Este texto foi lido pela autora numa conferência realizada em 1979.
Por Audre Lorde
(tradução de Renata)
Eu concordei em fazer parte da conferência do New York University Institute for the Humanities um ano atrás, com o entendimento de que eu iria comentar sobre trabalhos que lidam com o papel da diferença dentro das vidas de mulheres americanas: diferença de raça, sexualidade, classe e idade. A ausência destas considerações enfraquece qualquer discussão feminista do pessoal e do político.
É uma arrogância acadêmica particular supor qualquer discussão sobre teoria feminista sem examinar nossas muitas diferenças, e sem uma contribuição significante das mulheres pobres, negras e do terceiro mundo, e lésbicas. E, ainda assim, estou aqui como uma feminista negra e lésbica, tendo sido convidada a comentar no único painel nesta conferência no qual dados sobre feministas negras e lésbicas são representados. O que isto diz sobre a visão desta conferência é triste, num país onde racismo, sexismo e homofobia são inseparáveis. Ler esta programação é presumir que mulheres lésbicas e negras não têm nada a dizer sobre existencialismo, o erótico, a cultura e o silêncio das mulheres, o desenvolvimento da teoria feminista, ou heterossexualidade e poder. E o que significa em termos do pessoal e do político quando mesmo as duas mulheres negras que estão aqui presentes foram literalmente encontradas na última hora? O que significa quando as ferramentas de um patriarcado racista são usadas para examinar os frutos do mesmo patriarcado? Significa que apenas os perímetros mais estreitos de mudança são possíveis e admissíveis.
[…]
Promover a mera tolerância de diferença entre mulheres é o reformismo mais nojento. É uma total negação da função criativa da diferença em nossas vidas. A diferença não deve ser meramente tolerada, mas vista como um fundo de polaridades necessárias entre as quais nossa criatividade pode faiscar como uma dialética. Apenas então a necessidade de interdependência se torna não ameaçadora. Apenas dentro dessa interdependência de forças diferentes, reconhecidas e iguais, o poder de procurar novos meios de ser no mundo pode gerar, assim como a coragem e o sustento para agir onde não existem alvarás.
[…]
Como mulheres, nós fomos ensinadas a ou ignorar nossas diferenças, ou vê-las como causas de separação e suspeita em vez de forças para serem mudadas. Sem comunidade não há libertação, apenas o armistício mais vulnerável e temporário entre um indivíduo e sua opressão. Mas comunidade não deve significar uma queda de nossas diferenças, nem a pretensão patética de que essas diferenças não existem.
Aquelas de nós que estão fora do círculo da definição desta sociedade de mulheres aceitáveis, aquelas de nós que foram forjadas no calvário da diferença — aquelas de nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são mais velhas — sabem que sobrevivência não é uma habilidade acadêmica. É aprender como estar sozinha, impopular e às vezes injuriada, e como criar causa comum com aquelas outras que se identificam como fora das estruturas a fim de definir e buscar um mundo no qual todas nós possamos florescer. É aprender como pegar nossas diferenças e transformá-las em forças. Pois as ferramentas do mestre não irão desmantelar a casa do mestre. Elas podem nos permitir temporariamente a ganhar dele em seu jogo, mas elas nunca vão nos possibilitar a causar mudança genuína. E este fato é somente ameaçador àquelas mulheres que ainda definem a casa do mestre como a única fonte de apoio delas.
Num mundo de possibilidade para todas nós, nossas visões pessoais ajudam a montar a base para ação política. O fracasso de feministas acadêmicas em reconhecer diferença como uma força crucial é um fracasso de ultrapassar a primeira lição patriarcal. No nosso mundo, dividir e dominar precisam se tornar definir e empoderar.
[…] Se a teoria de feministas americanas brancas não precisa lidar com as diferenças entre nós e a diferença resultante em nossas opressões, então como você lida com o fato de que mulheres que limpam suas casas e tomam conta de suas crianças enquanto você vai a conferências sobre teoria feminista são, na maior parte, mulheres pobres e mulheres negras? Qual é a teoria por trás do feminismo racista?
Num mundo de possibilidade para todas nós, nossas visões pessoais ajudam a montar a base para ação política. O fracasso de feministas acadêmicas em reconhecer diferença como uma força crucial é um fracasso de ultrapassar a primeira lição patriarcal. No nosso mundo, dividir e dominar precisam se tornar definir e empoderar.
Por que outras mulheres negras não foram encontradas para participar desta conferência? Por que dois telefonemas a mim foram considerados uma consulta? Eu sou a única fonte possível de nomes do Feminismo Negro? E apesar de o trabalho da palestrante negra terminar numa conexão importante e poderosa de amor entre mulheres, como fica a cooperação interracial entre feministas que não amam umas às outras?
Em círculos acadêmicos feministas, a resposta a essas perguntas é quase sempre: “Nós não sabíamos a quem perguntar”. Mas é a mesma evasão de responsabilidade, o mesmo esquivar-se, que mantém a arte de mulheres negras fora de exposições de mulheres, o trabalho de mulheres negras fora da maioria das publicações feministas exceto na ocasional “Edição Especial sobre Mulheres do Terceiro Mundo”, e textos de mulheres negras fora de suas listas de leitura. Mas como Adrienne Rich destacou numa palestra, feministas brancas se educaram em enormes porções nos últimos dez anos, por que vocês ainda não se educaram sobre mulheres negras e as diferenças entre nós — brancas e negras — quando é algo chave para nossa sobrevivência enquanto um movimento?
Mulheres de hoje ainda são chamadas a se estenderem através do vão da ignorância masculina e educarem os homens sobre nossa existência e nossas necessidades. Esta é uma ferramenta antiga e primária de todos os opressores para manter pessoas oprimidas ocupadas com as preocupações do mestre. Agora nós ouvimos que é tarefa de mulheres negras educarem mulheres brancas — em face de tremenda resistência — sobre nossa existência, nossas diferenças, nossos papéis relativos em nossa sobrevivência conjunta. Isto é um desvio de energias e uma repetição trágica de pensamento racista e patriarcal.
Simone de Beauvoir disse uma vez: “É no conhecimento de condições genuínas de nossas vidas que devemos chamar nossa força para viver e nossas razões para agir”.
Racismo e homofobia são condições reais de todas as nossas vidas neste lugar e época. Eu incito cada uma de nós aqui a descer até aquele lugar profundo de conhecimento dentro de si e tocar esse terror e ódio a qualquer diferença que vive lá. Veja de quem é a face que ele usa. Então o pessoal enquanto o político pode começar a iluminar todas as nossas escolhas.
Audre Lorde nasceu 1934, em Nova York, e foi poeta, ensaísta, feminista intersecional e ativista. Ela costumava se definir como “negra, lésbica, mãe, guerreira, poeta”. Morreu em novembro de 1992.
Fonte: Questoes Pluraes