantora Xênia França e o baterista Pupillo — produtor que tocou muitos anos na Nação Zumbi, maior banda de Pernambuco e uma das mais importantes do país.

Se, na “versão livro” de “Aquenda” já está lá o questionamento do amor romântico que “mata de ciúme e de raiva” e controla o corpo das mulheres, na versão disco isso assume foco total. Os respiros para um amor que cura ou que brinca resumem-se a faixa “Ajoelha e Reza”. Sobre bases, que ora flertam com jazz e maracatu; ora flertam com o brega-funk e o pop, Luna declama poesias num cantar próprio, que lembra os trabalhos de Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, nos anos 80. Trabalhos que Luna confessa ter ouvido muito ao longo da vida.

“É uma poesia que não está só no lugar do rap, mas também não é glosa, não é cantoria, nem é só poesia com um fundo musical”, diz o parceiro de Luna, Amaro Freitas.

Um coração que bate às vezes espanca.
Luna Vitrolira

Existe amor em PE?

“Aquenda” começou palavra, tornou-se som e virou imagem no belo curta-metragem com o mesmo nome, dirigido por Gi Vatroi e Aida Polimeni. Ainda que a artista destaque que sua escola foi a mesa de glosa do sertão pernambucano, é impossível não assistir a fusão de ancestralidade e cultura pop do vídeo e não lembrar de “Lemonade” de Beyoncé.

Luna Vitrolira transformou seu disco finalista do Prêmio Jabuti em disco. (Foto: Estúdio Orra)

Talvez seja neste curta-metragem que o trabalho de Luna atinge sua potência múltipla. “Mulher de três bocas”, ela canta, ela recita e ela atua — dando-nos um gostinho do que é assistir suas performances poéticas nas ruas ou presenciar a poesia falada e cantada em cantorias e mesas de glosa no sertão do Pajeú.

“Luna, existe amor, afinal?”, pergunto.

“Existe, sim.”, ri ela. Mas não se trata do amor idealizado e recheado de padrões, onde quem é gorda ou negra não tem vez. Esse “amor não é real”, como ela repete em “Não é real”, última faixa do disco-livro . Pergunto, então, das agruras de ser produzida musicalmente pelo par romântico, Amaro Freitas:

“Fiquei pensando aqui nessa pergunta Foi muito importante poder viver o amor como parte desse processo criativo… Me curou de muitas questões do meu passado que fazem parte do livro/disco… Me senti muito à vontade, segura, muito acolhida… eram rituais bonitos… Colocou tudo num lugar muito especial, sabe! O carinho, o aconchego e os flertes durante os processos de criação e gravação também tornaram tudo tão divertido”. (risos)

sou uma mulher de três bocas
que gosta de ser explorada
mas primeiro
se ajoelha meu bem
e reza
Luna Vitrolira

Assista ao filme “Aquenda – O amor às vezes é assim”

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