As Famílias, apesar dos Estatuto da Família

Na justificação do Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, que quer ser o “estatuto da família”, seu autor, o Deputado Federal Anderson Ferreira, reconhece que as famílias vêm sofrendo rápidas mudanças sociais. Pela redação do artigo 2º, esse reconhecimento lhe serve para fechar os olhos a essas mudanças e defender uma forma “tradicional” de família: um núcleo formado “a partir da união de um homem e de uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos.” Por esta definição, os núcleos formados por casais do mesmo sexo não seriam considerados família. As tradições, contudo, não devem ser aceitas de maneira acrítica; devem ser avaliadas para verificar se os argumentos que as justificam sobrevivem a uma análise crítica informada pelos valores de nosso contexto jus-social do presente.

por Emanuela Cardoso Onofre de Alencar via Guest Post para o Portal Geledés

São varios os argumentos defendidos pelos autores do projeto de lei e do relatório que lhe informa, e por quem comparte sua posição. Neste texto, analizo três argumentos: a) o da reprodução como elemento que justifica a proteção da família; b) o do afeto como elemento insuficiente para justificar uma relação de família; e c) o de que a família, porque tem certas características, é a base da sociedade.

Apesar de que o debate gira em torno do que é uma família, o que está em jogo, e implícito na discussão, é o reconhecimento pelo Estado da pretensão das pessoas homossexuais de formarem uma união estável ou casarem-se em igualdade de direitos com as pessoas heteressexuais. Neste texto, meu foco são as relações de casal.

O que é uma família? A resposta é importante porque determina aspectos da discussão. O que segue, contudo, são linhas gerais do que podemos considerar como família e identificar o que a distingue.
A família é um grupo social complexo que pode estar formada por vínculos de consanguinedade ou sem estes. Podemos considerar como família as relações entre o casal; entre este e seus filhos, caso existam; e entre estes e os avós, tios e primos existentes. A família pode ser compreendida tanto de uma forma estricta, como a chamada “nuclear”, composta pelo casal e, caso existam, seus filhos, como de uma forma mais ampla, incluindo também aqueles que sao família por vínculos de parentesco.

Se olhamos para a família pelas lentes do Direito, vemos que diferentes ordenamentos jurídicos regularam-na de diversas formas, e que estas mudaram ao longo do tempo. Tenhamos sempre presente que a família é, primeiro, um fenômeno social que tem mudado suas formas e funções; o Direito acompanha essas mudanças. Um exemplo disso, e fazendo referencia à regulamentação jurídica, é que a família já foi considerada como a união formada pelo casamento indissolúvel, mas depois ampliou-se para incluir outras formas, como a união estável. As formas reconhecidas por lei de establecer uma família também foram modificadas. Se antes o casamento era considerado indissolúvel, hoje é possível finalizá-lo pelo divorcio. O casamento e a união estável já foram considerados um privilegio de casais heterossexuais; atualmente, cada vez mais Estados reconhecem que casais do mesmo sexo têm o direito de casar e de viver em união estável.

Suas funções também evoluiram. Se em um primeiro momento a família exerceu uma função polítical, na qual, como unidade orgânica, participava no espaço público defendendo os intereses do grupo familiar, representada pelo patriarca; desempenhou, em outros momentos, diferentes tipos de funções econômicas. Na atualidade, sua função primordial é servir de espaço de socialização e satisfação das necesidades primarias de seus membros.

Essas mudanças demonstram que não existe uma forma “natural” de instituir uma família ou uma única função que desempenhar. Uniões com o objetivo de compartir uma vida, repartindo as cargas e os beneficios da convivência, sempre existiram entre pessoas do mesmo sexo e de sexos distintos. Que o Direito tenha reconhecido e regulamentado apenas algumas dessas formas só quer dizer que representou uma opção política em um momento dado. Conhecer a justificação dessas escolhas é o mais interessante, já que permite identificar os argumentos que levaram o legislador a reconhecer algumas formas e excluir outras.

Assim, mais do que falar de família, debemos falar de famílias, no plural, pois esse grupo social possue diferentes vínculos, formas e funções que se modificaram ao longo do tempo.

O argumento da reprodução como elemento que justifica a proteção da família

O argumento principal de quem defende a união formada por pessoas de sexos diferentes, seja por casamento ou união estável, como a única capaz de formar uma família, é que esta seria a única capaz de procriar. A capacidade reprodutiva seria a marca distintiva das formas de estabelecer uma família. Como a reprodução é necessaria para perpetuar a espécie humana, somente a união entre um homem e uma mulher teria essa capacidade. As uniões entre pessoas do mesmo sexo, como, em principio, não poderiam procriar, teriam um valor menor e não mereceriam ter, em igualdade, o direito de casar ou formar uma união estável.

Esse argumento gera vários questionamentos. O primeiro se refere ao caso das pessoas que se casam ou formam uma união estável, mas não procriam: há casais que não querem ter filhos ou simplesmente não podem tê-los, seja por um problema de infertilidade ou porque a mulher está na menopausa. Essas pessoas deveriam estar impedidas de casar ou formar uma união estável? Suas uniões não constituiriam uma família? Se a reprodução é a marca distintiva dos casais que podem formar uma familia, nesses casos esse diferencial inexistiría. Nossa realidade mostra que os casais heterossexuais que não podem ou não querem procriar podem casar ou constituir uma união estável. Não há nenhuma exigência de reprodução como condição necessária para constituir uma das formas de instituir uma familia.

O objetor poderia argumentar que o relevante não é a reprodução per se, senão sua potencialidade. Somente a união entre um homem e uma mulher pode, potencialmente, reproduzir. A existência de casais em que uma das partes é infértil coloca uma dificuldade para o objetor (especialmente se ele for contrário ao uso das técnicas de reprodução assistida): a infertilidade impossibilita a reprodução. Mesmo assim, esses casais podem casar ou viver em união estável e formar uma família.

O que parece estar implícito neste argumento é a exigência do ato sexual entre um homem e uma mulher. Como, em principio, somente esse tipo de relação poderia procriar, é a necessidade de existir o ato sexual entre um homem e uma mulher que está no núcleo do argumento da reprodução.
Algumas questões apresentam-se aqui também. Inicialmente, todo Estado justo deve ser indiferente às relações sexuais consentidas entre pessoas adultas e capazes, independente do sexo dos parceiros. Qualquer tentativa de controle dessas relações representa uma intromissão inadmissível em uma esfera de intimidade tão importante como é a vida sexual. Se esse espaço de intimidade deve ser de livre exercício, as pessoas devem poder formar vínculos sentimentais e sexuais com quem escolher, seja alguém de seu mesmo sexo ou de sexo diferente.

Outra questão a discutir se refere à existência de filhos. Devem as pessoas procriar? Ter filhos poderia ser algo desejável, já que disso depende a sobrevivência da espécie. A decisão de ter filhos ou não, contudo, é exercida no espaço de liberdades de uma pessoa ou do casal; é parte do exercício do livre planejamento familiar e não cabe ao Estado interferir sem que exista uma justificativa forte para isso.
Devemos perguntar-nos também que tipo de procreação estamos falando. A adoção existe para que um indivíduo ou um casal possa adotar crianças que são filhos biológicos de outra pessoas. Alguns Estados, inclusive, já regulam a adoção por casais homossexuais, o que possibilita a existência de filhos, seu cuidado e criação no marco dessas relações. Além disso, o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida ampliou as formas de procriar. Atualmente, casais podem ter filhos com o material genético de outras pessoas; e já não é necesário um ato sexual para que uma mulher possa engravidar. Se uma pessoa ou um casal deseja ter filhos e cumpre certos requisitos, há diversas alternativas para tê-los.

O argumento do afeto como elemento insuficiente para justificar uma relação de família

Os defensores do artigo 2º rejeitam o afeto como um elemento que justifica a formação de uma família. Afirmam que se trata de um elemento instável e pode, um dia, acabar, motivo pelo qual seria um elemento desnecesário. Além disso, destacam que não há uma exigência de existir afeto para que um casal possa casar ou formar uma união estável. É suficiente que exista a expressão da vontade das partes, observados alguns requisitos objetivos.

O argumento é forte, mas por outras razões. Afeto é sinónimo de emoção e como tal pode ser expressado de diferentes formas: amor, carinho, raiva, entre vários outros. As pessoas sentem diferentes tipos de afetos por diversas pessoas, dependendo dos vínculos existentes e das relações que se formam. Entre os membros de uma família, a pluralidades de afetos também é uma realidade, sejam eles negativos ou positivos. Apesar de ser algo inerente às pessoas, os afetos não devem ser objeto de regulamentação. A expressão das emoções humanas é plural e nem sempre se encaixa no ideal de amor romântico que costuma estar vinculado ao discurso de quem defende esse elemento como marca distintiva das relações, também plurais, de família. Privilegiar, por exemplo, a existência de amor, seria desconsiderar uma diversidade de motivações que um casal, hetero ou homossexual, possa ter para instituir uma família.

O elemento necessário para constituir uma união estável ou um casamento deve ser o exercicio da livre vontade individual. Este é um elemento essencial da autonomía. As pessoas têm uma capacidade igual de escolher com quem querem relacionar-se sexual e afetivamente, e devem ter a liberdade de exercer essa escolha no marco de uma relação consentida, entre pessoas adultas e capazes, sem sofrem discriminação de nenhum tipo. O direito de casar ou formar uma união estável com a pessoa de sua escolha deve ser reconhecido como um direito de todos, sejam hetero o homossexuais. As pessoas, independente de sua orientação sexual, devem poder expressar sua livre vontade de casar ou formar uma união estável, com o companheiro ou a companheira por elas escolhido, porque aceitam compartir as cargas e os beneficios de uma vida em comum, com base na igualdade de direitos e deveres.

O problema do argumento de quem defende a redação do artigo 2º é que reconhece o exercicio da livre vontade, mas o restringe aos casais heterossexuais porque seriam os únicos, defendem, que poderiam procriar. Esses defensores afirmam que não há uma exigência de afeto para formalizar uma relação de família, o que é verdade, mas há uma exigência de reprodução? Há uma exigência de ter filhos, biológicos ou adotivos? Não. O fato de que existam normas que regulam a filiação significa apenas que, caso exista o interesse de ter filhos, há regras que devem ser observadas. A filiação não é um requisito necesário para formalizar um casamento ou uma união estável.

O argumento de que a família, porque tem certas características, é a base da sociedade

Quem defende o artigo 2º defende também, em essência, que a família é a base da sociedade porque é o espaço de procriação e criação dos filhos, o que lhe faz objeto de proteção do Estado.

Esse argumento, contudo, é insuficiente. A família, em suas diferentes formas, pode ser considerada um núcleo essencial em uma sociedade por duas razões relevantes. A primeira é ser um lugar de socialização dos indivíduos: transmite pautas de comportamento, de hábitos e de crenças. A família tem o papel de educar os indivíduos e de prepará-los para a vida em sociedade. A segunda é ser um núcleo de solidariedade e assitência mútua. Se trata do primeiro espaço no qual as pessoas satisfazem suas necessidades mais básicas, em especial quando não é possível satisfazê-las por si mesmas, como no caso de pouca ou avançada idade, de doença ou de alguma necessidade especial.

Não é a reprodução o que distingue a familia e justifica sua proteção. Esse é um argumento simples e que diz pouco acerca de sua relevância social, especialmente porque existem núcleos familiares que não querem ou não podem procriar. Ser um espaço de solidariedade entre seus membros, assistência mútua e socialização é o que a distingue de outros núcleos sociais. As perguntas que surgem são: que tipo de casal é capaz de cumprir com esses deveres? Será que a diferença de sexo entre os membros de um casal é um elemento suficiente para assegurar a existência de solidariedade, assistência mútua e socialização entre ambos e, caso existam, com relação aos filhos? Ou será que casais, independente do sexo de seus membros, são capazes de cumprir com esses deveres? Deixo esas perguntas abertas para provocar a reflexão e as respostas do leitores.

Antes de finalizar, parece-me relevante destacar que o Estado deve estar atento para não legislar com base em estereótipos ou preconceitos sobre determinados grupos sociais. O Estado, por meio também do Direito, deve promover o avanço social, não dificultá-lo, correndo o risco de legitimar diferentes formas de discriminação.

Atualmente, cada vez mais Estados democráticos mudam suas normas para reconhecer em igualdade o direito dos casais do mesmo sexo de casar e formar uma união estável. Há excelentes razões para que o Brasil siga esse caminho.

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