Arqueólogos acham vestígios africanos em construção do século 18 nos EUA

Por: Paloma Oliveto

Em meio a revolta, fadiga e chibatadas, os escravos que ajudaram a construir os Estados Unidos deixaram sua herança cultural, arrancada com eles da África, em uma das mais importantes construções históricas do país. Arqueólogos da Universidade de Maryland descobriram na imponente estufa da Mansão Wye, o único testamento iluminista ainda de pé no país, uma face africana escondida entre os tijolos.

A equipe escavou a orangerie, onde cresciam laranjeiras e limoeiros, um importante patrimônio histórico dos Estados Unidos por ser a única estufa do século 18 preservada na América do Norte. A investigação revelou que os escravos africanos desempenharam um importante papel na construção e na operação da orangerie, de 122m². Os arqueólogos encontraram objetos que evidenciam suas tradições e crenças espirituais no local.

De acordo com Mark Leone, o pesquisador que liderou as escavações, uma das principais testemunhas do dia a dia na Mansão Wye, o escravo Frederick Douglas, pode ter feito um importante relato sobre a plantação. Porém, ele deixou de mencionar, em sua autobiografia, a contribuição total dos escravos. “Por muitos anos, essa famosa estrutura do Iluminismo foi reconhecida por suas características europeias, mas há uma face africana em sua constituição, até então desconhecida”, diz ao Correio o coordenador do estudo.

Leone conta que, ocultos entre os tijolos da fornalha que controlava a temperatura da estufa, havia símbolos típicos da cultura africana relacionados a práticas espirituais. “Com certeza, um escravo afroamericano construiu a fornalha e deixou sua assinatura histórica”, afirma o arqueólogo. Os talismãs encravados secretamente, já que os escravos não podiam praticar sua religião tradicional, correspondem às práticas da cultura ioruba, na qual manter um objeto afiado no solo ajuda a controlar a peste nas plantações e o humor dos espíritos.

A equipe de Leone também encontrou talismãs enterrados na parte da estufa que servia de alojamento para os escravos que trabalhavam no local. “Ironicamente, esses símbolos africanos deixaram a estrutura diferente daquelas típicas da Europa, dando à estufa uma característica americana única”, acrescenta o arqueólogo. Em escavações realizadas em Annapolis, ele também encontrou diversas peças relacionadas à magia.

Experimentos

Leone diz que os escravos foram os pioneiros nas experimentações agrícolas feitas no início da colonização americana e fizeram mais do que o simples trabalho manual. “Eles desempenharam papéis que, hoje, seriam conduzidos por técnicos”, informa. “No século 18, essas estufas serviam para fazer experimentos na América, e os escravos tiveram um papel muito mais significativo em termos técnicos do que tem sido atribuído a eles”, explica. “Esse trabalho requeria talento e sofisticação, coisa que os escravos forneceram.”

Pela análise do pólen remanescente na estufa, Leone descobriu, por exemplo, que os escravos começaram a testar a orangerie com plantações de brócolis e outras verduras. Também plantaram ervas utilizadas para fazer chás e com propósitos medicinais. Os experimentos visavam a determinar a temperatura, a quantidade de água e a iluminação ideais para o plantio.

Em um trecho de sua autobiografia, Frederick Douglas cita os usos da estufa. “O coronel Loyd mantém um grande e finamente cultivado jardim, que precisa de cuidados constantes de quatro homens, além do jardineiro-chefe”, escreveu, duas décadas depois de deixar a plantação. “Esse jardim era, provavelmente, a maior atração do local. No verão, as pessoas vinham de longe para vê-lo. Era abundante em todos os tipos de fruta: das maçãs do norte às delicadas laranjas do sul”, relatou.

“As análises do pólen, juntamente com os registros históricos, nos mostraram que a narrativa de Douglas é bastante fiel no que diz respeito ao tipo de planta que era cultivada na estufa”, diz Leone. “Mas o que encontramos agora mostra que ele não percebeu o real trabalho que os escravos estavam fazendo lá.”

Símbolo de distinção

Nos séculos 17 e 18, as residências aristocráticas mantinham suas orangeries como sinal de distinção social. Eram estruturas de jardinagem que tiveram origem no Renascimento italiano, nas quais plantavam-se laranjeiras. Para proteger as árvores do frio do inverno, era necessário revestir o jardim com vidros, além de desenvolver um sistema eficiente de aquecimento.

Narrativa emblemática

Frederick Douglas foi um escravo norte-americano que, em 1845, publicou uma autobiografia emblemática, revelando a crueldade à qual os negros eram submetidos nas grandes plantações dos EUA. Logo após a publicação, ele fugiu para a Europa. Na Inglaterra e na Irlanda, trabalhou para levantar US$ 710, valor de sua alforria. Um dos locais onde o depois orador viveu quando escravo foi a Mansão Wye, em Maryland.

Três perguntas para Mark Leone, arqueólogo

Por que o senhor diz que foram os escravos que construíram a fornalha?

Evidências desse fato vêm da descoberta nas escavações de objetos no estilo africano que estavam enterrados entre os tijolos da fornalha, bem no local onde a peça se conectava a um duto. Esse era um lugar que ninguém poderia ver, já que as práticas espirituais eram proibidas e tinham de ser conduzidas em segredo. Os afroamericanos construíram a fornalha e colcoaram uma pedra afiada no local para controlar os espíritos. Isso corresponde a uma prática Yorubá, da África.

Pode-se dizer que os negros eram mais do que mão-de-obra braçal na América escravocrata?

Sim. Nos séculos 18 e 19, experimentos sistemáticos foram conduzidos para determinar a luz, a temperatura e a quantidade de água ideais para o cultivo de plantas exóticas e os escravos tiveram um papel ativo nesse trabalho. As estufas não eram apenas para embelezar as propriedades. Donos de plantações como os Lloyds também conduziam experiências agrícolas por necessidade econômica. Eles queriam ter acesso a plantas exóticas e queriam saber como fazê-las prosperar. Eles abordaram a questão de uma maneira sistemática, e não é um erro dizer que eram experimentações científicas. Os escravos, que operavam as fornalhas, tinham de monitorar as condições ideais e manter as temperaturas dentro do recomendado. Para tanto, tinham de ler os termômetros, entender os requisitos de cada planta, controlar as janelas e monitorar a fornalha. O conhecimento e a habilidade que adquiriram tornou-se possessão dos escravos e ajudou a criar uma tradição de jardinagem afroamericana.

Como os senhores analisaram o pólen da estufa?

Essa é uma técnica muito pouco usada na arqueologia, mas que nos forneceu os elementos para identificar que tipo de plantas eram cultivadas na Estufa Wye. Para analisar os traços de antigos pólens enterrados no solo da estufa, nós consultamos um especialista nessa técnica, a pesquisadora da Universidade de Massachusetts Heather Trigg. Foi a primeira vez que o método foi utilizado em uma estufa histórica dos Estados Unidos.A tecnologia permitiu a identificação de espécies específicas. Verificamos, por exemplo, que eles cultivavam rosas, morangos e plantas selvagens.

 

Fonte: Correio Braziliense

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