As faculdades de Direito, o racismo e a reprodução de preconceito

A lei garante reserva de vagas para negros e negras em concursos públicos, mas candidatos seguem submetidos ao arbítrio da banca examinadora

por Luciane Soares da Silva, da Carta Capital 

‘Diariamente bancos com portas giratórias travam segundo cor e classe do cliente’ (Rovena Rosa/Agência Brasil)

A alta qualificação de alunos que ingressaram em programas de pós-graduação, passadas quase duas décadas do início da implementação das ações afirmativas, não aparece refletida nos concursos públicos que seguem reproduzindo um modelo de recrutamento racialmente branco.

O caso recente de concurso com reserva de vagas para negros no IFCS/UFRJ explicita a precariedade das soluções para a questão racial: a lei 12.990 de 2014 torna obrigatória a reserva de vagas para negros e negras. Mas os candidatos seguem submetidos ao arbítrio da banca examinadora.

Quanto ao quadro de professores da PUC, segundo dados do Sistema de Gerência Universitária, dos 1.985 professores da instituição, 86 são negros. Até aqui as opiniões de espanto e indignação demonstram algo que tenho acompanhado nesta última década: há um sentimento público de não aceitação do racismo no Brasil.

Efeitos da lei que criminalizou o racismo na Constituição de 1988, mas também efeitos das mudanças sociais e seus avanços na temática do combate ao preconceito e outras formas de discriminação. Este reconhecimento não nos livra de avançar em outro ponto. E é aí que entram os alunos da PUC.

Que mudanças estruturais foram realizadas para alterar as formas de interação de brancos e não brancos em espaços como os da Universidade? Quais os indicadores que nos permitem avaliar a diminuição da desigualdade em cidades como o Rio de Janeiro?

E sigo este argumento o conectando com meu trânsito não só na temática racial, mas nos espaços físicos em que estão os operadores do direito. Das delegacias aos Tribunais de Justiça.

Entre os anos de 2001 e 2003 empreendi uma pesquisa de mestrado, O cotidiano das relações inter-raciais, o processo de criminalização dos atos decorrentes do preconceito de raça e cor no Rio Grande do Sul (1998-2001). Analisei 531 casos de delegacia em que estivessem presentes situações envolvendo racismo.

De injúrias ao impedimento de entrada em clubes, passando por abordagens policiais. Havia uma regularidade nos casos. Com uma frequência significativa eles me apresentaram uma radiografia da questão.

Em primeiro lugar, os casos aconteciam entre conhecidos em ambientes de trabalho ou moradia. O tipo de injúria em mais de 50% das ocorrências faziam referência a uma idéia de anomia, pobreza ou condição social.

Termos como “delinquente”, “maloqueiro”, ou expressões como “volte para senzala” foram decisivos na construção de argumentos que contrariam qualquer possibilidade de defesa de que não somos um país racista.

A pergunta óbvia era: se existiam os casos, como o Judiciário se comportava diante destas situações? Nem 5% destes casos se transformam em inquéritos. Como me explicava um simpático delegado da região central do Rio de Janeiro, diante de latrocínios e homicídios, não era possível levar em frente, registros em que “uma moça fora chamada de negra feia”. O comportamento deste operador do direito é o comportamento padrão dos policiais em delegacias do País.

A pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro revelou o mesmo padrão de atuação das delegacias. No Brasil, há uma profunda dificuldade por parte de juízes, delegados, advogados em reconhecer o fenômeno do racismo como aceitável dentro da doutrina, jurisprudência, em suma, dentro do campo jurídico. Em algumas sentenças, que beiram o patético, lemos que “ fulana de tal, em clube da cidade de Paraty, sentiu-se ofendida em sua honra subjetiva, não tratando portanto de racismo”.

Ao final, citações de Casa Grande e Senzala atestavam a erudição, parte da retórica do campo jurídico. Diariamente grandes redes de supermercado utilizam serviço terceirizado de segurança para acossar adolescentes negros em espaços de consumo.

Diariamente bancos com portas giratórias travam segundo cor e classe do cliente, diariamente são registrados casos envolvendo patroas, empregadas e direitos trabalhistas. Em todos estes casos concretos opera o mesmo princípio. Não há neste horizonte espaço para relações igualitárias.

Como, após este quadro que descrevo, imaginar outra ação dos futuros juízes? Não é a primeira vez que a tematização das cotas aparece nos Jogos Jurídicos. Em outros momentos como os trotes, já escutei nos corredores da Faculdade Nacional de Direito, “calouro, pode esperar, na UFRJ não tem cota pra entrar”.

A punição dos alunos de Direito da PUC representa muito pouco dentro deste quadro altamente complexo. Individualiza um problema que as instituições não querem atacar efetivamente, reforça a retórica jurídica sobre o combate ao racismo. Mas é totalmente ineficaz para transformar as relações cotidianas dentro da PUC, UFRJ, UFRGS, USP… a magnitude do conflito racial no Brasil deveria ser levada à sério.

Para além dos comprometimentos retóricos e punições exemplares, devemos encarar a desigualdade como espinha dorsal desta reprodução de comportamento racista. E a produção de conhecimento como ferramenta crítica possível de enfrentamento cognitivo do problema. Os alunos de direito serão os futuros operadores desta máquina destinada a prender, a violar e a justificar o injustificável. Com sofismas aprendidos em aula.

Talvez fosse interessante questionar o próprio quadro de formação dos alunos, as doutrinas consagradas e a ideologia que fundamenta a estrutura do conhecimento jurídico. Não há conhecimento neutro, todo conhecimento é uma forma de poder. Por esta e outra razões as cotas incomodam tanto. Qualquer outra abordagem que não problematize os conteúdos destes cursos e o perfil do quadro docente, não merece ser tomada como válida.

*”Sócia” desde 2018

 

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