As marretadas do padre Júlio constroem um futuro menos sombrio para SP

As imagens do padre Júlio Lancellotti derrubando, nesta terça (2), pedras colocadas pela Prefeitura de São Paulo para impedir que pessoas em situação de rua pudessem descansar na Zona Leste da capital viralizaram nas redes sociais. Se, por um lado, elas demonstram o pior da insensibilidade e do elitismo de nossa maior cidade, por outro deixam claro que a resistência é o que temos de melhor. Resistência que segue “derrubando pedras embaixo do viaduto a marretadas”, nas palavras do coordenador da Pastoral do Povo de Rua.

A administração municipal disse à Folha de S.Paulo que exonerou o responsável pela “obra”, sem dizer quem foi o gênio, e começou a retirada das pedras. Em última instância, contudo, o verdadeiro responsável não é anônimo: estava assistindo a Palmeiras e Santos, numa aglomerada arquibancada do estádio do Maracanã, neste sábado de pandemia.

Padre Júlio Lancellotti caminha entre pedras instalas pela Prefeitura de São Paulo sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, no bairro do Tatuapé, Zona Leste da capital
Imagem: Reprodução/Twitter

São Paulo sobrepõe preocupações estéticas aos princípios éticos no trato com a coisa pública. E, portanto, a zeladoria de um lugar acaba se tornando mais relevante do que o cuidado com os cidadãos mais vulneráveis que lá estão. Bruno Covas (PSDB) não foi o primeiro e não será o último.

Em julho de 2017, após a capital paulista ter registrado a madrugada mais fria do ano até então, equipes da gestão João Doria (PSDB) lavaram a Praça da Sé com jatos de água, molhando as pessoas em situação de rua que dormiam por lá, além de seus cobertores e pertences.

Em 2014, a gestão Fernando Haddad implementou paralelepípedos ao redor das pilastras do metrô na Zona Norte de São Paulo, local onde pessoas em situação de rua costumavam dormir.

Tanto os prefeitos Gilberto Kassab (2010) quanto José Serra (2005) ergueram estruturas bisonhas que ficaram conhecidas como “rampas antimendigo”, impedindo que seres humanos por lá descansassem.

Tenho produzido, há algum tempo, o “Guia das Regras Higienistas para Convívio Social com a População em Situação de Rua”, reunindo as piores ações já adotadas no país no intuito de implementar a segregação as grandes cidades.

Parte das “regras” não foi adotada apenas pelo poder público, mas dos próprios cidadãos. Uma população com tanto medo de si mesma que acaba por enterrar a empatia e se guiar pelo impossível: buscar a paz promovendo a guerra.

Por favor, cuidado: ironia e sarcasmo a seguir. Falta amor no mundo, mas falta ainda mais interpretação de texto.

Guia das Regras Higienistas para Convívio Social com a População em Situação de Rua

1) É permitida a utilização de fogo com o objetivo de limpar áreas públicas de pessoas em situação de rua. O uso do fogo como instrumento de limpeza social deve se atentar para o risco de atingir veículos automotores em vias públicas. Nesse caso, os infratores serão responsabilizados com todo o rigor da lei. Carros são importantes, gente, não.

2) Áreas cobertas em viadutos, pontes, túneis ou quaisquer locais públicos que possam acolher população em situação de rua devem ser preenchidas com rampas de concreto ou gradeadas, evitando assim a criação de nichos ou casulos prontos para chocar o cidadão de bem. Outra opção, caso seja impossível uma rampa com inclinação acentuada, é o uso de floreiras, cacos de vidro, lanças de metal, cactos ou paralelepípedos.

3) Se o pessoal dos “direitos humanos” reclamar, a implementação de tapumes, fingindo uma obra e evitando o acesso de pessoas em situação de rua ao espaço também funciona.

4) Prédios novos devem ser construídos sem marquises para impossibilitar o acúmulo de pessoas sem lar em noites frias ou chuvosas. Caso seja impossível por determinações estéticas do arquiteto, a alternativa de seguranças armados é outra possibilidade. Em caso de prédios mais antigos, uma saída encontrada por um edifício na região central de São Paulo e que pode ser tomada como modelo é a colocação de uma mangueira furada no teto, simulando a chuva.

5) Bancos de praça devem receber estruturas que os separem em três ou quatro assentos independentes.

6) Em regiões com alta incidência de seres indesejáveis, recomenda-se o avanço de grades e muros para além do limite registrado nas prefeituras, diminuindo ao máximo o tamanho da calçada.

7) Cloro deve ser lançado nos locais de permanência de pessoas em situação de rua para garantir que eles se espalhem. Caso não seja suficiente, pode ser necessária a utilização de produtos químicos mais fortes vendidos em lojas do ramo.

8) Jatos de água que atingem, por “descuido”, pessoas que dormem no chão, terão a espantosa propriedade de fazer com que elas desapareçam em dias muito frios.

9) Apoiar incondicionalmente a ação de prefeituras quando elas retiram cobertores e papelões que servem para proteger os seres indesejáveis nas noites e madrugadas frias.

10) A privatização do espaço público e a imposição de violência estética só devem ser permitidas quando feitas por importantes empresas, grandes clubes, luxuosos condomínios e honoráveis cidadãos.

Caso seja questionada a aplicação de qualquer uma das medidas acima apresentadas, responda com a argumentação desenvolvida há décadas por quem não entende o real papel do Estado em uma república democrática: “Tá com dó? Leva para casa”.

Agora, me digam: não é assustador e, ao mesmo tempo, representativo do tempo em que vivemos que parte das pessoas que leram estas “regras” irá considerar tudo isso boa ideia?

Em tempo: O padre Júlio é uma pedra no sapato de muita gente. Eu, que não creio, dou graças a Deus por ele existir. Seu trabalho incansável, muitas vezes realizado sob ameaça de morte, me lembra uma citação atribuída a outro gigante, Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: “Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista”.

 

 

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