As cores e as vidas que se esvaem no ralo da necropolítica

Sinto falta de meu tempo para escrever o que me vai na alma, sinto falta de meu tempo de poder desejar feliz aniversário para meus amigos e amigas; sinto falta de meu tempo de poder sentir saudades dos que se vão. A grave crise sanitária provocada pelo novo coronavírus e agravada pela irresponsabilidade e necropolítica do governo brasileiro, me roubaram o que tenho de mais precioso: o tempo de ser e sentir.

Aprendi desde muito cedo que nenhum mal é para sempre

Quando penso em escrever algo para um/a ou outro/a amigo/a, vem a o atropelo e preciso parar todo o planejado para cuidar de alguém com fome, doente ou de algum parente de quem morreu. Há mais de um ano tem sido assim, acabo tendo que substituir meus escritos, que tanto gosto de fazer, pela escrita de anúncios necrológicos, notas de pesares e de falecimento. E o pior, notas sobre o amor ou a amora de alguém e não um mero número estatístico e frio como fazem querer parecer.  Os que, assim se vão, são inúmeros, são cores e vidas que esvaem pelo ralo da ausência do Estado.

E além de tudo isso há a necessidade de atender aos apelos de doação, para que possamos continuar a cuidar dos vivos, que aqui estão, com fome, frio e sede. Somos hoje quase um amontoado de coveiros, que ao contrário de quem traz tanta desgraça, nunca almejou ser coveiro de sua própria esperança, de sua fé em mudar de fato a realidade.

Os que partem, partem vítimas de uma doença para a qual já se tem vacina e não são, repito, meros números. São pessoas, são cores e vidas que esvaem intencionalmente pelas mãos de genocidas. E dói, dói muito não só a perda dos nossos amores e amoras, mas dói, o não poder nem mesmo, ter tempo para sofrer a dor do adeus, de viver o luto, ou mesmo de se dobrar ao sentimento da saudade, tal a ferocidade como as perdas ocorrem.

Estamos muito cansados do descaso dos representantes dos poderes constituídos 

Estamos todas e todos muito cansados do descaso, da irresponsabilidade dos que são os representantes dos poderes constituídos desse país, autoridades que não estão imbuídas de, de fato serem autoridades; que não conseguem nos lançar um fio de esperança de que irão cumprir seus papéis constitucionais.

Não nos deixando alternativas a não ser a de criarmos, nós mesmos as possibilidades de, do lado de cá, em meio a tanta fragilidade e dor, aprendermos a conjugar o verbo esperançar e sair em defesa de nossas vidas e direitos, sós. Sós e abandonados pelo que se espera minimamente do Estado: a necessária proteção ao cidadãos.

Vivemos o que chamo de solidão coletiva, em meio a multidões, sem poder nos aconchegar, acarinhar e até mesmo nos tocar. Numa sucessão de imagens surreais de filmes hollywoodianos das grandes catástrofes mundiais. Tudo porque, para os mandatários desse país nossas vidas não importam.

Os que vão, vão sozinhos. Sem direito as justas homenagens na hora da partida; os que ficam também ficam sozinhos; abandonados à sua própria dor, a sua tristeza e saudades. Por isso, esse texto triste e melancólico de quem, tem hoje, muita dor. Mas que, como outros milhões de brasileiros e brasileiras, tem esperança de que vamos sair dessa enrascada. Pessoas que acreditam na ciência e nas suas proposições para vencermos o coronavírus. Aliás, vencer a pandemia com a ciência é um desafio mais fácil, eu diria anos luz mais fácil de vencer do que o negacionismo e o fascismo implantado em nosso país.

Esta vitória mais difícil, a de derrotar o fascismo e o negacionismo virá. Tenho certeza e muita fé no que carrego. Essa vitória depende muito mais de nós e de nossa capacidade de lutar. Aprendi desde muito cedo que nenhum mal é para sempre. E esse com certeza é um mal temporário que a democracia extinguirá com nossa organização popular e social. Precisamos para tanto insistir na conjugação do verbo esperançar.

Makota Célia Gonçalves Souza (Makota Celinha) é jornalista, empreendedora social da Rede Ashoka e coordenadora nacional do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB).

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